Fabricar um filho é fácil. Educá-lo é outra história. Que filho não é eletrodoméstico, nem vem com manual de instrução, o universo inteiro sabe. Estão aí as gerações que tiveram seus rebentos depois do movimento hippie, que enfrentam uma dificuldade a mais: abrir mão da superproteção e permitir que seus filhos alcem voo solo. Por causa disso, uma leva de jovens extremamente dependentes da aprovação dos pais sai do colégio, chegando às universidades e ao mundo do trabalho despreparada para os desafios impostos pela vida.
Mas, afinal, se conscientemente não desejamos criar filhos dependentes, inseguros e infelizes, onde estamos errando?
Uma decisão do Centro Universitário Belas Artes, na Vila Mariana, em São Paulo, talvez dê uma pista. Desde o segundo semestre de 2014, a instituição de ensino superior vem promovendo encontros entre pais e professores. A família também pode acompanhar a frequência dos filhos universitários – e suas notas – no portal da faculdade.
Isso significa que o excesso de proteção, que começa quando mamãe e papai tampam as tomadas de casa para o bebê não enfiar do dedinho e continua com a proibição de deixá-los engatinhar no chão ou subir na escada do parquinho sozinhos, atravessou o jardim de infância e os ensinos fundamental e médio para invadir a vida adulta dos “pimpolhos”, cada vez mais frágeis e infantilizados diante de um mundo que não dá mole para ninguém.
“Cuidar é uma coisa. Proteger e superproteger é outra”, alerta o psicólogo Rodrigo Prates, que acaba de receber a notícia de que será pai de uma menininha.
Limite ajuda a amadurecer
Um dos principais problemas dos pais contemporâneos ao educar seus rebentos é a dificuldade de estabelecer limites e de assumir de maneira total o papel de pai e mãe, uma vez que ter filhos é uma questão de escolha. Outra pedra no caminho é a desconexão com os próprios sentimentos, que acaba sendo reproduzida nos filhos. “Precisamos nos tornar exemplos dignos de serem imitados pelos filhos. Nos primeiros anos de vida, as crianças captam tudo o que está no entorno, como uma esponja, e reproduzem o que vivenciam. O principal papel de um pai e de uma mãe é ir lapidando a criança, ao mesmo tempo em que desenvolvem o seu próprio processo de autoeducação”, explica a psicóloga Clarissa Haddad, de 32 anos, mãe de João Gabriel, de 7, e de Lucas, de 1 ano e 2 meses. Ela chama a atenção para a tendência de projetarmos em nossos filhos os nossos medos, inseguranças, angústias e todas as sensações que não são trabalhadas interiormente.
Clarissa atende pais de crianças de até sete anos, é autora do e-book Limite na hora certa e fundadora da Escola de Pais Bee Family, na internet. Por meio de sua experiência no consultório, ela observa que os pais funcionam como a origem do problema. “Pais comprometidos com o processo de educação e abertos também vão se educar, compreendendo que não basta oferecer uma boa escola, um bom médico, aulas de natação, esportes e línguas, mas dar o exemplo”, diz. Educação pressupõe disponibilidade, estar presente, reconhecer os próprios medos, frustrações e limites. “Estamos sendo levados e manipulados pelo sistema. Nós sofremos pelo que deixamos de fazer e estamos muito ansiosos com o futuro, o zika vírus, a violência, mas estamos nos esquecendo de vivenciar o presente.
Para a psicóloga e terapeuta de família Ana Carolina Morici, os progenitores acreditam ser responsáveis pela felicidade da prole, engano que leva à falta de limites e posterga o amadurecimento, necessário para que ela aprenda a lidar com as agruras naturais da vida. Nesse sentido, o trabalho de arrumar o quarto, dar banho, fazer comida, pagar escola, levar à natação e outros cuidados recorrentes – e quase ininterruptos – demandados pelos pimpolhos se transformam em café pequeno. Difícil mesmo é educar um ser humano para a vida. “Os pais acham que são totalmente responsáveis pela felicidade dos filhos e isso não existe. Cada um tem o seu modo de ser feliz. Pais de classe média e média alta procuram, além de dar estudo, prover o apartamento, o carro. Com isso, seus filhos não experimentam os nãos da vida, que são muito importantes e fazem crescer, já que a falta leva à busca”, resume a psicóloga.
Crianças que crescem assim, transformam-se em adultos que não toleram frustrações. “Apesar da boa intenção, esses pais estão criando filhos despreparados para lidar com os trancos da vida”, sustenta Ana Carolina. “Tenho muita dificuldade de falar não. Sinto medo de minhas filhas ficarem tristes.
“Vou lá e dou um presente. Ela me respondeu, me tratou mal, sou a mãe dela e ainda por cima dou um presente um dia após a briga”, resume. Mércia lembra que, quando era menina, não tinha conversa. Se ela e a irmã fizessem algo errado, o pai levava para o quartinho e batia.
SACRIFÍCIOS Como milhões de outras mães de sua geração, longe de defender a agressão física como solução para o problema, Mércia se sente responsável pela felicidade das filhas. “A gente não quer ver filho triste. Se você tem condições de dar o que eles querem, por que não? Claro que presentes não trazem felicidade, mas vê-las felizes por um momento dá um bem-estar”, diz Mércia, para quem a geração atual é “bem complicada”. Sua filha mais velha, por exemplo, reclama muito. Fica triste por causa do namorado e outras coisas. Nessas ocasiões, ela tenta “amenizar” a tristeza da filha, o que acaba ocorrendo por meio de alguma coisa material. “Mas isso não ajuda, só funciona no momento. No dia seguinte, ela está infeliz de novo”, ressalta. Mesmo assim, nunca tentou mudar. “E nem sei se vou”, admite.
Para Ana Carolina Morici, por não marcarem o “não”, os pais contemporâneos levam seus filhos a não tolerar frustrações quando se tornam adultos. “A consequência disso é que, ao arrumar emprego, na primeira exigência do chefe ou na primeira pressão, já que o mundo capitalista é muito competitivo, eles não dão conta e acabam deprimidos ou pedem demissão porque não estão preparados para aguentar o tranco”, sustenta. No afã de superproteção, os pais fazem de tudo, inclusive sacrifícios financeiros, pelos rebentos e acabam trabalhando para promover bens de consumo para os filhos. “Eles pedem as coisas e os pais acham que são obrigados a dar, porque, do contrário, os filhos ficarão traumatizados. Mas, ao contrário do que pensam, frustrar não é traumatizar. A frustração é necessária para a formação da estrutura emocional da pessoa”, orienta.
Reflexo do passado
O psiquiatra, educador e escritor Içami Itiba, que morreu em agosto de 2015, aos 74 anos, dizia que os pais contemporâneos tentam corrigir a própria infância nos filhos e, por isso, deixam os rebentos soltos. Quando a estratégia dá errado, esses mesmos pais tentam impor uma autoridade que não foi conquistada da forma correta. Itiba foi enfático ao avisar: “'Me respeita que eu sou seu pai' não funciona com essa geração”. Numa de suas palestras, lembrou que, antes, havia “o pai bravo, que mal conversava com o filho e só chegava na hora de resolver um problema, já na ignorância”. Ao contrário de hoje, quando os pais venceram na vida e não querem que os filhos sofram o que eles sofreram.
“Antes, os casais tinham muitos filhos e dormiam todos no mesmo quarto. Se o cara não se esforçasse para sair dali, para conquistar o seu espaço, ia ficar naquilo para sempre. Mas, hoje, os pais acabaram com a meritocracia. O filho não precisa lutar para nada”, resumiu. O lado bom de tudo isso é que o pai está mais próximo dos rebentos. Na visão dele, esse pai não evoluiu somente para “fazer a unha e comprar produto de beleza”. Avançou também trocando fraldas, viajando sozinho com os filhos, estando mais presente e percebendo que também é responsável pela educação das crianças que ajudou a trazer ao mundo.
Ainda assim, impor limites e bancar os 'nãos' é uma dificuldade quase generalizada – entre homens e mulheres. A engenheira Janaína Machado, de 42 anos, tem dois filhos, João, de 14, e Gabriel, de 10. Separada e trabalhando fora, ela conta que tem dificuldade em fazer com que os filhos a obedeçam. “Você fala e eles não fazem o que você mandou. Aí, chega em casa cansada e acaba deixando para lá. É difícil ficar firme”, reconhece. Para Janaína, o mais complicado é o excesso de coisas, como o computador e o videogame. “Hoje, a vida é muito diferente. Antes a gente ia para a escola, chegava em casa e tinha de fazer o para casa. Agora tentamos impor um controle razoável, mas é difícil”, diz. Tão difícil, que, às vezes, quando João e Gabriel não obedecem quando ela determina que eles saiam do computador, ela desliga o relógio de energia. “Às vezes, sou obrigada a usar esses recursos 'malvados'”, reconhece.
Às vezes, quando os filhos têm um problema, ela sente que deveria trabalhar mais e ganhar mais para pagar uma terapia. Nessas ocasiões, acredita que isso evitaria problemas futuros. “Antes, ia provendo tudo o que eles queriam. Mas o tempo foi passando, as dificuldades aumentando e venho tentando mostrar os limites aos dois dentro de uma racionalidade, mas tem hora que volto atrás”, resume. Foi o que ocorreu no último Natal. “O mais velho ganhou um computador e o mais novo pediu um joguinho e ganhou, mas, depois, ele pediu também um patins e acabei dando, porque o presente do outro era mais caro e não achei justo”.
CONSCIÊNCIA Para Clarissa Haddad, psicóloga e fundadora da Escola de Pais Bee Family, que oferece cursos on-line, ao reproduzir o sistema sem refletir sobre ele, os pais acabam educando pelo medo, por ameaças, castigos e recompensas. Ela se pergunta por que acreditamos que a criança tenha que sofrer ou receber recompensa para aprender algo. “O aprendizado precisa de tempo e interesse, mas, hoje, a gente não está disponível. A questão é que isso é um pressuposto para educar”, define. Como consequência, o mundo contemporâneo vem formando adultos medrosos, inseguros, acríticos e emocionalmente desestruturados, já que as crianças, imitando os adultos, não têm contato com o que estão sentindo.
“O sistema quer que eu fique distraído e tome um remedinho, em vez de questionar o que está por trás. Assim, a gente educa os nossos filhos, duplicando. Mas quando paro, observo e vejo como me sinto, começo também a mudar a minha forma de educar o meu filho, a partir do meu processo de busca de consciência e de questionamento de valores”, diz Clarissa.
A maior parte dos clientes do psicólogo Rodrigo Prates está na faixa etária entre os 15 e os 18 anos. Eles têm uma característica em comum: estão emocionalmente despreparados, esperando que o mundo os abrace e supra suas necessidades e dificuldades. Ao mesmo tempo, demonstram intolerância à frustração, como se a decepção fosse algo negativo. “Se você enxergar a frustração como um degrau, e não como um obstáculo, você literalmente sobe um nível, porque ela é um degrau que, necessariamente, projeta as pessoas para cima e para a frente. A função do degrau é elevar e te levar”, analisa. Para ele, os pais vêm cometendo uma cadeia de erros na hora de educar seus filhos.
“É um ciclo. Muitos pais também não tiveram facilidade de lidar com a frustração da própria vida. Associada a isso, tem uma coisa contemporânea, que é esse tanto de coisas materiais que são direcionadas para os filhos, desejos que, às vezes, os pais nem têm condições materiais de atender.” Nessas situações, os próprios pais saem frustrados e não dão conta de lidar com o fato de não serem provedores emocionais e materiais perfeitos. É o caso de um de seus pacientes, que pediu aos pais que patrocinassem uma viagem internacional que eles não tinham condições de bancar.
Com a dificuldade emocional dos pais de lidar com a frustração dos filhos, eles se comprometeram e tiveram muitas dificuldades para pagar o sonho do filho, e isso se arrastou por muito tempo. O problema é que o filho que foi beneficiado pelo sacrifício dos pais não deu valor e desperdiçou a oportunidade, transformando uma viagem que deveria ser de aprendizado num passeio de turismo. “Além de se comprometerem financeiramente, o fato de não se posicionarem diante do filho causou desgaste emocional entre o pai e a mãe”, explica Prates.
NA CONTRAMÃO DA TENDÊNCIA A farmacêutica Andressa Melo Ferreira, de 43, e seu marido, o empresário Alexandre de Castro, de 52, são pais de Bruno, de 9, Arthur, de 6, e Marcela, de 3. Com uma família grande para os padrões atuais, a maior dificuldade, segundo a mãe, é pagar escola boa para todos os filhos. Além da lida diária, que demanda paciência e organização, na contramão da tendência, o casal se preocupa em preparar os filhos para lidar com as frustrações. Ao mesmo tempo em que afirma que, se pudesse, faria tudo o que os filhos desejam, ela tem consciência de que não deveria agir assim, mesmo se tivesse condições financeiras. “As crianças precisam aprender a lidar com as frustrações. Na vida, numa hora a gente perde, noutra, a gente ganha. Se elas não estiverem preparadas para isso desde cedo, quando chegarem à vida adulta e começarem a se deparar com problemas, não saberão como lidar com os desafios e poderão entrar em depressão”, acredita.
Depoimento
Eliane Brum
Revista Época, 9/8/11
“Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E, por tudo isso, sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.” .