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Outros estudos haviam alertado para a vulnerabilidade da proteína AXL a flavivírus como o zika e a dengue. É por meio desse receptor que os patógenos atacam as células da pele e causam as manchas cutâneas que estão entre os sintomas mais característicos dessas doenças. Os pesquisadores decidiram, então, procurar essa mesma “fechadura” usada pelo zika nas células que dão origem ao cérebro de bebês durante a gestação. Através de sequenciamentos de RNA feitos em cérebros de ratos, de furões e de culturas de cérebros humanos in vitro, acharam uma grande concentração da proteína nas células-tronco neurais que produzem as áreas que ficam em contato com os nervos do cérebro e com o fluido cerebrospinal.
Os resultados do estudo, ressaltam os cientistas, indicam que essa região poderia ser afetada pelo vírus durante o segundo trimestre de gravidez. O zika poderia, por essa porta de entrada, matar essas células e atrapalhar a sua multiplicação, resultando em cérebros de tamanho reduzido e marcados por deformações (veja infográfico). “Ao descobrir que o receptor AXL é abundante nas células-tronco neurais do cérebro, temos um mecanismo em potencial muito provável para explicar como o zika está causando a microcefalia em recém-nascidos”, acredita Arnold Kiegstein, pesquisador do Departamento de Neurologia da Universidade da Califórnia em San Francisco e principal autor do estudo.
No entanto, Kiegstein ressalta que a hipótese ainda não foi confirmada. “Para provar isso, será necessário mostrar que o bloqueio do receptor AXL pode evitar a infecção das células cerebrais pelo zika”, explica. Os pesquisadores também não sabem explicar por que a dengue e outras doenças aptas a se conectarem à proteína AXL não causam microcefalia por esse mesmo caminho. “Outros fatores podem estar envolvidos e explicar as diferenças; ou pode ser que outros vírus tenham mais dificuldade de atravessar a placenta até o feto; ou ainda que os outros vírus causem o dano cerebral, mas possivelmente com menos frequência, portanto, essa conexão não foi notada”, cogita.
Coerência clínica
Embora não haja provas do caminho molecular usado pelo zika, os resultados do estudo são bastante coerentes com os quadros de má-formação cerebral registrados em filhos de mulheres que foram infectadas pelo vírus durante a gravidez. A proteína vulnerável foi identificada justamente nas células que estão envolvidas com as veias sanguíneas e com as áreas do cérebro que ficam em contato com o fluido cerebrospinal, justamente regiões que apresentam graves danos nas crianças afetadas pelo problema. O receptor AXL também está envolvido na formação da retina, uma área que pode ser prejudicada pelo vírus. Um estudo brasileiro feito com 29 crianças com microcefalia atribuída ao vírus revela que mais de um terço delas apresentam anormalidades oculares.
“Além do cérebro não ter se desenvolvido, os ventrículos (dos bebês) são grandes e há muita calcificação no parênquima. E outra coisa que chama muito a atenção é que há muita má-formação cortical, além de um cerebelo muito pequeno”, enumera Adriano Hazin, radiologista do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), em Pernambuco, que analisou alguns dos casos suspeitos de microcefalia registrados no Brasil. Atualmente, o Ministério da Saúde investiga 4.291 suspeitas de microcefalia e demais alterações do sistema nervoso central que podem ter sido causadas pelo zika. Outros 944 casos foram confirmados desde outubro do ano passado.
Estragos em apenas seis dias
Estudos publicados recentemente por pesquisadores brasileiros e estrangeiros demonstram o estrago que o vírus zika pode causar às células-tronco neuronais. Em testes in vitro, foi possível comprovar que o agente infecta e mata as estruturas que originam o cérebro de fetos em apenas seis dias, reforçando a suspeita de que a doença seria responsável pelas malformações registradas nos bebês nascidos no Brasil no último ano. As culturas contaminadas cresceram 40% menos do que as células protegidas do vírus e apresentaram anomalias morfológicas.
Os testes também revelaram que o vírus seleciona as células que formam o córtex cerebral, uma área bastante afetada nas crianças com microcefalia nascidas de mães infectadas. Os cientistas haviam notado que bastavam três dias para que o zika infectasse 90% das células progenitoras neurais e usassem essa estrutura para criar cópias dele. “Um caminho em potencial sugerido pelo nosso estudo é que a infecção do zika leva à morte e ao crescimento atrasado das células, o que poderia ter um impacto na sua habilidade de gerar neurônios”, descreve ao Correio Guo-li Ming, professora de neurologia no Instituto John Hopkins de Engenharia Celular e autora de um dos estudos que analisa o efeito do zika sobre o cérebro.
Ming publicou o artigo que descreve a ação do vírus sobre o córtex há cerca de um mês também na Cell Stem Cell. A pesquisadora ressalta que o seu trabalho também não é a prova cabal da ligação do vírus com o problema, mas uma evidência da vulnerabilidade do córtex cerebral ao zika. Os resultados desses estudos também são compatíveis com a hipótese do caminho molecular divulgada ontem pelos pesquisadores norte-americanos. “Provavelmente, essas células expressam receptores para o zika vírus”, acredita Ming.
Se essa relação for comprovada, seria possível daesenvolver tratamentos que protegessem os fetos da ação neurodegenerativa do vírus zika. Como a proteína AXL é fundamental para a multiplicação das células-tronco neurais, bloquear a estrutura não seria uma opção. Mas um inibidor desse receptor poderia ser capaz de evitar que a infecção se prolifere no organismo da mãe e chegasse ao feto, talvez o protegendo do problema que causa a malformação. (RM)