“Um estudo com essa casuística é pioneiro no mundo: são 408 casos estudados no período de 23 anos, em um único serviço, com a mesma conduta e os mesmos exames”, comemora o orientador do trabalho, Gil Guerra Júnior, que coordena o Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo (Giedds) da Faculdade de Medicina da Unicamp. O cientista conta que o principal trabalho existente nessa área foi publicado no ano passado e envolveu 600 casos, mas relacionados a todos os países europeus. “Esse trabalho no Hospital das Clínicas é muito mais homogêneo e muito mais importante para analisar resultados a longo prazo”, compara.
Uma das autoras do estudo, Georgette de Paula conta que os casos recebidos pela instituição brasileira são de pacientes de todo o país.
As crianças atendidas no hospital da Unicamp foram classificadas em dois grupos: com evidente alteração genital e que o pediatra não tinha condições de saber se era menino ou menina, encaminhando a criança ao centro de referência; e com alteração tão sutil que família e médico não a percebiam inicialmente. Nesse caso, geralmente a ajuda era procurada tardiamente. Por vezes, o problema era descoberto somente na puberdade.
Falha cromossômica
Georgette explica que o ser humano recebe 44 autossomos (22 cromossomos do pai e 22 da mãe), mais dois cromossomos sexuais: um X da mãe (que é XX) e um X ou um Y do pai (que é XY). A junção dos cromossomos resulta no cariótipo 46,XX ou no 46, XY, uma menina e um menino, respectivamente. Qualquer erro na passagem dos cromossomos do pai e da mãe implica linhagens diferentes e anomalias. De forma mais rara, de 10% a 15% dos casos são de aberrações cromossômicas, com crianças que têm as linhagens masculina e feminina associadas.
“Entre os 408 casos de ambiguidade genital atendidos na Unicamp, mais da metade dos diagnósticos foi de pacientes de cariótipo 46, XY, com 250 casos (61,3%); 124 pacientes eram 46,XX (30,4%); e 34 com aberração de cromossomos sexuais (8,3%)”, conta a pesquisadora. A predominância de meninos ocorre porque a formação genitália masculina, interna e externamente, é muito mais complexa, tanto do ponto de vista genético quanto do hormonal. Desse modo, qualquer erro na produção e na quantidade de hormônios resultará em alguma alteração. A formação da genitália feminina, por outro lado, é mais simples, pois decorre da ausência dos hormônios masculinos.
Em uma genitália aparentemente masculina, há três características mais importantes de anormalidade: o pênis pequeno, a hipospádia (abertura do canal da urina abaixo da ponta do órgão genital) e os testículos não aparentes. Quando a genitália é aparentemente feminina, as principais alterações são: clitóris aumentado; grandes lábios fechados, como se formassem uma bolsa escrotal; e excesso de massa na região inferior da virilha, o que pode gerar ambiguidade ao aparentar um testículo.
Diagnóstico
A investigação médica, explica o pediatra Gil Guerra Júnior, começa com a avaliação clínica e os exames hormonais e citogenético (cariótipo), que geralmente são suficientes para a definição do sexo de uma pessoa. “Se necessário, realizamos cirurgias diagnósticas para observar a genitália internamente: se há útero, ovário, um duto diferente, testículos etc.
Com a confirmação do sexo da criança, é o momento da cirurgia, um procedimento complexo, principalmente para os meninos.“A dificuldade está em refazer o canal da urina para levar a abertura até a posição correta, o que pode exigir duas ou mais cirurgias. Sem isso, o menino não conseguirá urinar em pé e, mais tarde, virá a questão da condução do esperma na relação sexual”, diz Gil. Quando o pênis é pequeno, realiza-se um tratamento com reposição hormonal na infância para que o órgão chegue ao tamanho normal na puberdade. “Para a menina, a complexidade está em ampliar a vagina a fim de assegurar uma relação sexual adequada no futuro. Por vezes, é necessária nova abordagem na puberdade”, complementa.
O pediatra conta que a ambiguidade genital ainda é considerada pelos médicos uma doença rara, e que a pesquisa coordenada por ele ajuda a mudar esse cenário. “Um aspecto importante desse trabalho é mostrar ao pediatra, primeiro médico da criança, que a ambiguidade genital não é tão rara, bem como suas implicações. O pediatra deve tranquilizar a família, assegurando que aquela criança tem um sexo. Nunca dizer que ela não tem sexo ou que tem dois. E que, assim como, para os problemas do coração, por exemplo, para a ambiguidade genital, também existem exames e tratamento”, defende.
Análise também psicológica
“Cada caso é diferente.
Henrique Campagnollo D’Ávila Fernandes, mestrando de psicologia pela Universidade de Brasília (UnB)
Cirurgia em xeque
Dos 408 casos de ambiguidade genital atendidos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre janeiro de 1989 e dezembro de 2011, 238 tiveram o sexo de criação final masculino e 170, o feminino. Um aspecto agravante da questão é que entre 50% e 60% das crianças chegaram ao hospital registradas, com idade acima de 6 meses. “A recomendação ao pediatra é, na dúvida quanto ao sexo do bebê, não deixar os pais o registrarem antes de encaminhá-lo a um serviço de referência, para o diagnóstico correto. Quem não tem conhecimento confunde alteração genital com o que antigamente era visto como hermafroditismo”, ressalta Georgette de Paula, uma das participantes do estudo.
Autor da monografia Intersexualidade e assistência na rede pública no Distrito Federal: limitações e desafios, Henrique Campagnollo D’Ávila Fernandes não concorda com a cirurgia imediata para a definição de genitália: “A visão que predomina ainda na área biomédica é a de que isso é considerado uma anomalia que deve ser corrigida. O psicólogo, porém, não deve enxergar o fenômeno dessa forma. O grande problema é que, por não ter aprendido na graduação, ele acaba seguindo/concordando com o que a equipe médica decide, o que pode acarretar uma violação do direito da criança de crescer com o corpo que tem”, defende.
O mestrando em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) diz que há muitos riscos envolvidos nas cirurgias de adequação do sexo. “E eles podem trazer mais sofrimento ainda para as famílias e, principalmente, para a criança. Por isso no atendimento com os adultos sempre alertamos que o corpo é da criança. E, caso depois do diagnóstico dado pela equipe médica não se precise intervir no corpo cirurgicamente (para retirar uma gônada que pode malignizá-la, por exemplo), deve-se esperar a criança crescer para decidir por si mesma”, argumenta o psicólogo.
A pesquisadora da Unicamp Georgette de Paula não concorda com a visão de Henrique Fernandes: “Sabemos que é angustiante não poder responder prontamente aos pais qual o sexo do recém-nascido. É importante informar que o bebê nasceu com alteração genital, mas que apresentará uma definição de sexo sim, sendo que, para isso, será necessária uma investigação médica”, diz..