Heitor entra no consultório como se fosse sua casa. Cumprimenta as pessoas, dança ao som de Patati Patatá, corre de um lado para o outro. Com 2 anos e meio, o pequeno frequenta a clínica odontológica especializada em pacientes com deficiência e grupos especiais desde os 7 meses de vida. A mãe, a fotógrafa Nilzete Barbosa, de 45 anos, conta que procurou ajuda profissional porque ficou preocupada com a demora no surgimento da dentição do menino. Desde então, as visitas ao dentista são realizadas sempre que necessário.
Contudo, o processo nem sempre é tranquilo. Heitor, como outras crianças com a síndrome, mesmo tão novinho, já passou por diversos exames e esteve muitas vezes no hospital. “Ele não pode ver um jaleco branco que não gosta”, conta a mãe. “É um trauma”, define. Mas o desconforto não impede os cuidados com os dentes, que incluem idas ao consultório dentário e, pelo menos, três escovações ao dia, sempre seguidas do uso de fio dental. E, no caso da criança que teve cardiopatia, a prevenção de doenças, como a cárie, é ainda mais necessária, já que o processo inflamatório pode colocar em risco o coração.
Mas o atendimento especializado é para poucos, seja no serviço público, seja no privado. No Conselho Regional de Odontologia do Distrito Federal, há 7 mil profissionais cirurgiões-dentistas inscritos. Porém, apenas 10 deles estão inscritos na especialidade de paciente com necessidades especiais. E a realidade nacional não melhora muito. São 568 profissionais nesse ramo. Isso porque, no Brasil, de acordo com dados do último censo, há 300 mil pessoas com síndrome de Down.
Para o coordenador da clínica de odontologia para pessoas com deficiência e grupos especiais da Universidade Católica de Brasília, Alexandre Franco Miranda, o problema envolve a falta de capacitação dos profissionais. “Temos um nicho, pacientes, famílias, necessidade de serviço e, infelizmente, não temos profissionais”, relata. Outra dificuldade é a falta de informação.
O dentista explica que as técnicas odontológicas indicadas para pacientes com a síndrome são as mesmas aplicadas para as pessoas sem a condição genética. A restauração, por exemplo, é idêntica. O que muda é o manejo, a adaptação, o contexto ético, legal e de abordagem, e, é claro, das especificidades exigidas pela condição genética. Um exemplo são os problemas na articulação atlanto-axial, localizada no pescoço. “É importante que o dentista saiba posicionar esses pacientes de uma maneira correta para não ocasionar nenhum problema.”
. Além disso, Alexandre sustenta que os profissionais da área também precisam saber as características não só do sistema estomatognático (conjunto de estruturas bucais), mas também das condições sistêmicas desses pacientes, que, comumente, apresentam hipotiroidismo. Para o dentista, a junção desses conhecimentos, do planejamento odontológico e interdisciplinar, além da participação da família, é o que garante a promoção de saúde.
A produtora de tevê Melina Sales dos Santos, de 35 anos, mãe de Zilar, de 3 anos, acredita que há muitas vantagens em procurar um dentista especializado. “Esse profissional já sabe melhor a situação da síndrome e deixa os pais mais tranquilos”, opina. A filha dela faz o acompanhamento odontológico desde os 6 meses de idade, seguindo as recomendações médicas.
A prevenção e a correção de eventuais problemas começaram cedo para Zilar. Quando tinha 1 ano e meio, ela foi submetida a um procedimento para colocar um dispositivo para expandir o palato, situação comum em crianças com a alteração genética. Agora, suas visitas ao dentista são basicamente para acompanhar o desenvolvimento da área, à medida que a menina cresce. Porém, a pequena não é fã da rotina. “Ela não gosta que mexam em seus dentes. Mas, se é para o bem dela, a gente faz”, conta a mãe.
O acompanhamento também é feito para acostumar o paciente com o ambiente do consultório. De acordo com a cirurgiã-dentista do Centro de Especialidades Odontológicas na área de Odontologia para Pacientes Especiais (OPNE) do Hospital Regional de Taguatinga, Andréia Aquino Marsiglio, a regularidade é o fator principal para esses pacientes garantirem a saúde bucal ao longo da vida. “Se ele não for condicionado desde criança, na fase adulta a entrada no consultório será bem difícil. Ele não vai querer se sentar na cadeira e abrir a boca”, explica.
Um caso que exemplifica o que afirma a dentista é o de Valteir Oliveira Lopes, de 45 anos. Ele nasceu com a síndrome e procurou, em 2015, atendimento odontológico pela primeira vez. Cresceu no interior e, por isso, não teve o costume de ser levado regularmente ao dentista. A estreia foi quando o lado esquerdo do rosto estava com aparência inchada e Valteir, à sua maneira, dava a entender que tinha uma dor no dente. O irmão dele, o servidor público Waltermir Oliveira Lopes, 54 anos, decidiu, então, levá-lo a uma consulta.
O primeiro contato com um dentista foi no posto de saúde perto de casa, em Ceilândia. Lá, o atendimento foi difícil e Valteir demonstrou rejeição. Foi quando a família descobriu a existência de profissionais especializados nesses casos. Com a abordagem focada nas necessidades dele, o tratamento — que incluiu cirurgia e anestesia para a extração de oito dentes cariados — foi menos traumático. “Ele aceitou bem melhor”, conta o irmão.
Saiba mais
A palavra Down tem como origem o nome do médico que descreveu a doença em 1866. É um grupo que enfrenta o preconceito cotidianamente, resultado do desconhecimento, que acaba impondo a ele obstáculos na hora de realizar as tarefas mais simples e, por muitas vezes, impedem o acesso aos direitos e às garantias fundamentais estabelecidos pela própria Constituição, como atendimento de saúde que se encaixe a suas necessidades.
O que eles têm de diferente
O que eles têm de diferente
- Os pacientes com a síndrome de Down apresentam aspectos dentários bem particulares, como céu da boca estreito e profundo. Também é possível notar algumas anomalias, entre elas presença de macro ou microdontia, em que os dentes são anatomicamente maiores ou menores que o normal. Além disso, ainda há a possibilidade de haver dentes fusionados.
- O fluxo salivar deles é menor, o que resulta em aumento da tendência em desenvolver cárie, além de boca mais seca. Entre as alterações bucais mais comuns está a doença periodontal, que é um conjunto de condições inflamatórias e de infecção, que leva ao sangramento da gengiva.
- Outra condição é a agenesia, isto é, a ausência de até seis dentes, tanto na fase de dentição de leite, quanto na permanente. Ela acarreta em baixa proeminência de cáries. Segundo a cirurgiã-dentista Andréia Aquino Marsiglio, isso acontece porque há espaçamento entre os dentes, o que inviabiliza o acúmulo de resíduos, facilitando a limpeza.
- Além disso, a língua fissurada, outra característica da síndrome, favorece o acúmulo de biofilme, aquela massinha branca que fica nos dentes e vai para as aberturas da língua. Dependendo da fissura, há o acúmulo de resíduo alimentar que, se não for limpo, torna-se meio de cultura bacteriana. “Como esse paciente tem imunidade baixa, é preciso evitar que essas bactérias na boca não se transformem em foco de infecção.”
- Quem tem Down deve ter cuidado maior com a presença de cáries, especialmente aqueles que tiveram cardiopatias. De acordo com o dentista Alexandre Franco Miranda, a cárie em si não causa problema cardíaco. Na verdade, qualquer processo inflamatório bucal, entra na corrente sanguínea e como consequência vai parar no coração. “Pacientes com a síndrome podem ter alterações cardíacas, então, as bactérias da boca vão se alojar na musculatura do coração, provocando uma doença chamada endocardite – uma inflamação no coração — e ele pode parar de funcionar.”