Para pobres mortais que não são da área científica, ouvir as notícias sobre como andam os estudos no Brasil sobre a utilização de células-tronco pode soar como um passeio por um roteiro de ficção científica. Felizmente, não é. A ciência brasileira na área não apenas se diversificou, como tem apresentado resultados animadores, já validados pela comunidade no exterior. Hoje, quando se fala em pesquisas com células-tronco, o sangue do cordão umbilical – embora ainda mais conhecida – deixou de ser a fonte mais popular.
Já parou para pensar no potencial “escondido” dentro de um dente de leite? Pois tratamentos recentes usando a polpa do dente da criança têm se mostrado eficazes para reabilitação de lábio leporino e até mesmo reprogramação celular para estudos de neurônios de pacientes com autismo. Esses são alguns dos projetos que estão em andamento, em fases avançadas, respectivamente nos institutos de ensino e pesquisa dos hospitais Sírio-Libanês (IEP-HSL) e Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
A célula-tronco presente na polpa do dente de leite é do tipo mesenquimal, também existente na gordura corporal (tecido adiposo) e medula óssea. Ela tem capacidade de regeneração de músculo, de pele, de osso, de cartilagem, de fígado, de tecido nervoso e cardíaco. É mais versátil do que aquelas encontradas no sangue do cordão umbilical, chamadas hematopoiéticas, que podem se transformar somente em células de linhagem sanguínea.
Desde 2005, a cirurgiã-dentista e pesquisadora do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês, Daniela Bueno, se dedica a pesquisas sobre o uso das células-tronco da polpa do dente de leite. Começou no doutorado, sob a orientação da doutora Maria Rita Passos Bueno, e deu continuidade no pós-doutorado.
A pesquisadora demonstrou que as células-tronco mesenquimais encontradas no dente de leite podem ser usadas em tratamentos de malformação congênita, como as fissuras labiopalatais, mais conhecidas como lábio leporino. É quando o paciente tem uma abertura na região do lábio ou do “céu da boca”, fruto do não fechamento dessa estrutura ainda durante a gestação.
MENOS INVASÃO Tratamentos convencionais demandam a retirada de fragmentos ósseos do quadril dos pacientes para posterior implante na área fissurada. “É um processo que demora muito tempo no centro cirúrgico. A aplicação das células-tronco da polpa do dente de leite elimina a parte de remover o osso do quadril, reduzindo o tempo de permanência do paciente em centro cirúrgico, bem como o tempo de internação”, explica Daniela. Ou seja, é um procedimento muito menos invasivo e que tem se mostrado eficaz.
Atualmente, 10 pacientes foram submetidos a esse tratamento. Funciona assim: as crianças portadoras de fissura labiopalatal, que foram selecionadas para participar do estudo clínico, tiveram o dente de leite extraído e enviado para processamento. “Isolamos as células-tronco da parte viva do dente, chamada polpa, que é armazenada em nitrogênio líquido. Enquanto isso, o paciente precisa passar por uma série de tratamentos de ortodontia e previamente a realização de cirurgia para enxerto”, afirma Daniela.
Quando o paciente estiver pronto para a cirurgia, as células-tronco são associadas a um biomaterial. É como se fosse uma esponja, que é implantada na fenda no “céu da boca”. Nos últimos dois anos, a prática tem obtido resultados surpreendentes na formação de osso alveolar. “Quando falamos sobre armazenamento do cordão umbilical, as células-tronco servem só para tratar doenças do sangue. As células-tronco do dente de leite podem servir no futuro para tratar uma série de doenças porque elas têm capacidade de se transformar em diversos tecidos”, diz Daniela.
NEURÔNIOS É no Instituto de Pesquisa do Hospital Albert Einstein que a bióloga Karina Griesi, Ph.D.
Essa célula do sistema nervoso não pode ser isolada do corpo humano. Assim, usando a técnica de reprodução celular, os cientistas conseguem “copiar” os neurônios dos pacientes. A pesquisa consiste em comparar os exemplares in vitro, sejam aqueles diagnosticados com autismo e outras pessoas sem o autismo.
“Fazendo isso, nosso objetivo é entender o funcionamento dos neurônios dos pacientes. Observamos se está mais ou menos ramificado, quais sinais aparenta. Assim, tentamos entender que tipo de drogas podemos usar para reverter essas alterações”, detalha Karina. O autismo é um transtorno relacionado a diferentes mudanças no genoma, que variam de um indivíduo para outro.
Em um estudo publicado no ano passado, Karina Griesi e seu grupo de pesquisa conseguiram encontrar uma alteração presente no gene TRPC6. Os cientistas identificaram que uma substância, a hiperforina, presente na erva-de-são-joão, popularmente usada para o tratamento da depressão, era capaz de ativar a função desse gene específico.
Esse estudo foi feito em colaboração com a Universidade de Yale e a Universidade da Califórnia San Diego (UCSD), nos Estados Unidos. Diante da possibilidade de desenvolver um tratamento, a corrida agora é para conseguir recursos para dar continuidade à pesquisa.
ARMAZENAMENTO
AINDA NãO É PRáTICA
Apesar das pesquisas avançadas com o uso da polpa do dente de leite para extração das células-tronco, seu armazenamento ainda não é uma prática. O serviço, chamado criopreservação, atualmente é oferecido somente na rede privada. A R.Crio – Centro de Tecnologia Celular, com sede em São Paulo, começou a vender seus planos em agosto do ano passado.
De acordo com José Ricardo Muniz, fundador e presidente da companhia, foram cerca de 10 anos de pesquisa e um investimento da ordem de R$ 20 milhões para a montagem da estrutura. Ela inclui laboratórios para o processamento da polpa, assim como para o armazenamento. “A gente isola as células no laboratório, multiplica, testa e valida para então fazer a guarda”, afirma. Todo o processo é acompanhado por dentistas, biólogos, médicos e outros.
Os clientes têm a opção de escolher entre diversos planos. O básico inclui o montante inicial de R$ 2.980 e uma anuidade de R$ 735. Para Muniz, o maior desafio enfrentado é a qualidade da informação, por ser uma área muito nova. “Existe muita distorção. Nosso papel é fazer a ponte entre a pesquisa e a clínica”, diz..