Dados recentes mostram que 60% da população brasileira têm valores inadequados de colesterol, ou seja, acima de 130mg/dL ou 160mg/dL. Vários são os motivos que levam ao aumento perigoso desse componente no sangue. Pode ser resultado da vida desregulada ou questão genética.
“Nesses casos, você tem o colesterol muito alto porque tem uma herança de um único gene, em que seu receptor de LDL não funciona. Você herdou isso do seu pai ou da sua mãe. Isso é a HF, porque ela vem dos pais. Existe outra forma muito comum, que é chamada poligênica, porque são vários genes que, separadamente, não seriam capazes de causar problema. Mas quando estão juntos, se somam suficientemente pra fazer você ter o colesterol muito alto. Então, dentro da HF você tem diferenças etiológicas”, esclarece Andrei Sposito, chefe do Departamento de Cardiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Quando o gene defeituoso é herança de um dos dois pais, a pessoa pode desenvolver a forma heterozigótica da doença. Quando o pai e a mãe apresentam a mutação genética, a criança pode herdar a alteração de ambos e nascer com o quadro homozigótico, que é raro e fatal. Esses pacientes não conseguem produzir nenhum receptor do LDL-C. Ou, se o produzem, funciona de maneira extremamente ineficiente.
Para se ter uma ideia, no Brasil, a expectativa é de que uma em cada grupo de um milhão de pessoas apresentem HF homozigótica. Seriam, assim, 200 pessoas com a doença. O número reduzido é justamente consequência da gravidade do problema. A expectativa de vida é muito baixa nesses casos. Segundo o médico Raul dos Santos Filho, diretor da Unidade Clínica de Lípides do InCor (HC-FMUSP), se não tratado, um pequeno de 13 anos pode ser acometido por um infarto sem aviso.
Já a hipercolesterolemia familiar heretorozigótica é mais comum. A previsão é de que uma pessoa em um grupo de 300 apresente o colesterol elevado, resultado da doença. São homens e mulheres que já nascem com essa condição e têm grande dificuldade em reduzir as taxas de LDL. Ao longo dos anos, a gordura vai sendo depositada na parede dos vasos e esses pacientes se tornam vulneráveis a complicações cardíacas. Elas, assim, estão expostas à ação de um colesterol até três vezes maior do que os registrados na população sem a doença.
“Isso quer dizer que 25% dos homens aos 40 anos de idade vão ter tido, ou terão, um infarto do miocárdio ou morrerão do coração por causa da HF. Aos 50 anos, o problema atinge metade dos homens. As mulheres, pelo fato de serem protegidas pelos hormônios, vão ter mais ou menos uma diferença de 10 a 15 anos para o aparecimento do primeiro evento cardiovascular. Então, por volta dos 50 ou 55 anos, mais ou menos 10% das mulheres teriam tido um problema cardiovascular, se não tratadas”, explica o cardiologista do InCor-SP, Raul dos Santos Filho.
Justamente tentando encontrar uma alternativa eficaz para reduzir o colesterol em pacientes que não respondem à medicação já disponível no mercado, como, por exemplo, as estatinas (que inibem a síntese de colesterol) e o ezetimibe (que reduz a absorção do colesterol), pesquisadores de todo o mundo tentam desvendar qual defeito do organismo seria o responsável por aumentar a concentração dessa gordura no sangue e como reduzi-la. Uma dessas novas drogas foi apresentada no último congresso do American Heart Association (AHA). Trata-se de um anticorpo monoclonal, o evolocumabe, que agiria sobre um dos genes ligados ao aumento de colesterol no sangue (veja infográfico).
“O desenvolvimento do fármaco começou em 2013, com a descoberta do gene PCSK9, ligado aos casos de colestrol alto. Pessoas com mutações no PCSK9 tinham altos níveis de LDL e alto risco cardiovascular. Os pesquisadores começaram a ligar esse dado aos casos de hipercolesteromia familar. Pesquisas ao redor do mundo começaram a entender que o gene era um caminho para baixar o colesterol”, diz o Scott Wasserman, porta-voz internacional do laboratório responsável pela criação do novo medicamento.
Para entender, esse anticorpo seria um inibidor da ação da lipoproteína PCSK9, que se liga aos receptores de LDL e destrói esses responsáveis por limpar o colesterol ruim do sangue. A ação da droga é, então, “ocupar” esse gene para que ele não interfira na ação dos receptores de LDL que estão na superfície do fígado, deixando-os livres para eliminar o excesso de colesterol circulante.
Os resultados são promissores. Foram feitos 21 estudos clínicos, com mais 30 mil pacientes de várias etnias, espalhados pelo mundo, incluindo o Brasil. Os dados mostraram que o evolocumabe reduziu significativamente o LDL-C em aproximadamente 50% a 75% dos casos, quando comparados aos resultados do placebo; e 35% a 45% em comparação ao ezetimibe. Até os pacientes de HF homozigótica foram beneficiados, com redução de 15% a 30% do LDL-C em relação ao placebo.
“O inibidor da PCSK9 diminui a destruição do receptor do LDL. São mecanismos complementares aos de outras drogas. E aí você aumenta muito o número de receptores na superfície hepática e a capacidade do fígado de limpar o colesterol da circulação. São medicamentos que podem ser usados separadamente ou em conjunto. Vamos dizer que a estatina reduz o LDL em 50%, e, com evolucumabe, você reduz mais 50%”, aposta Raul.
A medicação já está sendo usada nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, ainda aguarda aprovação pela Anvisa. É uma esperança para pacientes como as irmãs Isadora e Maria Gabriela Frota. Ambas, uma com 6 anos e outra com 17, foram diagnosticadas com HF heterozigótica. O diagnóstico da caçula foi descoberto quando ela tinha 4 anos, durante uma dosagem de prevenção do colesterol. Já a irmã soube que tinha a doença aos 9 anos e desde os 16 toma medicação.
O pai delas tem HF. O problema que ele soube ter na adolescência trouxe consequências muito cedo. Em 2014, aos 42 anos, ele teve que passar por uma cirurgia cardíaca para colocar quatro stents, uma pequena prótese em formato de tubo instalada no interior de uma artéria para evitar a obstrução total dos vasos. A mãe, Fábia Nobre, não tem a doença. As filhas herdaram, assim, só um gene defeituoso. A caçula não toma medicação, mas segue dieta sem gordura e livre de açúcar, bem como toda a família. Nesse caso, a dosagem constante de colesterol, no intervalo de poucos meses, é importante para prevenir complicações.
As meninas são acompanhadas pelo Programa de Rastreamento Genético da Hipercolesterolemia Familiar, o Hipercol, do Incor-SP, que existe desde 2009. Segundo a coordenadora do projeto, a bióloga Cinthia Jannes, o objetivo é identificar geneticamente a doença. Assim, se for identificado um paciente com LDL acima de 210mg/dL, avaliam os parentes de primeiro grau do caso índice para identificar a presença da HF em outros membros da família. O programa no Brasil é um braço de um existente na Holanda, na Espanha, nos Estados Unidos e na Inglaterra, criado para encontrar as mutações genéticas da doenças. “Temos mutação em 40% dos casos. Já identificamos três genes responsáveis pela HF”, explica Cinthia.
Cerca de 2.500 pessoas já passaram pelos testes genéticos de identificação da HF. O programa não trata o problema, mas orienta o paciente e encaminha para hospitais parceiros. Ela acrescenta que o mais importante é diagnosticar precocemente as pessoas e evitar que a descoberta venha acompanhada de um episódio cardíaco irreversível.
Cura, não há. Só prevenção e acompanhamento. Um dos grandes desafios da medicina é justamente entender qual defeito genético provoca a elevada taxa de colesterol, um lipídio produzido no organismo com função essencial de sintetizar hormônios, membranas das células, além de ser importante componente do sistema nervoso central.
O processo vem de longa data. Segundo Peter Toth, durante uma apresentação no último American Heart Association (AHA), nos Estados Unidos, entre os anos 1908 e 1913 relacionou-se pela primeira vez a aterosclerose (degeneração da parte interna dos vasos por causa do depósito de gordura) e as doenças cardíacas com a genética. Em 1961, a comunidade científica declarou que, de fato, o colesterol era inimigo do coração. Cerca de 24 anos depois, ficou esclarecida a ação do LDL. Finalmente, dois anos mais tarde, compreendeu-se que o LDL era produto do metabolismo e poderia ser controlado pelas estatinas. Agora, a mais recente descoberta é a dos genes ligados à alteração das taxas de colesterol, como o PCSK9, o que tem permitido o desenvolvimento de medicamentos promissores.
Ao contrário do que se pensa, porém, dieta pouco saudável não é a principal responsável pelas altas taxas das moléculas de gordura na corrente sanguínea nesses casos. “Você tem um colesterol aumentado que pode ter diversas causas. A alimentação inadequada contribui com 10% a 15% da variação dele”, esclarece Andrei Sposito, chefe do Departamento de Cardiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Isso não significa, porém, que está permitido descuidar do cardápio. O cardiologista Roberto Kalil reforça a importância de qualquer pessoa manter refeições sem gordura e exercícios físicos constantes para que as taxas de colesterol se mantenham dentro da normalidade.
Fatores de risco da HF:
- Casos de familiares de primeiro grau infartados precocemente.
- Presença de xantomas, depósitos de colesterol (bolinhas amarelas endurecidas) em cima dos tendões extensores das mãos, no cotovelo, nos tendões dos pés.
- Espessamento do tendão de aquiles.
- Taxa de colesterol acima de 190mg/dL em um adulto ou 160mg/dL em uma criança.
ENTREVISTA:
A hipercolesterolemia familiar é um problema sem números exatos no Brasil. O anticorpo monoclonal aprovado recentemente nos Estados Unidos e na Europa pode ser uma alternativa de tratamento para quem convive com esse diagnóstico. Diretor médico da Amgen Brasil, Marcelo Vianna de Lima fala da expectativa para a aprovação do fármaco no país.
Não acreditamos que a HF seja uma condição rara, mas, ao contrário, de uma incidência relativamente importante. O diagnóstico ainda não é feito de forma rotineira e muitas pessoas que não sabem que têm a doença. Existem alguns projetos de instituições como o Incor que tentam mapear essas populações e nichos de pessoas que podem ter o HF. Houve também um acordo do Departamento de Aterosclerose, da Sociedade Brasileira de Cardiologia, com a Sociedade de Brasileira de Análises Clínicas, creio que em 2013, para que, sempre que um paciente fosse fazer uma dosagem de colesterol, houvesse uma chamada no fim do laudo para que os médicos ficassem atentos a níveis de LDL acima de 190ml/dl, que pode ser indicativo de HF e precisa ser investigado. A outra questão é: quando se identifica um paciente com alta probabilidade do diagnóstico de HF, é importante avaliar os parentes diretos, os pais, os irmãos, para que se tenha uma ideia da incidência. Temos dados internacionais que falam sobre o número da HF no Brasil, mas carecemos de um estudo bastante amplo para documentar qual é o tamanho real do problema. Alguns projetos, de forma isolada, estão acontecendo.
Qual é a expectativa de aprovação do anticorpo monoclonal evolocumabe por aqui?
Esperamos que seja o mais rápido possível, uma vez que esse produto traz vantagem em termos de redução dos níveis do LDL-C acima do obtido, tanto pelo placebo como pelo uso de outras medicações redutoras de colesterol. Isso vai levar, não tenho dúvida, à redução de doenças cardiovasculares importantes nessa população. A Anvisa tem seu processo interno de revisão de material e de análise de dados clínicos. Temos respondido a todas as perguntas que eles nos fazem sobre o dossiê apresentado. Estamos trabalhando para que, no mais tardar, em 2017 esse produto esteja disponível no nosso mercado.
A nova medicação poderá beneficiar os pacientes homozigóticos e os heterozigóticos?
Os efeitos benéficos têm sido notado nas duas populações. A instalação na forma homozigótica, no entanto, é mais precoce e para reverter você precisa manter os níveis de LDL reduzidos por mais tempo.
O anticorpo poderá ser indicado para crianças com a doença?
Muito provavelmente. Vamos avaliar a partir do momento em que a Anvisa aprovar. Mas os dados que temos são de crianças homozigóticas com a manifestação da doença aterosclerótica de forma muito precoce. A gente acredita que terá benefício bastante tácito dessa condição, mesmo em crianças.
Qual a vantagem do evolocumabe em relação aos demais medicamentos disponíveis para tratamento de colesterol elevado?
A vantagem é o nível de redução até então não atingindo por essa nova classe de produtos, como estatinas e ezetimibe. A gente sabe que a doença aterosclerótica é diretamente proporcional à redução do LDL. Então, quanto menor a concentração do LDL, menor o risco de desenvolver doença cardiovascular que chamamos de fatal, como infarto, vascularização, morte súbita.
Uma vez aprovada no Brasil, o senhor acredita que essa medicação será incorporada ao sistema público de saúde?
No sistema público de saúde, qualquer incorporação de uma nova droga ou tecnologia passa por um processo que está sujeito a análise e aprovação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (Conitec). Acreditamos que temos dados suficientes para submeter e ter esse produto aprovado, mas não tenho como afirmar. Iremos, no entanto, percorrer esse caminho para que esteja disponível ao maior número de pessoas, seja no mercado privado, no público ou nas seguradoras de saúde.
*A repórter participou do American Heart Association (AHA) a convite da Amgen Brasil.