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O trabalho concentrou-se numa população de células T que se desenvolvem ao longo do consumo de novos alimentos, conhecidas como células T regulatórias (Treg). Se elas não existissem, o corpo trataria as macromoléculas do alimento como estranhas, gerando uma série de reações imunes indesejadas, o que desencadearia uma doença inflamatória generalizada. No intestino, essas estruturas são chamadas células regulatórias periféricas, e se especializam em reconhecer alimentos e bactérias ligadas à alimentação.
Quando nos acostumamos com um novo tipo de comida, o corpo estimula o desenvolvimento das estruturas imunossupressoras no sistema digestório, bloqueando a resposta inadequada e “acostumando” o organismo àquele tipo de alimento. “O consumo de sólidos é necessário para induzir as condições de tolerância imune do intestino que previnem a alergia alimentar”, explica Charles Surh, pesquisador do Instituto de La Jolla de Alergia e Imunologia, na Califórnia (Estados Unidos), e autor do trabalho.
Para mostrar como isso ocorre, os pesquisadores usaram ratos livres de antígenos, modificados em laboratório para representar um tipo de sistema imunológico “em branco”. Os bichos cresceram em um ambiente livre de germes e receberam dieta composta somente por aminoácidos, os blocos que formam as proteínas presentes nos alimentos. Esses componentes são muito pequenos para serem detectados pelo sistema imune — portanto, não eram reconhecidos como uma ameaça, o que acontece com as macromoléculas. O sistema digestório desses animais foi comparado ao de cobaias criadas com dieta e em ambiente normais.
Os cientistas notaram que o intestino delgado dos ratos livres de antígenos não tinha as células Tregs, responsáveis por educar o sistema imune, enquanto essa estrutura era bastante ativa no organismo dos animais comuns. Quando os animais sem as estruturas regulatórias foram expostos à ovalbumina, proteína encontrada no ovo, eles sofreram uma séria reação alérgica e tiveram diarreia. A descoberta indicou aos pesquisadores que o consumo precoce de proteínas é responsável por estimular a produção dessas células regulatórias, evitando alergias.
Esse processo foi observado no intestino dos ratos conforme eles eram desmamados e passavam a consumir alimentos ricos em proteína. Assim que a comida sólida passou a fazer parte da dieta dos animais, grandes populações de células Treg surgiram no organismo dos roedores. Para os pesquisadores, o leite materno e as células regulatórias geradas pela introdução dos primeiros alimentos sólidos contribuem para a prevenção de alergias alimentares em crianças. “No início da vida, o ambiente intestinal é mais inclinado a gerar uma resposta tolerogênica, provavelmente estimulado por componentes que induzem a tolerância ao leite e pela rápida geração de células Treg periféricas a partir da introdução de alimentos sólidos”, apontou, em comunicado à imprensa, Kwang Soon Kim, pesquisador da Academia de Imunologia e Microbiologia do Instituto de Ciência Básica da Coreia do Sul.
Menos bactérias
O modelo também foi testado em outra população de ratos modificados que receberam uma dieta normal, mas foram criados num ambiente livre de germes. As restrições influenciaram o desenvolvimento do sistema imune dos animais, que contava com as Tregs induzidas pelos alimentos, mas não com as geradas pelo contato com os micróbios. Os roedores sofreram reações alérgicas ao comer a proteína do ovo, indicando que é necessário ter os dois tipos de populações de células regulatórias para evitar alergias alimentares.
“Uma das razões do crescimento da incidência de alergias alimentares é o aumento da higiene e o uso prevalente de antibióticos na sociedade moderna. Isso pode ter levado à perda de algumas bactérias que ajudam na completa digestão dos alimentos”, afirma Surh. Ana Paula Moschione Castro, médica assistente da unidade de alergia e imunologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), analisa que os resultados do novo estudo reforçam que as alergias alimentares têm origem complexa. “Esse estudo fala de uma combinação de fatores. A microbiota é um fator regulador importantíssimo do sistema imunológico gastrointestinal, e a variedade da alimentação também”, ressalta.
Para a especialista, os resultados do estudo com ratos não podem ser considerados como uma referência do sistema imune de humanos, mas indicam o que alguns especialistas defendem: a restrição alimentar não evita alergias. “Existem estudos mostrando que não devemos evitar alimentos em crianças não alérgicas pensando que isso vai prevenir alergias. A família deve proceder como com uma criança normal”, alerta Castro, que também integra a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia.
Cuidado regular
Quando os ratos criados longe dos germes foram submetidos à dieta de aminoácidos, o sistema imune deles também sofreu prejuízos. A população de Tregs periféricas no intestino delgado desses animais caiu em 40% depois de um mês da alimentação especial, indicando que a produção dessas estruturas regulatórias depende de um estímulo constante aos antígenos introduzidos por meio dos alimentos. Os resultados mostram ainda como a dieta diversificada é importante na manutenção de um sistema imune saudável, e como a ingestão habitual dessas comidas pode evitar o desenvolvimento de alergias.
Os pesquisadores agora planejam limitar o estudo, examinando as reações às comidas que geralmente causam reações alérgicas, como amendoim e ovo. Dessa forma, esperam descobrir por que as pessoas são mais propensas a desenvolver alergias contra esse tipo de alimentos. “A minha opinião é que as comidas que causam alergias são provavelmente mais difíceis de digerir”, diz Surh. “Isso é porque pedaços que não são completamente digeridos têm maior tendência a causar respostas imunes”, argumenta o pesquisador.