O barulho das crianças é percebido desde o portão do sobrado. “Mãe, eles chegaram”, grita da janela do segundo andar Maria Eduarda, 8, depois de ver o carro da reportagem. Rapidamente, João Paulo aparece para saber de quem se trata. Todos se aglomeram na sala, inclusive os gêmeos Marcos e Pedro, de apenas nove meses.
“Viu que são crianças absolutamente comuns?” A observação da mãe confronta muitas das informações difundidas ao longo dos últimos dois meses, quando o Ministério da Saúde começou a investigar a relação do zika vírus, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, com a microcefalia. “Não se pode fazer terrorismo. As mães que recebem esse diagnóstico ficam fragilizadas, sem ter a certeza de que o filho vai vingar. Os médicos são pessimistas. Um deles me disse que essas crianças nem chegam à fase adulta”, reclama Adaiane.
A malformação deixou marcas indeléveis. Mateus não escuta e não fala. João ouve parcialmente e seu olho direito é menor que o normal, o que dificulta a visão. Mateus já estuda na Escola Bilíngue de Taguatinga, unidade pública de ensino onde aprende a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e, no ano que vem, o irmão será matriculado na mesma instituição de ensino. Ambos possuem dificuldades de compreensão e aprendizagem. “A gente tem que se adaptar ao tempo deles. Um firmou a cabeça com um ano, o outro demorou mais, por exemplo.
Tratamento
A estimulação precoce das crianças começou aos quatro meses de vida. Hoje, frequentam o neurologista, a fonoaudióloga, o fisioterapeuta, entre outros especialistas. Não tomam nenhum tipo de medicamento. “É impossível limitar as possibilidades deles. Só saberemos o que são capazes ao proporcionarmos desafios”, explica Adaiane, ao ressaltar que Mateus conquistou oito medalhas de ouro em corridas infantis. Todo o tratamento é feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no Centro Especial nº 2, em Ceilândia. Contudo, existem gargalos. “Onde há atendimento, a demanda é alta. Realizar exames é a maior dificuldade”, detalha. Devido às falhas, por vezes ela recorre ao plano de saúde da família para agilizar o processo.
Em Brasília, oito hospitais são habilitados a receber crianças com essas condições. Entre eles, o Hospital da Criança de Brasília José Alencar (HCB) e o Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). Apenas Sobradinho e Taguatinga contam com unidades do Projeto Centro Especializado de Reabilitação (CER). “A Coordenação de Neuropediatria está realizando um estudo, em conjunto com o Ministério da Saúde, para ampliar as estações”, informou, em nota, a Secretaria de Saúde. Ainda não há data para a inauguração de novos endereços de atendimento.
“A gente fica triste. Não é fácil de ouvir, mas o diagnóstico não é uma sina terrível. Hoje, o que me enraivece é o preconceito das pessoas com meus filhos. Muita gente olha com nojo, como se eles tivessem uma praga contagiosa. Não precisei de apoio psicológico, me apeguei em Deus”, relata a mãe. Toda a rotina da casa é pautada na integração entre as pessoas. Convivência é a palavra de ordem. “Os meus outros quatro filhos têm consciência das dificuldades dos irmãos e se adequam a elas. A deficiência está em quem não consegue lidar com as diferenças. Nesse jogo, tenho de ter rebolado, porque, querendo ou não, Mateus e João demandam mais atenção e podem causar ciúmes”, esclarece.
A avó colabora com o cuidado dos netos, uma vez que a moça que auxiliava a família deixou o emprego. “Nunca fizemos diferenciação entre eles. Essa meia dúzia de crianças brinca, briga e faz bastante barulho, como todas as outras que você conhece”, conta a dona de casa Marizeide Matos, 61 anos, ao ser interrompida pelos sinais de João, ao indicar que a mãe estava preparando suco. “O apoio da família é fundamental, sobretudo no diagnóstico. Muitos médicos não lançam luz ao caminho escuro que apresentam às mães”, ressalta.
Adaiane abandonou o trabalho, mas não enterrou os sonhos. “Quero fazer um curso superior na área da saúde, mas ainda não defini qual. Eu não parei, estou estacionada por um momento”, brinca. Hoje, a família de classe média sobrevive da renda do pai das crianças, o técnico em telecomunicações Gleydson Ferreira Ramos, 39, que passa boa parte da semana viajando.
O sinal de joia faz parte da comunicação de Mateus e João. Ao nos despedirmos, essa é a linguagem. João tenta chamar a atenção ao mostrar que alcança o volante do carro da família. Repito o gesto para Mateus. Ele devolve com um tímido sorriso e um instantâneo abraço, como quem quer avisar que não há barreiras nessa caminhada.
Planejamento necessário
“A microcefalia sempre existiu. É uma alteração com a qual convivemos no dia a dia, mas com menos intensidade que agora. Em todos os casos, independentemente de ser causada por zika vírus ou não, a conduta exige avaliação médica e monitoramento contínuo. Uma vez que os sintomas são os mais variáveis, não temos como definir. Por isso, a estimulação precoce é essencial. O sistema público não absorve toda a demanda e os gargalos devem aumentar. Haverá dificuldades em atender essas crianças, mas é preciso planejamento por parte do governo.”
Christian Muller, europediatra e presidente da Sociedade de Pediatria do DF
Mais casos registrados
O boletim divulgado pelo Ministério da Saúde registrou 11 casos de microcefalia em Brasília. Uma morte foi registrada, mas, segundo a Secretaria de Saúde, não tem relação com o zika vírus. “O bebê apresentava diversas malformações, entre elas a microcefalia”, justificou, em nota, a pasta. Dos casos apresentados, nove já tiveram o diagnóstico de microcefalia descartado e dois permanecem em investigação, de acordo com o Executivo local. No Brasil, são 2.782 mil casos de microcefalia e 40 mortes..