Na América Latina, há apenas três tipos de soro disponíveis para o tratamento das picadas. Um produzido no Brasil (contra a espécie Tityus serrulatus), um na Argentina (contra Tityus trivitattus) e um na Venezuela (contra Tityus discrepans). Aqui, o soro é produzido pela Fundação Ezequiel Dias, em Belo Horizonte, Instituto Butantan (SP) e Instituto Vital Brasil (RJ). Para o professor do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, Carlos Delfin Chávez Olórtegui, que coordena o projeto, o soro encontrado atualmente nos hospitais é de qualidade, mas há o que melhorar. “Podemos, com esse projeto, aumentar a eficácia e, com isso, reduzir os gastos. Os custos em produzir anticorpos em laboratórios, usando novas tecnologias, são menores do que se produzirmos usando o método tradicional”, comenta o professor.
Olórtegui explica que o objetivo do projeto, que está em fase inicial, é criar um soro único e eficiente contra o veneno das diferentes espécies existentes por toda a América Latina.
O soro tradicional é desenvolvido com base no veneno de escorpião, que é injetado em cavalos, que, por sua vez, produzem anticorpos contra a toxina. Os anticorpos são extraídos dos animais e purificados para serem usados no tratamento humano. Esse método, além de surtir efeito apenas em poucas espécies, é demorado, caro e prejudicial aos cavalos. Com o estudo, a intenção é buscar alternativas biotecnológicas para a criação dos soros por meio da fabricação de uma molécula semelhante à produzida pelo próprio escorpião. A ideia é que essa molécula não seja tóxica e que conserve as regiões reconhecidas de anticorpos.
TOXINAS As fases da pesquisa incluem identificar as toxinas das espécies responsáveis por acidentes graves, reunir os grupos de toxinas iguais e específicas de cada uma e depois selecionar aquelas capazes de produzir uma única molécula com anticorpos que neutralizem o efeito de todos os venenos, dando origem ao novo soro.
Para a eficácia do tratamento, é importante que o paciente procure o hospital o mais rápido possível. Em Belo Horizonte, o Hospital João XXIII deve ser a primeira opção. O tratamento é feito por meio da administração intravenosa do soro nos pacientes considerados moderados ou graves, às vezes acompanhada de medicamentos antialérgicos. Os casos registrados no Brasil são divididos entre leves (80%) e moderados ou graves (20%). As crianças, devido à pequena massa corporal, constituem o grupo de maior risco.
Os sintomas da picada do escorpião aparecem nas duas primeiras horas. São eles dor intensa, formigamento, sudorese, vômitos, náuseas, cefaleia, tremores, excesso de saliva, taquicardia e pressão alta. As complicações clínicas podem desencadear insuficiência cardíaca e edema pulmonar.
O projeto intitulado “Imunoquímica de toxinas naturais: inovações biotecnológicas aplicadas ao desenvolvimento e produção de antivenenos e métodos de diagnóstico” é financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Conta com professores, alunos de graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado e iniciação científica da UFMG, além de pesquisadores de outros países da América Latina.
FASES DA PESQUISA
1– Identificar as toxinas das espécies de escorpiões da América Latina responsáveis por acidentes graves
2 – Reunir os grupos de toxinas iguais e específicas de cada espécie
3 – Selecionar aquelas capazes de produzir uma única molécula com anticorpos que neutralize o efeito de todos os venenos, dando origem ao novo soro.
Grupo da USP testa anti-inflamatórios para evitar complicações de picada
Um estudo publicado recentemente por pesquisadores brasileiros na revista científica Nature Communications sugere que as complicações cardíacas e pulmonares que resultam em um quadro de insuficiência respiratória em vítimas do escorpião-amarelo (Tityus serrulatus) – que atinge cerca de 1,2 milhão de pessoas no mundo, sendo que, dessas, 3 mil morrem – podem ser minimizadas com a rápida administração de medicamentos anti-inflamatórios encontrados em qualquer farmácia, como a indometacina e o celecoxibe. O trabalho, desenvolvido com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), ocorreu durante o pós-doutorado da pesquisadora Karina Furlani Zoccal.
Conforme explicou a pesquisadora, sempre que alguém é picado pelo T. serrulatus, ocorre uma reação inflamatória local que causa fortes dores, mas não leva à morte.
Os cientistas fizeram testes in vitro com macrófagos selvagens (sem genes modificados) de camundongos e, depois, partiram para os testes in vivo, com camundongos geneticamente modificados, buscando observar como iam se comportar esses mediadores na reação inflamatória ao inocular a peçonha do T.serrulatus nos animais. Ao analisar o tecido pulmonar dos camundongos geneticamente modificados que sobreviveram às doses letais de veneno, os cientistas notaram que eles produziam menor quantidade de PGE2 e de LTB4 quando comparados aos camundongos “selvagens”.
PAPEL NA INFLAMAÇÃO
O grupo então decidiu investigar o papel desses dois mediadores na reação inflamatória e, para surpresa de todos os envolvidos no trabalho, descobriram que o LTB4 – até então descrito como uma molécula pró-inflamatória – tinha, na verdade, a função de proteger o tecido da inflamação. “Fizemos o experimento com animais geneticamente modificados para não produzir a enzima que participa da produção do LTB4. Achávamos que certamente eles sobreviveriam a uma dose letal do veneno, pois não tinham um dos componentes da resposta inflamatória. Mas, na verdade, observamos que eles morriam bem mais rápido que os camundongos selvagens e tinham uma inflamação pulmonar exagerada, com muita produção de IL-1 e PGE2”, contou a pesquisadora à Agência Fapesp.
Em seguida, o grupo tratou animais “selvagens” inoculados com doses letais de veneno com indometacina – uma droga inibidora da síntese de prostaglandinas (inclusive a PGE2). Todos sobreviveram. Por meio de estudos in vitro, o grupo descobriu que a PGE2 aumenta a produção de uma molécula chamada monofosfato cíclico de adenosina (cAMP), que, por sua vez, leva a um aumento de IL-1 e potencializa a inflamação. Já o LTB4 diminui a produção de cAMP e, consequentemente, de IL-1.
“Se conseguirmos mostrar que em humanos o edema pulmonar também é mediado por PGE2 e IL-1, o impacto para a população será grande. As vítimas poderão ser tratadas com medicamentos disponíveis em qualquer farmácia enquanto aguardam a chegada do soro antiescorpiônico”, disse a professora. Em parceria com a Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, o grupo pretende dosar alguns mediadores envolvidos na reação inflamatória pulmonar no soro de pacientes picados pelo escorpião-amarelo..