Mais de 1 bilhão de pessoas no mundo sofrem de infecções parasitárias causadas por vermes, principalmente em regiões tropicais sem saneamento básico. Os sintomas nocivos dessa relação parasitária são bem conhecidos e podem variar de anemia a problemas cognitivos. Mas a ligação benéfica entre esses parasitas e a gravidez ainda é um tema pouco explorado na medicina. “Até onde sabemos, esse é o primeiro estudo a analisar em detalhes a relação entre helmintos e fertilidade”, ressalta Aaron Blackwell, professor de antropologia na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e um dos autores do estudo.
Um dos motivos que levaram os pesquisadores a escolher a população chimane para o trabalho foi o alto índice de parasitose registrado na comunidade amazônica: cerca de 70% deles são infectados por vermes ao menos uma vez na vida. Outro importante aspecto para a pesquisa foi o alto índice de nascimentos entre as indígenas, com uma média de nove filhos por mulher.
Durante nove anos, os pesquisadores registraram as gestações e os casos de parasitose de um grupo de 986 chimanes.
Essa relação contraintuitiva poderia ser explicada por mudanças que ocorrem no sistema imune das gestantes. Quando uma mulher engravida, o organismo dela induz um perfil de resposta do tipo Th2, que o adapta para a chegada de um invasor e evita que ele seja atacado por células imunes. “Como o embrião tem antígenos que vêm do pai, o organismo materno tende a reconhecer o feto como algo estranho. Então, esse perfil anti-inflamatório é importante na gestação para impedir que a mãe rejeite o feto”, explica Bellisa de Freitas Barbosa, especialista em imunologia da reprodução e professora de imunologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais.
Esse é o mesmo tipo de processo que ocorre no caso da infecção pela Ascaris, que também induz a resposta imunológica do tipo Th2. Essa coincidência, defendem os pesquisadores, poderia promover a concepção e ser benéfica para o desenvolvimento do bebê. “Esse é um estudo muito original”, avalia, em entrevista à Science, o imunologista Rick Maizels, da Universidade de Edimburgo. “Acredito que ele vai estimular várias outras pesquisas”, ressaltou o especialista, que não participou do estudo.
A relação parasitária inusitada não seria prejudicial à saúde das mães, diferentemente das infecções causadas por outras espécies de helmintos, como o Ancylostoma duodenale. Enquanto o Ascaris só vai atrás dos nutrientes dos alimentos consumidos pelo hospedeiro, o verme que causa a ancilostomíase tem o hábito de furar a parede intestinal e sugar o sangue da pessoa contaminada. Esse tipo de infecção, que no Brasil é conhecida vulgarmente como amarelão, está associada à anemia e à perda de peso das gestantes, e pode ser bastante prejudicial ao bebê. O estudo com as mulheres chimanes mostrou que as mães que sofriam infecções desse tipo de parasita tinham uma fertilidade menor do que a média, com até três filhos a menos. A resposta imune provocada por esse helminto, ressaltam os pesquisadores, é diferente da identificada na ascaridíase.
Novos estudos
Os autores ressaltam que a relação benéfica ainda é não foi totalmente comprovada.
Os autores acreditam que as análises científicas sobre a relação entre o sistema imunológico e a parasitose podem levar a um novo entendimento sobre a forma como essa condição é tratada. As mudanças imunes provocadas pelos parasitas, ressaltam, também afetam a sucessibilidade a doenças como a malária e a tuberculose. “Vários trabalhos mostraram que a infecção por helmintos está associada a mudanças em outras condições, incluindo alergias e distúrbios autoimunes. Muitos testes clínicos estão atualmente avaliando os helmintos como uma forma de tratamento”, aponta Blackwell.
O cientista questiona, inclusive, a prática de exterminar esses micro-organismos do corpo. “Muitas pessoas estão questionando a ideia de que os profissionais de saúde deveriam ir a vilas e tratar todo mundo contra helmintos. Estudos mostraram que isso não é muito eficiente, já que as pessoas rapidamente são infectadas novamente, e também não têm grande melhora na saúde. Os nossos sugerem que outros efeitos dos helmintos na fertilidade e o risco de outras doenças também devem ser considerados quando se faz o planejamento do tratamento”, acredita o pesquisador norte-americano.
Intestino afetado
Uma das verminoses intestinais humanas mais disseminadas no mundo. A larva do parasita migra pela parede do intestino delgado e é transportada pelos vasos linfáticos e pela corrente sanguínea para os pulmões.
Prescrição descartada
“Qualquer coisa que induza um perfil de resposta imunológica que seja muito semelhante ao processo gestacional pode favorecer a progressão da gravidez. Existem algumas doenças autoimunes, por exemplo, que são mais de um perfil Th2 e podem participar de um favorecimento da gestação, mas não seriam a causa de uma maior fertilidade. Os parasitas estão proporcionando nessas mulheres um perfil inflamatório muito semelhante ao perfil encontrado na gravidez. Então, isso melhora o sucesso gestacional. Mas ele pode ocorrer perfeitamente na ausência de uma infecção. A gente não pode chegar à conclusão de quem quer engravidar deve ser infectada.”
Bellisa de Freitas Barbosa, especialista em imunologia da reprodução e professora de imunologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).