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De acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, divulgado nesta terça (23/02), dos 5.640 casos notificados, 583 já tiveram confirmação de microcefalia e/ou outras alterações do sistema nervoso central. Outros 950 foram descartados por apresentarem exames normais, ou apresentarem microcefalias e/ou alterações no sistema nervoso central por causas não infecciosas. Mas 4.107 casos suspeitos de microcefalia seguem em investigação em todo o país.
Segundo a neurologista pediátrica Juliana Gurgel Gianetti, professora do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do serviço de neuropediatria do Hospital das Clínicas, o perímetro cefálico deve ser medido na hora do nascimento, assim como se mede a altura e o peso dos bebês.
Mas antes do surto de microcefalia, quando a notificação desses casos não era obrigatória como agora, medidas abaixo da média normalmente não eram comunicadas. Isso, por si só, já puxa os dados atuais para cima.
“Sempre que identificamos um caso de microcefalia partimos para a investigação porque é algo grave. Fazemos exames de imagem e, às vezes, até uma pulsão lombar para descartar infecções congênitas. Mas isso não era notificado. Às vezes, a criança chega ao nosso serviço já com alguns meses de idade e aí vem outra dificuldade, que é comparar o perímetro cefálico naquele momento com o de quando a criança nasceu. Em muitos lugares, principalmente no interior, anotavam o peso e a estatura, mas não o perímetro cefálico”, explica Juliana.
Confirmações antes do zika
Estudo feito na Paraíba e publicado na semana passada em um boletim da Organização Mundial da Saúde (OMS) veio confirmar que os casos de microcefalia ocorridos antes da chegada do zika ao Brasil podem ter sido muito mais numerosos do que as ocorrências notificadas pelo Ministério da Saúde. O estudo, feito ao longo de quatro anos por cientistas do Círculo do Coração de Pernambuco, em parceria com a Secretaria de Saúde da Paraíba, avaliou bases de dados oficiais com informações de mais de 100 mil bebês nascidos naquele estado.
Mas os registros de apenas 16 mil bebês tinham dados sobre o peso e o perímetro cefálico, o principal indicador para a microcefalia. De acordo com a coordenadora do estudo, a cardiologista Sandra Mattos, a equipe esperava encontrar três ou quatro casos de microcefalia por ano antes da chegada do vírus. Mas ao fazer uma revisão minuciosa da circunferência da cabeça dos bebês, descobriu que os números podem ser até mil vezes maiores. Pelo estudo, até 8% dos bebês nascidos entre 2012 e 2015 se encaixavam nos critérios de diagnóstico. Projetando esse percentual para todos os bebês nascidos na Paraíba, o estado pode ter até 4 mil casos por ano. “Essas descobertas levantam questionamentos sobre diagnóstico e notificação”, pondera.
Em Pernambuco, que lidera em número de casos notificados, de agosto de 2015 a janeiro de 2016, os bebês com perímetro cefálico igual ou abaixo de 32cm, o que torna o caso suspeito, representavam 0,38% das crianças nascidas vivas. Dos 143.279 nascidos vivos naquele período, 543 eram casos prováveis de microcefalia. Nos Estados Unidos, onde a notificação da microcefalia é obrigatória há muito tempo, são reportados 25 mil casos por ano, o que representa 0,6% da população de bebês nascidos anualmente naquele país.
O biólogo Fernando Reinach chamou a atenção para a diferença de casos entre os dois países em sua coluna, no jornal O Estado de S.Paulo, recentemente. Segundo o especialista, se a mesma proporção for aplicada ao número de bebês nascidos no Brasil, cerca de 3 milhões por ano, deveríamos ter algo em torno de 19 mil crianças nascidas com microcefalia anualmente no país. Ou a estatística americana está inflada ou a brasileira está subestimada. Não que a ocorrência deveria ser a mesma nos dois países, certamente não é, mas trata-se de uma diferença demasiadamente grande.
Prognóstico e evolução
A relação causal do zika vírus com a microcefalia, ou o que agora estão chamando de síndrome congênita da zika, nem sequer foi confirmada, embora novos estudos mostrem cada vez mais argumentos. Mas o sinal clínico de que o cérebro não se desenvolveu adequadamente (porque a microcefalia não é uma doença) pode ser causado por vários fatores. É a causa, inclusive, que determina o prognóstico e a evolução desses pacientes. Mesmo antes dessa “nova microcefalia”, já era difícil aos médicos traçar a evolução do quadro.
Erika Gandra tem dois filhos com microcefalia: Erikerlen, de 14 anos, e Kerlon, de 9. Além disso, perdeu a primeira filha, com seis meses de idade, por causa de uma pneumonia, que pode ser uma complicação da microcefalia. Outro filho nasceu com anencefalia, uma das condições que permite o aborto no Brasil, apesar de Erika tê-lo gerado por nove meses. Não se trata de uma coincidência. Erika, provavelmente, tem alguma condição genética que determine que seus filhos nasçam com a anomalia cerebral que traz comprometimentos motores, cognitivos, auditivos e visuais. Doenças genéticas são causas clássicas de microcefalia.
Segundo Maria Letícia Gambogi Teixeira, neuropediatra da Associação Mineira de Reabilitação (AMR), a microcefalia precisa, primeiro, ser bem compreendida diante do cenário atual. “Não se pode negar que o cérebro desses bebês com microcefalia provavelmente atrelada ao vírus zika tenha uma malformação muito importante. As imagens deixam claro que o cérebro não se formou adequadamente, mas a microcefalia é um crânio pequeno, por causas variadas, que pode ser, inclusive, um padrão familiar, caso que não provoca comprometimentos. O problema em se ter um crânio pequeno é quando a condição vem associada a um cérebro alterado. Alguns têm calcificações. Outros são lisos, com poucas ‘voltinhas’, o que quer dizer que há menos neurônios. Todo cérebro normal tem em seu meio um espaço livre de tecido cerebral, os ventrículos, que são preenchidos por líquor. Quando o cérebro não se desenvolve, esse espaço fica maior. Menos tecido cerebral pode ser decorrência de infecções, como as causadas por citomegalovírus, toxoplasmose, rubéola, sífilis e herpes, outras causas clássicas”, esclarece Maria Letícia. A falta de oxigenação na hora do parto e mesmo problemas posteriores ao nascimento podem impedir que o cérebro se desenvolva normalmente, configurando uma microcefalia pós-natal.
reabilitação Kerlon anda com muita dificuldade. Erikerlen tem um comprometimento maior. Provavelmente, os dois têm microcefalia pelo mesmo motivo, mas evoluíram de forma muito distinta. “Kerlon faz reabilitação desde o primeiro mês de vida. Erikerlen só foi diagnosticada depois de cinco meses”, conta Erika. A diferença de acesso é outra consequência de a notificação da microcefalia não ter sido obrigatória no passado. Grande parte das crianças com microcefalia só recebia o diagnóstico por volta dos cinco, seis meses de idade, quando os pais percebiam que elas não reagiam da forma esperada, ou em função de crises convulsivas, bem comuns.
O diagnóstico precoce, e portanto, a notificação obrigatória, é essencial para que essas crianças tenham uma chance de progredir melhor. “Quanto mais cedo se começa a estimulação, melhor a evolução. Às vezes, a ressonância mostra um cérebro muito alterado e a criança evolui bem. Às vezes, a criança está indo bem, mas o exame de imagem mostra muito comprometimento. O cérebro é misterioso. Por causa da plasticidade, ele tem a capacidade de refazer caminhos para um funcionamento melhor. Por outro lado, não se consegue contornar determinadas alterações”, acrescenta a neuropediatra Maria Letícia.
Mas embora casos de adultos com microcefalia, que conseguem levar uma vida praticamente normal, tenham chamado a atenção nos últimos dias, esses são exceções. “Pode variar muito. Cerca de 90% das microcefalias têm comprometimento das funções cognitivas e/ou motoras e apenas 10% são normais, situação daqueles em que a microcefalia têm origem congênita familiar, caso de pais que têm um padrão de cabeça menor. Dentro desses 90%, há pessoas que dependem de cadeiras de rodas e outras que andam normalmente, há quem consiga trabalhar e quem não tenha qualquer coordenação motora. Não dá para prever a evolução”, explica a médica.
(Com agências)