Genética explica particularidade dos humanos em manter capacidade cognitiva com o avanço da idade

Na maioria das espécies, quando o animal não consegue mais procriar, morre

por Isabela de Oliveira 14/12/2015 15:00
A longevidade da maioria das espécies é determinada pela capacidade reprodutiva. A regra é que, uma vez que o animal não consegue procriar, ele morre. Os humanos são uma rara exceção, pois continuam vivos e funcionais mesmo após o declínio da fertilidade. Diferentemente da imagem de perda de funcionalidade que as culturas modernas pintam dos seus anciões, a evolução os programou para serem peça fundamental de sobrevivência da espécie. O segredo está no genoma: variantes genéticas se desenvolveram especificamente para proteger os idosos contra doenças neurodegenerativas e cardiovasculares, preservando, assim, as contribuições deles para a sociedade.

Na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas), pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia (EUA) tentaram responder à questão: quais variantes genéticas foram importantes para manter a capacidade cognitiva dos mais velhos, garantindo que a engrenagem da estrutura social complexa dos humanos fosse bem-sucedida? Para isso, investigaram os polimorfismos de nucleotídeos únicos, alterações na base do DNA que mudam a função do gene.

Anderson Araújo / CB / D.A Press
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Um dos genes com variantes é o CD33, proteína projetada na superfície de células responsáveis por reações imunológicas que impedem a autodestruição delas. Estudos anteriores sugeriram que uma forma de CD33 suprime o acúmulo de placas beta-amiloide no cérebro, substâncias ligada ao surgimento da doença de Alzheimer. A enfermidade é exclusiva de humanos e se agrava por inflamações e pela doença vascular cerebral. Ao comparar o nível humano de CD33 com o de chimpanzés e outros primatas, a equipe liderada por Akit Varki notou que a presença da variante protetiva no homem é quatro vezes maior do que a nos parentes próximos.

O grupo encontrou variações humanas específicas em outros genes envolvidos na prevenção do declínio cognitivo, como o ApoE. A forma ancestral dele, o ApoE4, é, na realidade, um fator de risco conhecido para o Alzheimer e a doença vascular cerebral. Porém, o estudo constatou que as variantes ApoE2 e ApoE3 podem ter evoluído para proteger as pessoas contra a demência. “Parece que os humanos desenvolveram uma espécie de efeito colateral protetivo. Ou seja, para os genes que predispõem a demência, surgiram variantes deles próprios que protegem ou, de certa forma, anulam e reduzem o risco de demência”, explica Varki ao Correio.

Segundo o autor, ainda é difícil afirmar se houve uma seleção ancestral das variantes que protegem as pessoas da demência porque os sinais de seletividade foram apagados pelo tempo. “No entanto, as variantes genéticas são encontradas em todas as populações humanas, o que indica que elas devem ter aparecido antes da origem dos humanos modernos, cerca de 100 mil anos atrás. Por serem variantes muito comuns e terem efeitos benéficos, consideramos que houve, de fato, uma seleção”, diz Varki.

O pesquisador acrescenta que todas as variantes protetivas estão presentes nas populações da África, o que sugere que tiveram origem anterior à da espécie humana. Médico geneticista Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Gustavo Guida ressalta que a forma protetiva desses genes não está presente em todas as pessoas. As que as têm, por sua vez, apresentam menos riscos de desenvolver males próprios da velhice. Segundo Guida, mesmo que se consiga especular sobre as origens dessaS formas mutadas, pelo menos por enquanto, é difícil descobrir o que surgiu primeiro: a variedade protetiva ou a que favorece as doenças.

“Pode ser que a forma original tenha sido a boa, mas, por algum motivo, a população desenvolveu e fixou a outra. A genética é uma área complexa e não linear. Um gene que, no fim da vida, tem efeito deletério pode ser o mesmo que, na juventude, ofereceu muitos benefícios”, pondera Guida. A hipótese de Varki é que as variantes que predispõem a demência são, de alguma forma, ligadas às que promoveram a reprodução bem-sucedida dos jovens. “Toda a evolução envolve forças contraditórias selecionadas para um momento determinado. Então, uma coisa que era boa há 10 mil anos pode não ter sido benéfica cinco milênios mais tarde”, justifica o geneticista.

Para se ter uma ideia da complexidade dessa mecânica, antes do Projeto Genoma Humano, iniciado em 1990, estimava-se que o organismo humano deveria ter pelo menos 100 mil genes. “Hoje, consideramos que existam por volta de 20 mil genes. Vários deles codificam proteínas que, depois, dão origem a outros dois ou três tipos de proteínas diferentes. Esses genes são como guarda-roupas que mudam de combinação conforme a necessidade, produzindo várias formas de uma única proteína que, depois, apresentarão funções diferentes umas das outras”, completa Guida.

Trabalho inédito
Cláudia Barata Ribeiro, médica neurologista e fisiatra do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, considera o trabalho de Varki e colegas inovador e, por enquanto, único. “O mais interessante é que, além de médico e científico, o estudo possui caráter sociológico. O ser humano é realmente um dos poucos animais a viver tanto tempo após a fase reprodutiva, e isso é uma conquista evolutiva excepcional porque permitiu aos avós e aos outros anciões se manterem funcionais, repassando cultura para os mais novos, o que é imprescindível para a sobrevivência da nossa espécie”, analisa a também presidente da regional do Distrito Federal da Associação Brasileira de Medicina Física e Reabilitação (ABMFR).

Para a médica, deve demorar até que os achados possam ser traduzidos em práticas clínicas. “Mas poderá chegar um tempo em que será possível manipular os genes. Então, a partir desses resultados, outros pesquisadores buscarão substâncias que bloqueiem o gene ruim”, cogita a especialista. Gustavo Guida complementa que, apesar de poucos, existem alguns medicamentos baseados nesse sistema. “No século passado, os antibióticos foram a grande revolução da medicina. Agora, estamos vendo surgir tratamentos que permitem a modulação da expressão de genes, que se tornam alvos diretos da terapia”, conta.

Essa mesma filosofia, aposta Guida, complementaria a recente descoberta norte-americana. “Poderiam, por exemplo, desenvolver formas que impedissem o bloqueio do organismo para variantes protetivas ou outras que aumentassem a função dessas proteínas benéficas. Se uma pessoa sem demência tem atividade de 100% de uma proteína, e outra pessoa com a doença, 50%, então, talvez, pudéssemos criar formas de suplementar essa molécula deficiente para aumentar sua performance”, imagina.

Aquáticos longevos
As orcas e baleias-piloto também têm tempo mais prolongado de vida pós-reprodutiva. As orcas mais velhas influenciam o sucesso reprodutivo e a sobrevivência das gerações subsequentes, o que implica que as aptidões dos indivíduos velhos aumentam e garantem sua integração com o grupo.


Cronograma reformulado
“A seleção natural opera principalmente no sucesso reprodutivo. Assim, a força dela diminui muito rapidamente após a idade média de reprodução da maioria das espécies. Uma seleção forte para variantes genéticas que favorecem o sucesso reprodutivo junto da seleção cada vez mais fraca de seus potenciais efeitos secundários negativos resulta no envelhecimento. Para o nosso conhecimento, as variantes dos genes CD33 e ApoE são as primeiras que surgiram para proteger pessoas da demência tardia. Se compreendermos melhor as versões ‘boas e más’ dos genes nas pessoas, podemos ter noções de como combater os ‘maus’, o que poderá render, no futuro, novos tratamentos para a demência. A grade novidade do nosso estudo, eu acho, é a ideia de que a cultura humana pode ter reformulado o cronograma da seleção natural devido à importância da transmissão cultural no fim da vida. E isso graças à nossa capacidade de comunicação.”

Pascal Gagneux, pesquisador da Universidade da Califórnia e um dos principais autores do artigo