Pessoas com Gaucher têm uma falha genética que impede a produção de uma proteína recombinante chamada glicocerebrosidase, responsável pelo processamento de glicocerebrosídios, um tipo de gordura celular. Como resultado, elas acumulam gordura em células de várias partes do corpo, comprometendo principalmente o fígado, o baço e o sistema nervoso. A forma de evitar essa consequência é tomar injeções da proteína ausente, e a pesquisa cearense deve tornar a fabricação dessas doses muito mais barata, garantindo acesso a todos os pacientes.
Tudo começou nos laboratórios da Quatro G, empresa parceira do estudo, onde cientistas sintetizaram a sequência genética responsável pela fabricação da proteína. Esse gene foi, então, entregue à Unifor, que o inseriu em células retiradas da orelha de uma cabra. Quando o pedaço de DNA se incorporou ao genoma do animal, as melhores células foram inseridas em ovócitos (células reprodutoras femininas) cujo material genético materno havia sido removido.
Obteve-se, assim, embriões clonados e transgênicos, que foram gestados por cabras comuns.
Quando Gluca estava com 6 meses, ela foi estimulada a produzir leite por meio de hormônios, e os pesquisadores constataram que o líquido continha a proteína desejada. Porém, era preciso obter leite em grandes quantidades e de modo natural. Gluca foi, então, emprenhada, dando à luz três filhotes machos no último dia 4. “Essa gestação tem dupla importância. Primeiro, porque Gluca produziu leite em grande quantidade. Além disso, dois dos filhotes nasceram transgênicos e poderão fecundar fêmeas que terão filhotes transgênicos”, explica Marcelo Bertolini, líder do estudo ao lado da mulher, Luciana Bertolini.
“Atualmente, o Brasil gasta em torno de R$ 150 mil por grama de proteína. Na lactação induzida, a presença da glucocerebrosidase no leite da Gluca variou de 4g a 8g por litro. Se tivermos a média de 5g/l com quatro cabras, estará garantido o número de animais necessários para suprir todos os cerca de 700 pacientes com a doença de Gaucher no Brasil”, afirma Bertolini.
Na próxima etapa do trabalho, as moléculas de proteína do leite serão purificadas para a fabricação de um fármaco injetável. A Quatro G, sediada no Parque Tecnológico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre, realizará esse processo. “Já começamos a desenvolver o processo de purificação, que poderá certificar que a proteína é funcional”, informa Jocilei Chiesa, pesquisadora que coordena na empresa o projeto, que recebeu recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Participa também da empreitada a Esperança Agropecuária, que cedeu animais para os testes.
Desafios
Para que uma proteína obtida de Gluca e seus descendentes chegue até os pacientes, contudo, algumas barreiras deverão ser superadas.
“Precisamos fazer testes farmacológicos e toxicológicos em animais. Hoje, não existe nenhum medicamento biofármaco testado no Brasil. Nós teremos que trilhar um caminho longo que, até hoje, ninguém fez aqui. E esse é um problema generalizado do país. Nossas empresas farmacêuticas acabam engessadas para a produção por uma legislação não muito clara”, lamenta Bertolini.
Medicamentos
Os remédios utilizados contra a doença de Gaucher são o Cerezyme, produzido a partir de células de ovário do hamster-chinês pela empresa norte-americana Genzyme Corporation, atualmente subsidiária da francesa Sanofi. O outro é o Uplyso, da israelense Protalix, que utiliza células de cenoura transgênica. Esses medicamentos não possuem a própria glucocerebrosidase, mas substâncias que promovem o mesmo efeito. Em 2009, quando a pesquisa brasileira foi iniciada, o custo com esses medicamentos era de R$ 140 milhões por ano ao governo brasileiro. “Utilizar a matriz animal para produção de proteínas recombinantes tornaria esses medicamentos, extremamente caros, 80% mais baratos”, diz Bertolini.
Outras possibilidades
“Teoricamente, qualquer proteína recombinante poderia ser produzida no leite de um animal transgênico.