Chefe do Laboratório de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e primeira a diagnosticar a presença do vírus zika no líquido amniótico de duas grávidas da Paraíba, Ana Maria Bispo admite que há um longo caminho para que pesquisadores alcancem conhecimento suficiente sobre os efeitos do vírus. É preciso explicar, por exemplo, que fatores estariam favorecendo sua invasão; por que, e como, ele atravessa a placenta e infecta o feto; quais são suas células-alvo no feto e se todas as gestantes em contato com ele têm bebês com microcefalia.
A relação de doenças infecciosas e de fatores genéticos e ambientais com a microcefalia começou a ser investigada, semana passada, pelo Grupo de Pesquisa da Epidemia de Microcefalia. Estão envolvidos professores, médicos e pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Estadual de Pernambuco, Hospital Universitário Oswaldo Cruz, e do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, além do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) e da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
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Prioridades
Sob coordenação do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães/Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco (Fiocruz-PE), o objetivo é identificar que outros fatores, além do zika, estariam relacionados com o aumento de casos da anomalia. Pela metodologia de caso-controle, será comparado um grupo de 200 crianças com microcefalia, nascidas vivas ou não, com um grupo de 400 crianças sem a malformação.
“Comparando os bebês diagnosticados com aqueles sem a malformação, poderemos verificar os fatores associados ao desenvolvimento da microcefalia. Há evidências fortes de que o zika vírus esteja implicado como fator causal, mas não existem estudos que explorem outros fatores que também poderiam provocar essa condição. É o que vamos fazer agora. A amostra pesquisada será testada em relação a diferentes possíveis agentes causais. Pode ser que o estudo fortaleça o zika como responsável, mas depois de afastar outras causas”, explica.
METODOLOGIA
Para reunir 600 bebês, o estudo envolveu oito maternidades, aquelas com os maiores registros de casos no estado. Com o consentimento dos pais, será coletado sangue do cordão umbilical de todas as crianças envolvidas. Os bebês com perímetro cefálico igual ou menor que 32 centímetros, considerados sob suspeita, de acordo com o protocolo do Ministério da Saúde, serão submetidos também a tomografia. Os demais farão uma ultrassonografia na transfontanela (moleira) para saber se há malformações no sistema nervoso central.
Já as mães dos dois grupos terão sangue coletado para saber quais anticorpos de doenças elas têm e responderão a um questionário que resgata, por exemplo, as infecções que já tiveram, quais medicações e vacinas tomaram durante a gestação, se há doença genética e outros casos de microcefalia na família. Todas as amostras de sangue coletadas na pesquisa de caso-controle serão testadas para zika, dengue, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes.
Um segundo estudo vai acompanhar gestantes com exantema para ver o desfecho da gravidez.
Segundo Celina Turchi Marteli, coordenadora do grupo, a coleta dos dados deve durar de seis a oito meses e uma primeira análise deve ser apresentada nos primeiros dois ou três meses do estudo, ou seja, ainda no primeiro semestre. “Esse projeto trará informações muito ricas do ponto de vista científico em relação ao uso de drogas e álcool no período da gestação, fatores genéticos, exposição a pesticidas, inseticidas e qualquer outro elemento que, se não estiver contribuindo para a microcefalia, poderá ser excluído como fator de interferência.”
OUTROS PROJETOS
Além do clínico-epidemiológico, que engloba esses quatro projetos, há outros dois grupos de pesquisas na Fiocruz-PE sobre o tema. Um deles, de virologia, visa compreender o zika vírus em detalhes. Desde o surgimento dos primeiros casos de microcefalia, pesquisadores testam amostras biológicas de diferentes grupos populacionais em relação aos vírus da dengue, chikungunya e zika. Outro grupo se dedica ao vetor, para entender a competência do Aedes aegypti na transmissão também desse vírus.
Impacto na visão
Médicos pernambucanos envolvidos no diagnóstico e na reabilitação dos bebês também estão fazendo análises de caso e passarão a acompanhar grupos de pacientes para avaliar os comprometimentos e a evolução clínica da anomalia congênita. “São muitas perguntas sem resposta. Por que Pernambuco? O que estaria facilitando um surto maior em alguns estados do Nordeste? Comorbidades influenciam?”, questiona a neuropediatra Vanessa van der Linden, a primeira a perceber o aumento de casos e uma das envolvidas na pesquisa.
A organização dessa rede de especialistas – com 24 médicos – já deu frutos.
Exames identificaram alterações em 40% dos bebês. Segundo a oftalmologista Camila Ventura, chefe do Departamento de Mácula da FAV, o olho é uma extensão do cérebro e, por isso mesmo, as crianças com alterações na estrutura ocular podem desenvolver problemas de visão. “Precisamos acompanhar também os bebês que não tiveram comprometimentos estruturais para ver o que pode surgir com o tempo”, explica Camila, segundo a qual também na visão o impacto da infecção congênita é maior quanto mais cedo o feto for atingido.
A retina, uma das estruturas comprometidas, é a camada mais interna do olho, responsável por captar as imagens. “Os exames revelam pigmentos e ou cicatriz nessa área, sinal de que a retina sofreu uma agressão. O nervo ótico, estrutura que leva a informação do olho para o cérebro, também foi afetado em alguns casos de microcefalia atribuídos ao zika vírus”, alerta. As mães estão sendo avaliadas, mas até aqui não tiveram nenhuma alteração.
“Mas o próprio vírus circulante destrói o tecido da retina? Ou alguma toxina liberada por ele é o agente que lesiona a estrutura ocular? A microcefalia, em si, causa tal comprometimento?.” Essas respostas dependem da análise minuciosa do globo ocular afetado. “Estamos aprendendo tudo com essas crianças. A ciência vai evoluir com elas. Não temos noção da dimensão do surto, nem o quanto vão enxergar. Quantificar isso só será possível com um acompanhamento de perto e por um longo período de tempo. Estamos de mãos atadas em muitos aspectos”, desabafa Camila.
INÉDITO
Foi no acompanhamento de prematuros em três maternidades do Recife que os oftalmologistas da FAV começaram a avaliar também os bebês com microcefalia e perceberam lesões no fundo do olho muito diferentes do habitual. Em parceria com a Unifesp, a FAV começou a investigar que porcentagem dos pacientes tinha o comprometimento oftalmológico. Para identificar o máximo de crianças afetadas, promoveu três mutirões, um deles na semana passada. O objetivo é o entendimento de como o vírus está comprometendo a visão.
ESTIMULAÇÃO
É preciso correr para que esses bebês sejam abordados precocemente. Segundo Camila, o período mais importante do desenvolvimento visual é até os seis meses de vida. “Se descobrimos antes disso, temos como tratar com estimulação visual precoce. Depois do primeiro semestre de vida, eles ainda melhoram a visão, porém menos”, explica. As primeiras 55 crianças avaliada já começaram a reabilitação.
Série de reportagens
Durante três dias, a repórter Carolina Cotta, enviada especial do Estado de Minas a Recife, acompanhou a angústia de mães e profissionais de saúde diante do surto de microcefalia em Pernambuco. Na série de reportagens publicadas desde domingo, foram relatados a busca por exames e explicações em hospitais-referência, o drama das famílias e os bastidores do diagnóstico de uma condição neurológica que cresceu mais de 10.000% em um ano. Até semana passada, já são 1.236 casos suspeitos só em Pernambuco. Em todo o país, os casos notificados somam 3.530.
Relembre as repotagens:
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