Um grupo de pesquisadores da Universidade de Brown, nos Estados Unidos, conseguiu poupar os ratos de uma série de estudos que envolvem o teste de drogas, o transplante de neurônios e a observação do funcionamento de células-tronco. A medida se tornou possível depois de os cientistas criarem, em laboratório, milhares de minicérebros, minúsculas estruturas feitas a partir de células-tronco e compostas de redes neurais verdadeiras, que começam a transformar as pesquisas em neurologia.
Apesar de não serem um órgão completo, os minicérebros contam com uma rede conectada de células, estruturas proteicas e formato tridimensional, o que permite a realização de diversas pesquisas sem a necessidade de usar animais. A técnica é recente — foi consolidada pela primeira vez em 2013 — e, agora, mostra a capacidade de permitir estudos sem forçar o orçamento. Os cientistas de Brown conseguiram fabricar as estruturas a partir de amostras do córtex de roedores com um investimento de US$ 0,25 por organoide.
“Vimos que o experimento teve um custo realmente baixo quando levantamos os gastos com materiais, reagentes, animais e bolsas de estudo para os pesquisadores”, garante, ao Correio, Diane Hoffman-Kim, líder do estudo e especialista em farmacologia molecular, fisiologia e biotecnologia. “Se o cientista não está interessado em investigar funções sofisticadas que dependem de uma arquitetura mais complexa do cérebro, não é necessário equipar o laboratório com tecnologias microeletrônicas nem fazer dissecações embrionárias para criar um modelo de cérebro in vitro”, completa.
A equipe da qual ela faz parte estava interessada em um modelo cerebral que reproduzisse funções neurológicas fundamentais para entender os efeitos de doenças neurodegenerativas, como Parkinson, Alzheimer e esclerose múltipla, e também de acidentes vasculares cerebrais (AVC). Para isso, ela cultivou células do córtex de ratos em moldes de microesferas de hidrogel que possibilitaram a formação de minicérebros tridimensionais em um único dia.
“Fiquei fascinada com os vários tipos de células formando estruturas que reproduzem aspectos do córtex. Depois de duas ou três semanas, essas estruturas continham neurônios capazes de produzir sinapses (impulsos nervosos que permitem a troca de informações químicas e elétricas entre as células)”, relata a brasileira Liane Livi, especialista em biotecnologia e coautora do trabalho, publicado recentemente na revista Tissue Engineering: Part C.
Síndromes raras
As diversas possibilidades de estudos com minicérebros têm estimulado cada vez mais pesquisadores a explorar a técnica. Entre eles está o brasileiro Alysson Muotri, neurobiólogo da Universidade da Califórnia em San Diego, líder de um estudo que busca a cura da síndrome do MECP2 duplicado — uma rara doença neurológica que causa problemas motores e cognitivos. Crianças diagnosticadas com o mal vivem apenas 10 anos, em média.
A equipe de Muotri conseguiu lançar uma luz para a cura quando demonstrou que determinada substância reverteu o mal em minicérebros com características da síndrome. Os especialistas criaram as estruturas a partir de células da pele de crianças com o MECP2 duplicado. Eles observaram que os neurônios de quem possui essa síndrome apresentam mais ramificações e fazem um número maior de sinapses. Após testarem diversas drogas, encontraram uma que estabilizou os minicérebros. Esses resultados foram publicados no mês passado na revista Molecular Psychiatry, e o grupo aguarda autorização da FDA, agência reguladora de alimentos e remédios dos Estados Unidos, para testar a droga em pacientes.
O laboratório da Universidade da Califórnia participa de outros estudos envolvendo minicérebros. Além de aplicar a técnica em diferentes síndromes raras, o grupo faz parte de um projeto sobre autismo, no qual serão produzidos diversos minicérebros que carreguem mutações genéticas ligadas ao transtorno. Há, ainda, pesquisas que buscam ampliar o conhecimento sobre a evolução humana. “Buscamos usar os minicérebros para contrastar o desenvolvimento neural de humanos com o de outros primatas, como chimpanzés e bonobos. A ideia é gerar insights sobre o funcionamento das áreas social e de linguagem do órgão humano”, descreve Muotri.
Sobre a redução dos testes com animais, o brasileiro explica que a nova tecnologia não conseguirá eliminá-los tão cedo. “Eles ainda são importantes para o estudo de toxicidade ou estabilidade das drogas, por exemplo.” Mas a substituição de animais em alguns casos já é uma realidade. “No caso dessa síndrome, existe um modelo animal (camundongo), mas ele nunca revelou uma droga promissora. Na perspectiva de descobrimento de novas drogas para doenças humanas, não tenho dúvidas de que ficarão cada vez mais raros os testes em outros animais. Tanto laboratórios acadêmicos quanto laboratórios farmacêuticos estão cada vez mais investindo em modelos baseados em células-tronco.”
No Brasil
Essa área de pesquisa ganhou também os laboratórios de instituições brasileiras. O biólogo Stevens Rehen, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lidera uma pesquisa para entender, com a ajuda dos minicérebros, como funcionam a esquizofrenia e a síndrome de Dravet, uma grave forma de epilepsia que acomete crianças.
O grupo coletou células da urina de pacientes e, a partir da reprogramação celular, criou os organoides que simulam as doenças e mostram em que momento ocorrem as alterações. “É como se eu estivesse fazendo um avatar do indivíduo sem precisar abrir a cabeça dele para retirar o neurônio que quero estudar. Isso aumenta a chance de observar no experimento algo real, porque aquela célula reprogramada para ser um neurônio vai ser geneticamente igual à que está no cérebro do próprio indivíduo”, afirma Rehen, que já submeteu os primeiros resultados para publicação em revistas científicas.
Debate ético
“Os minicérebros geram uma curiosidade e uma preocupação na sociedade porque, atualmente, em humanos, se define vida a partir do funcionamento do cérebro. Esses organoides não ‘pensam’, mas não há como a gente prever, daqui para a frente, o que vai acontecer com eles; se vamos conseguir fazer com que eles sejam capazes de se comunicar ou se, por exemplo, vamos conectá-los a chips de computadores e criar máquinas mais potentes. A ciência deve avançar, e a sociedade deve discutir, sob o ponto de vista bioético, quais serão os limites.”
Stevens Rehen, especialista em biotecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Apesar de não serem um órgão completo, os minicérebros contam com uma rede conectada de células, estruturas proteicas e formato tridimensional, o que permite a realização de diversas pesquisas sem a necessidade de usar animais. A técnica é recente — foi consolidada pela primeira vez em 2013 — e, agora, mostra a capacidade de permitir estudos sem forçar o orçamento. Os cientistas de Brown conseguiram fabricar as estruturas a partir de amostras do córtex de roedores com um investimento de US$ 0,25 por organoide.
saiba mais
Teste de sangue para detectar Alzheimer está próximo da realidade
Cientistas identificam proteína que parece ser crucial para o desenvolvimento do Alzheimer
-
Estudo relaciona micose ao mal de Alzheimer
Pesquisa abre possibilidade para que Alzheimer seja detectado por exame
Cientistas detectam região cerebral que é considerada o ponto inicial do Alzheimer
A equipe da qual ela faz parte estava interessada em um modelo cerebral que reproduzisse funções neurológicas fundamentais para entender os efeitos de doenças neurodegenerativas, como Parkinson, Alzheimer e esclerose múltipla, e também de acidentes vasculares cerebrais (AVC). Para isso, ela cultivou células do córtex de ratos em moldes de microesferas de hidrogel que possibilitaram a formação de minicérebros tridimensionais em um único dia.
“Fiquei fascinada com os vários tipos de células formando estruturas que reproduzem aspectos do córtex. Depois de duas ou três semanas, essas estruturas continham neurônios capazes de produzir sinapses (impulsos nervosos que permitem a troca de informações químicas e elétricas entre as células)”, relata a brasileira Liane Livi, especialista em biotecnologia e coautora do trabalho, publicado recentemente na revista Tissue Engineering: Part C.
Síndromes raras
As diversas possibilidades de estudos com minicérebros têm estimulado cada vez mais pesquisadores a explorar a técnica. Entre eles está o brasileiro Alysson Muotri, neurobiólogo da Universidade da Califórnia em San Diego, líder de um estudo que busca a cura da síndrome do MECP2 duplicado — uma rara doença neurológica que causa problemas motores e cognitivos. Crianças diagnosticadas com o mal vivem apenas 10 anos, em média.
A equipe de Muotri conseguiu lançar uma luz para a cura quando demonstrou que determinada substância reverteu o mal em minicérebros com características da síndrome. Os especialistas criaram as estruturas a partir de células da pele de crianças com o MECP2 duplicado. Eles observaram que os neurônios de quem possui essa síndrome apresentam mais ramificações e fazem um número maior de sinapses. Após testarem diversas drogas, encontraram uma que estabilizou os minicérebros. Esses resultados foram publicados no mês passado na revista Molecular Psychiatry, e o grupo aguarda autorização da FDA, agência reguladora de alimentos e remédios dos Estados Unidos, para testar a droga em pacientes.
O laboratório da Universidade da Califórnia participa de outros estudos envolvendo minicérebros. Além de aplicar a técnica em diferentes síndromes raras, o grupo faz parte de um projeto sobre autismo, no qual serão produzidos diversos minicérebros que carreguem mutações genéticas ligadas ao transtorno. Há, ainda, pesquisas que buscam ampliar o conhecimento sobre a evolução humana. “Buscamos usar os minicérebros para contrastar o desenvolvimento neural de humanos com o de outros primatas, como chimpanzés e bonobos. A ideia é gerar insights sobre o funcionamento das áreas social e de linguagem do órgão humano”, descreve Muotri.
Sobre a redução dos testes com animais, o brasileiro explica que a nova tecnologia não conseguirá eliminá-los tão cedo. “Eles ainda são importantes para o estudo de toxicidade ou estabilidade das drogas, por exemplo.” Mas a substituição de animais em alguns casos já é uma realidade. “No caso dessa síndrome, existe um modelo animal (camundongo), mas ele nunca revelou uma droga promissora. Na perspectiva de descobrimento de novas drogas para doenças humanas, não tenho dúvidas de que ficarão cada vez mais raros os testes em outros animais. Tanto laboratórios acadêmicos quanto laboratórios farmacêuticos estão cada vez mais investindo em modelos baseados em células-tronco.”
No Brasil
Essa área de pesquisa ganhou também os laboratórios de instituições brasileiras. O biólogo Stevens Rehen, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lidera uma pesquisa para entender, com a ajuda dos minicérebros, como funcionam a esquizofrenia e a síndrome de Dravet, uma grave forma de epilepsia que acomete crianças.
O grupo coletou células da urina de pacientes e, a partir da reprogramação celular, criou os organoides que simulam as doenças e mostram em que momento ocorrem as alterações. “É como se eu estivesse fazendo um avatar do indivíduo sem precisar abrir a cabeça dele para retirar o neurônio que quero estudar. Isso aumenta a chance de observar no experimento algo real, porque aquela célula reprogramada para ser um neurônio vai ser geneticamente igual à que está no cérebro do próprio indivíduo”, afirma Rehen, que já submeteu os primeiros resultados para publicação em revistas científicas.
Debate ético
“Os minicérebros geram uma curiosidade e uma preocupação na sociedade porque, atualmente, em humanos, se define vida a partir do funcionamento do cérebro. Esses organoides não ‘pensam’, mas não há como a gente prever, daqui para a frente, o que vai acontecer com eles; se vamos conseguir fazer com que eles sejam capazes de se comunicar ou se, por exemplo, vamos conectá-los a chips de computadores e criar máquinas mais potentes. A ciência deve avançar, e a sociedade deve discutir, sob o ponto de vista bioético, quais serão os limites.”
Stevens Rehen, especialista em biotecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro