Passar o dia todo na escola não é sinônimo de educação integral

Tempo estendido na escola é uma demanda social que é resultado da consolidação da mulher no mercado de trabalho. Especialistas falam sobre as situações em que a escolha é positiva e mães compartilham suas experiências com a escola integral

por Valéria Mendes 25/01/2016 10:00
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
O que fazer ao final da licença-maternidade? (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
‘Para educar uma criança, é preciso uma aldeia inteira’. O provérbio de origem africana sintetiza não só a necessidade do envolvimento de toda a sociedade para construção de um futuro melhor para a humanidade, mas também ajuda no entendimento do conceito de educação integral, que nada tem a ver com o tempo que uma criança ou adolescente passa na escola, e sim, em oferecer a meninos e meninas a oportunidade para desenvolverem as múltiplas dimensões humanas. “A formação integral prescinde o olhar atento para o lado físico, biológico, corporal, cultural, emocional e cognitivo da criança. Formação integral é diferente de tempo integral, mas o que temos, na prática, é uma experiência de educação integral fragmentada, algo sem proposta”, afirma o pesquisador Juarez Melgaço Valadares que é um dos coordenadores do grupo de pesquisa Territórios de Educação Integral e Cidadania (TeiA), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Esse tempo estendido na escola é uma demanda social que é resultado da consolidação da mulher no mercado de trabalho. Levantamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) divulgado em dezembro de 2015 mostra que 52% de todo o trabalho do mundo está nas mãos delas. O dado dá nitidez à necessidade do apoio na educação das novas gerações. Com 44 horas semanais de trabalhadores e trabalhadoras dedicadas ao ofício, bebês entre 4 e 6 meses de vida - tempo da licença-maternidade no país -, já passam a maior parte do tempo com adultos que não são nem sua mãe e nem seu pai.

Mesmo que o empreendedorismo materno seja um movimento que vem ganhando força no Brasil, justamente com o intuito de conciliar o cuidado com as crianças com o trabalho em casa, as opções de grande parte das famílias estão restritas à escola em tempo integral, escola meio período e babá. Mesmo assim, essa decisão não é tão simples, envolve uma série de aspectos e é motivo de muita dúvida.

Presidente do Comitê de Primeira Infância da Sociedade Mineira de Pediatra, Lais Valadares é cautelosa ao recomendar ou não a escola em tempo integral, já que crianças e adolescentes vivem realidades bem distintas no Brasil. Em razão da desigualdade social, as oportunidades de prática de esporte, lazer, música, arte também são diversas. “Não é toda família que pode arcar com o custo de uma babá qualificada. A escola em tempo integral é, às vezes, a única opção que as mães contemporâneas têm. É uma opção necessária, mas, as crianças, principalmente na primeira infância, ainda precisam muito dos cuidados maternos”, salienta.

Marcelo Sant'Anna/EM/D.A Press
Para a presidente do Comitê de Primeira Infância da Sociedade Mineira de Pediatra, Lais Valadares, 2 anos é a idade mínima para se pensar em expor uma criança ao ambiente escolar (foto: Marcelo Sant'Anna/EM/D.A Press)


Primeira infância

Para ela, toda essa questão culmina na discussão sobre o tempo da licença-maternidade no Brasil. “Em alguns países de primeiro mundo, a licença-maternidade já foi ampliada para 12, 24 meses e pode chegar até a 36 meses. Isso por que já sabemos que com o investimento na primeira infância, teremos adultos mais saudáveis, principalmente mentalmente”, reforça.

Do ponto de vista médico, segundo a especialista, 2 anos é a idade mínima para se pensar em expor uma criança ao ambiente escolar. “A criança saudável tem desenvolvimento imunológico maduro nessa idade”, afirma.

Em relação ao desenvolvimento e sociabilidade, a pediatra reafirma que “cada caso é único”. Para ela, “se o bebê tem uma babá responsável, afetiva ou algum familiar que possa fazer os cuidados maternos, com certeza ele não precisará de berçário. Em casa também é possível criar um ambiente adequado para o desenvolvimento infantil. A escola integral deve ser opção exclusivamente para famílias em que o casal também trabalha em tempo integral e não tem melhores opções”, diz.

Se a escola em tempo integral for a decisão tomada, Lais Valadares lembra que “que até os cinco anos, a criança não deve entrar em uma rotina de aulas e tarefas. Isso a sobrecarrega e seu tempo deve ser respeitado. A criança até essa idade, para ter um desenvolvimento saudável, deve brincar, brincar e brincar”, alerta.

‘A escola não se pensa integral’
A coordenadora do curso de pedagogia do Centro Universitário UNA, Carla Almeida, acredita que “é fundamental que as famílias se apropriem e conheçam a proposta pedagógica da escola. Obviamente que estrutura física e localização são fatores importantes, mas a concepção pedagógica é primordial”. A especialista é categórica ao dizer que “o tempo pelo tempo não é um fator garantidor da aprendizagem. O que vai contribuir para o desenvolvimento são as atividades que serão conduzidas no período em que as crianças e adolescentes estão na escola. Se o tempo maior [horário integral] tiver um objetivo previsto e for explorado de maneira significativa, ele pode ser uma diferença positiva dentro do conceito de educação integral”, reforça.

Carla Almeida diz que, como coordenadora de um curso de pedagogia e pela experiência que alunos e alunas levam para dentro da sala de aula, ela pode afirmar com tranquilidade que a maioria das escolas privadas não tem uma proposta pedagógica que contemple os dois turnos e oferecem o horário integral por mera questão de mercado. “Os pais precisam trabalhar e a escola é uma saída. É uma boa solução. Na minha opinião, melhor do que deixar com babá. Mas realmente o que muitas fazem é recreação em um dos turnos, os períodos não se complementam, as atividades não são correlativas e vira um mero passatempo, um hotelzinho. Por tudo isso, é tão importante conhecer a proposta pedagógica, que é o que traduz a identidade de uma escola”, reforça.

Arquivo Pessoal
"Mais do que oferecer um horário estendido, é essencial que a escola seja integral na proposta" - Juliana David Jorge com o casal de gêmeos Cristiano e Rafaela, 4 anos (foto: Arquivo Pessoal )


A história da psicóloga Juliana David Jorge, 44 anos, com o seu casal de gêmeos Cristiano e Rafaela, 4 anos, é marcada pelo protagonismo das crianças que deram o tom para o desenrolar da decisão familiar. A mãe da duplinha tentou por duas vezes que as crianças ficassem horário integral na escola. Na primeira, teve que lidar com uma readaptação escolar permeada por choros e demonstrações explícitas de contragosto quando o casal tinha 2 anos e meio. Na segunda, com os irmãos já com mais de 3 anos, a insatisfação foi mais explícita com a verbalização de Cristiano: “Ninguém aguenta ir todo o dia para o mesmo lugar e ficar tanto tempo”.

Desde que deu à luz, Juliana não conseguiu retomar a carreira profissional. “O primeiro movimento que fiz em direção à escola foi a tentativa do berçário. Visitei alguns, mas não tive coragem. Com 1 ano e três meses, decidi matriculá-los meio período na escola. Eles ficavam apenas na parte da tarde. Já no segundo ano na escola, fiz uma tentativa de colocá-los em período integral com o intuito de diminuir o número de babás. Naquela época eram três, duas babás fixas e uma folguista. O retorno às aulas foi marcado por muito choro. A sensação foi de uma ‘desadaptação’, eles não gostaram mesmo. A Rafaela dizia claramente ‘Eu só quero ir para a aula da professora’. O fato é que a escola não se pensa integral. A parte da manhã é como se fosse um passar de tempo e os dois perceberam isso e preferiam ficar em casa”, narra. Tentativa frustrada para a mãe, os gêmeos seguiram o ano na escola apenas no turno da tarde. Sem choro.

No ano seguinte, nova tentativa de a duplinha encarar a escola manhã e tarde. “Dessa vez foi ainda mais nítida a insatisfação porque ambos afirmaram que não queriam. Minha filha falava ‘eu tô cansada das mesmas brincadeiras’ ou ‘prefiro ficar em casa’. O Cristiano dizia: ‘Quem é minha professora? Eu respondia e ele retrucava: ‘Então por que eu vou antes?’. Eram reclamações diárias dos dois. Foi então que comecei a entender que existe uma limitação de colocar em prática o conceito de escola integral que, na verdade, é fragmentada. Eu estava forçando uma situação e a parte lúdica do período da manhã não estava interessando a eles”, sintetiza.

Atualmente, na parte da manhã, Cristiano faz aula de luta, Rafaela de balé e a dupla ainda está matriculada na natação. Para Juliana David Jorge, mais do que oferecer um horário estendido, “é essencial que a escola seja integral na proposta” para atender à demanda “de um exército de mães que estão no mercado de trabalho e que não seja apenas um depósito de criança”, observa.

Marcelo Sant'Anna/EM/D.A Press
É comum se pensar a brincadeira apenas como diversão, sendo que o brincar é também processo de aprendizagem (foto: Marcelo Sant'Anna/EM/D.A Press)


Cidades educadoras
Carla Almeida, que é também coordenadora pedagógica no Centro Universitário UNA do programa ‘Escola Integrada’ do Ministério da Educação (MEC), diz acreditar que vem acontecendo um movimento de mudança, impulsionado pelas experiências bem-sucedidas de escolas públicas. “No caso específico da educação infantil, as Unidades Municipais de Educação Infantil (Umeis) de Belo Horizonte são uma referência de concepção mais avançada de educação integral. Já em relação ao ensino fundamental, o programa Escola Integrada é um projeto socioeducativo de grande impacto que tem transformado, inclusive, as comunidades”, cita.

Juarez Melgaço Valadares realiza desde 2000, pelo grupo TeiA da UFMG em parceria com outras universidades, pesquisas encomendadas pelo Ministério da Educação (MEC) de experiências públicas de escola integral em todo o país e reforça que a ideia da escola em tempo integral não é a que o aluno tem mais tempo de aula. “A lógica de educação integral nunca foi ‘ter mais do mesmo’”, salienta. Ou seja, com mais aulas de matemática as notas serão melhores, por exemplo.

Segundo ele, o objetivo é oferecer alternativas de aprendizagem do ponto de vista da cultura, do território da cidade. “Parte-se do pressuposto de que a cidade é educativa e a escola passa a considerar, por exemplo, que o museu é um espaço educador e meninos e meninas têm direito de ir lá”, explica.

O pesquisador diz que as Umeis foram estruturadas e pensadas dentro dessa perspectiva de que o aluno não tem que ficar o tempo todo dentro da escola. “O conceito de cidades educadoras é inspirada na experiência de Barcelona, na Espanha, e a proposta é que as crianças tenham acesso aos equipamentos públicos (museu, cinema, parques, teatro, espaços ambientais), com atividades de acompanhamento pedagógico orientadas pelo trabalho dos docentes. Não é passeio”, sintetiza.

O especialista diz que é comum as pessoas entenderem a socialização como brincadeira e a brincadeira apenas como diversão, sendo que o brincar é também processo de aprendizagem. “É necessário que as interações mantidas entre as crianças sejam vistas como espaços de aprendizagem. As aulas podem e devem ser mais dialogadas. A interação com o colega ou com o professor através de debates, de posições controversas, favorecem o aprendizado”, salienta.

Juarez Melgaço Valadares diz que a experiência da escola pública integral já atinge 85% dos municípios do país. São 50 mil escolas de educação infantil, fundamental e médio nesse modelo no Brasil.

‘Deixei o emprego para cuidar dele’
A administradora Agda Cardoso, 42 anos, é mãe de Davi, 3, e diz que o filho passou o ano de 2015 fora da escola. Até completar um ano, em outubro de 2013, o garotinho ficava com a babá em casa enquanto a mãe e o pai trabalhavam. Em 2014, entrou em uma escola integral. “Foi uma sucessão de episódios de doenças. Um mês sim, um mês não, Davi tomava antibióticos. Sem contar as viroses... Veio uma pneumonia grave e ele ficou internado por 17 dias, incluindo UTI. Naquele ano, deixei o emprego para cuidar dele e, por recomendação médica, meu filho não voltou mais à escola”, relata.

Arquivo Pessoal
"Deixei o emprego para cuidar dele", afirma Agda Cardoso, 42 anos, mãe de Davi, 3, que precisou sair da escola em tempo integral por causa de uma pneumonia grave (foto: Arquivo Pessoal )


Segundo Agda, a principal preocupação do pediatra era com a alimentação da criança. “Ele me perguntou se meu filho comia bem na escola. E foi difícil afirmar que sim. Na agenda [instrumento comum de comunicação entre as famílias e as escolas] às vezes vinha escrito que ele ‘aceitou bem’ e outras vezes que ‘não aceitou bem’”, pondera.

A mãe de Davi afirma que optou pela escola em tempo integral para estimular a convivência do filho com outras crianças, já que o garoto não tem irmão, primo ou prima, e, segundo Agda, convive muito com adulto. “Fiz essa escolha e tive que lidar com as consequências, mas sem dúvida, no aspecto socialização, foi muito positivo para o Davi. Antes de ir à escola, ele era tímido, tinha vergonha de se aproximar de outras crianças e nunca tomava iniciativa de uma brincadeira”, conta.

Para além da preocupação com a saúde do filho, Agda se diz mais crítica às propostas das escolas privadas que oferecem a educação em tempo integral. “De manhã, o Davi não tinha nenhuma atividade específica e orientada. Todo o conteúdo pedagógico era concentrado na parte da tarde. Eram 12 horas fora de casa. Eu entrava no trabalho às 8h e deixava meu filho na escola às 7h. Às 18h, encerrava minhas atividades e ia buscá-lo. Era muito desgastante”, recorda-se.

Para 2016, Davi já está matriculado em uma escola próxima de casa, meio horário. “Quando ele estiver adaptado, vou atrás de um novo trabalho. O melhor dos mundos seria encontrar uma oportunidade também de meio horário, algo muito difícil no Brasil. Assim, minha pretensão é contratar uma babá para ficar com ele pela manhã”, diz.

Experiências positivas
Os dois filhos da dentista Luciana Quintão, 39 anos, Bernardo, 5, e Beatriz, de um ano e meio, estão em escola integral. “Decidir é fácil, levar e deixar é que é o problema. Bernardo foi com 5 meses para a escolinha. Eu saí de lá e só chorava. Comecei a dirigir sem rumo, sem saber para onde estava indo. Com a Beatriz, que foi com 8 meses, chorei tudo de novo. Mas os dois se adaptaram muito facilmente”, relata.

 Bruna Tassis
"A família que deixa um bebê em um berçário não tem férias em julho, dezembro e janeiro", Luciana Quintão com os filhos Bernardo, Beatriz e o marido (Foto: Bruna Tassis) (foto: Bruna Tassis )


Para ela, o porém está na questão das viroses: “O adoecer é penoso”. Fora isso, Luciana Quintão se diz surpreendida com o desenvolvimento dos filhos. “A Beatriz come sozinha se precisar. Eles falam palavras que a gente sequer imagina que eles têm contato. A escola trabalha o lúdico, a afetividade, a vivência de múltiplas experiências”, resume.

Luciana Quintão diz acompanhar o cardápio do almoço e jantar oferecido pela escola e que condiz com os valores nutricionais que a família mantém em casa. “Além do conteúdo pedagógico a escola oferece atividades extracurriculares como judô, capoeira e balé. É uma escola construtivista que valoriza o brincar como processo de aprendizagem”, conta.

Lá, o horário integral é de 7h às 19h, mas Bernardo e Beatriz não passam esse tempo todo na escola. A mãe do casal fala com convicção e tranquilidade sobre a escolha que fez mas, mesmo para ela que optou pela escola em tempo integral, as férias são uma questão a administrar. “A família que deixa um bebê em um berçário não tem férias em julho, dezembro e janeiro”, pondera.

Arquivo Pessoal
"Ele fica em sala de aula nos dois turnos. Ele tem a mesma aula duas vezes, mas não no mesmo dia" - Bianca Guimarães, 35 anos, é mãe de Enzo, 3, e diz que ele é o único caso na escola que não faz a recreação na parte da manhã (foto: Arquivo Pessoal )


A advogada Bianca Guimarães, 35 anos, é mãe de Enzo, 3. Sócia do marido em um escritório de advocacia, ela não pode contar com a ajuda dos pais, que são de Pompéu, ou dos sogros, que vivem em Brasília. Dessa forma, optou pela escola em tempo integral.

O mais velho foi para o berçário aos 6 meses, mas teve pneumonia e ficou 40 dias internado. “O médico recomendou que ele ficasse em casa até o final daquele ano. E assim foi feito. Quando foi liberado, entrou na escola. Ele fica lá das 7h30 às 17h”, conta.

Bianca diz que vê claramente o quanto a escola é importante no desenvolvimento do filho. “Ele se alimenta muito bem, come de tudo. É um menino que prefere ler um livro a ficar sentado na frente de um Ipad”, diz.

A advogada conta que o modelo da escola de Enzo é dividido em recreação na parte da manhã e pedagógico na parte da tarde. “Ele fica em sala de aula nos dois turnos. Ele tem a mesma aula duas vezes, mas não no mesmo dia. Senão seria muito monótono. Na parte da manhã, o ‘Dia do Brinquedo’ é na segunda. Na parte da tarde, na terça. E é assim com a aula de música e as outras atividades”, explica. Bianca diz que Enzo é o único caso na escola que não faz a recreação na parte da manhã.

Pra ela, o importante é os pais se policiarem e dedicarem tempo de qualidade para os filhos em casa. “Nós chegamos às 18h, jantamos juntos, brincamos juntos. Conversamos sobre como foi o dia, ele me conta o que fez na escola. Até ele dormir, em torno de 21h30, meu tempo é todo dele”, finaliza.