Leia Mais
Coral formado por pacientes sem laringe surpreende plateia do MASP, em São PauloConheça os hábitos que podem acelerar o processo de envelhecimento da voz Alterações na voz podem ser indicativo de depressão, diz pesquisaPor que o choro ao nascer é fundamental? Entenda o seu papelCoordenados por Nathan Welham, pesquisadores de várias disciplinas desenvolveram, em laboratório, a mucosa das cordas vocais, tecidos especializados em vibrar e, até então, criados com exclusividade pela natureza. O “monopólio” deve-se às especificações do material, cuja receita difícil de cumprir inclui flexibilidade suficiente para vibração e resistência exata para suportar centenas de movimentos por segundo. “É um sistema requintado e uma coisa difícil de replicar”, diz Welham.
Para chegar a um produto próximo do original, os cientistas coletaram tecidos da laringe de uma pessoa saudável imediatamente após ela morrer. Com isso, garantiram amostras ainda ativas. Outros quatro pacientes saudáveis que tiveram as laringes removidas por motivos variados também concordaram em doar o material. “Como as cordas vocais são muito sensíveis e não se regeneram facilmente, não podíamos simplesmente pegar partes das laringes de qualquer pessoa sem que isso trouxesse consequências para ela. Precisávamos, portanto, desses doadores”, explica Welham.
As células doadas foram isoladas, purificadas e cultivadas em um meio semelhante ao do corpo humano. Crescidas, foram colocadas em um suporte de colágeno em 3D que as permitiu crescerem no formato e na estrutura de uma mucosa natural. Após duas semanas, o aglomerado já constituía um tecido flexível, mas sobretudo resistente. O material também compartilhava muitas proteínas com cordas vocais nativas, com as quais se assemelhavam ainda em viscosidade e elasticidade.
Uma vez transplantado para um dos lados da laringe de cães sacrificados, o tecido artificial não apenas manteve o bom estado físico, como também vibrou com o tecido nativo do lado oposto. A análise acústica revelou que as mucosas artificiais e naturais apresentavam características sonoras semelhantes. Camundongos programados para ter o sistema imunológico humano também aceitaram bem o novo revestimento. “Parece que o tecido das cordas vocais pode ser projetado como o tecido da córnea, pois também é imunoprivilegiado, o que significa que ele não desencadeia reação imunológica no hospedeiro, que, nesse caso, foram os ratos”, conta Welham, acrescentando que estudos anteriores haviam sugerido isso.
Vice-presidente da Academia Brasileira de Laringologia e Voz (ABLV), Luciano Rodrigues Neves avalia que os achados dos pesquisadores da Wisconsin-Madison constituem avanços inéditos. Com trabalhos desenvolvidos na mesma linha, Neves diz que não conhece, no Brasil, estudos tão refinados. “Esses pesquisadores são muito fortes em bioengenharia e dedicados. Além disso, recebem recursos que os permitem desenvolverem essas tecnologias inéditas. Montar a estrutura que eles têm custa caro em termos de dinheiro e de tempo, e poucos espaços no mundo têm pesquisas de ponta como a deles”, diz o também professor do curso de medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Nove de Julho (Uninove).
Limitações
Neves destaca pontos que precisam ser resolvidos antes de o método chegar à prática clínica. Segundo ele, o tecido artificial é menos complexo do que as pregas vocais naturais, que continuam se desenvolvendo por pelo menos 13 anos após o nascimento de um indivíduo. Além disso, diz, as células que deram origem ao tecido artificial provêm de cordas vocais reais, o que, na prática, seria impossível porque não há como coletar amostras saudáveis sem deixar sequelas no doador. “E de uma pessoa doente, com fibrose ou câncer, muito menos. Isso poderia colocar a saúde do paciente em risco maior, pois o câncer pode reincidir com o transplante de células doentes”, explica o médico.
Welham reconhece que, antes de ir ao consultório, a técnica criada por eles precisa de testes adicionais para verificar os resultados a longo prazo, inclusive em animais maiores. “Precisamos fazer um levantamento de quais células são terapeuticamente apropriadas para o procedimento e saber se poderíamos armazená-las e transportá-las. Muito importante também é atender as considerações regulatórias. Até lá, é um longo caminho”, considera.
No futuro, acredita Neves, talvez seja possível utilizar células da medula óssea e até gordura. “No entanto, nada disso tira o mérito dos cientistas. É um trabalho que pode parecer humilde, mas é assertivo e apenas a ponta da lança, tendo muito impacto em quem trabalha com isso”, ressalta. O médico acredita que, além do uso terapêutico do novo tecido, a técnica tem potenciais aplicações no desenvolvimento de sistemas in vitro para modelar a mucosa em doenças e testes pré-clínicos. “Ou seja: não será possível apenas reconstruir as cordas vocais, como também simular enfermidades. Em vez de testar drogas diretamente no paciente, poderíamos conhecer sua ação e resultados antes mesmo de serem usadas”, cogita.
Rouquidão
Mais comum em homens, o câncer de laringe representa cerca de 25% dos tumores malignos de cabeça e pescoço e 2% dos outros tipos. O diagnóstico costuma ser acidental. O paciente busca um médico, por exemplo, para tratar alterações na voz e rouquidão e descobre que tem o tumor. O carcinoma, no entanto, nem sempre apresenta sintomas. Muitas vezes, é notado quando já atingiu os gânglios linfáticos, um avanço que se manifesta com uma massa no pescoço.
Terapias restritas
“A perda de voz é chamada disfonia e pode ser temporária, como a provocada por uma laringite viral; ou permanente, o que ocorre em pacientes oncológicos e com fibrose nesse órgão. De uma forma geral, afeta até um terço da população em algum momento da vida. Não temos muitas terapias perfeitas para esse problema, mas uma coisa que ofereceremos é injetar alguns materiais nas cordas vocais, o que é ok, mas nenhum muito eficiente. Às vezes, usamos outros procedimentos, como o de aproximar mais as cordas vocais, o que pode auxiliar na produção de som. O diferencial da nossa técnica é que, até então, ela parece se adaptar muito bem.”
Nathan Welham, pesquisador da Universidade de Wisconsin-Madison