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Apesar de nunca testada em humanos, a terapia foi autorizada pelos pais de Layla Richards, que, há apenas cinco meses, estava desenganada pelos médicos. A menina foi diagnosticada com leucemia linfoide aguda, a forma mais frequente da leucemia infantil, 14 semanas depois de nascer. O prognóstico foi prejudicado por variantes genéticas que dificultavam a resposta positiva à quimioterapia e até mesmo ao transplante de medula óssea. O caso é particularmente incomum, visto que cerca de 70% a 80% dos doentes são curados com medicamentos.
“Quando a doença se mostra resistente ao tratamento inicial ou recai após um período de aparente remissão, o que ocorre em 20% a 30% dos casos, a única esperança é algum tratamento que destrua as células tumorais e permita um transplante de medula óssea de um doador compatível”, explica o oncologista Sandro Martins, coordenador de Oncologia do Hospital Santa Helena e oncologista do Hospital Universitário de Brasília (HUB). Após perceberem que a menina entrava na estatística dos pacientes que não respondem ao tratamento, os pais pediram aos médicos que tentassem qualquer coisa que salvasse Layla.
Foi, então, que souberam de uma terapia experimental em andamento no Gosh. “Era assustador pensar que o tratamento nunca tinha sido testado em um ser humano, mas, mesmo com os riscos, não havia dúvida de que nós queríamos tentar. Ela estava doente e sentindo dor. Então, tínhamos que fazer alguma coisa”, lembra Ashleigh Richards, pai de Layla.
Células mutantes
Em tipos agressivos de câncer, como o da menina, as drogas não conseguem alcançar as células doentes, que se “escondem” dos medicamentos e também do sistema imune. Com a terapia gênica, porém, pode-se reprogramar as células de defesa T para fazê-las reconhecer e aniquilar tumores menos complicados. A estratégia, no entanto, nem sempre funciona em pacientes com leucemia e submetidos a muitas sessões de quimioterapia pelo fato de não terem células T suficientemente saudáveis para a manipulação genética. O novo tratamento resolve esse problema utilizando essas estruturas de doadores.
Chamadas UCART19, essas células resultam de um processo que consiste em utilizar ferramentas moleculares para “cortar”, ou manipular precisamente, genes que regulam o comportamento do sistema imunológico. O procedimento induz as células T mutantes a aprenderem a se esconder dos medicamentos que, como efeito colateral, as destroem. Também ficam mais seletivas, atacando apenas as células com leucemia.
Layla recebeu um mililitro de UCART19 e ficou isolada, após o procedimento, para evitar infecções oportunistas. Os médicos notaram melhora. “Como essa foi a primeira vez que o tratamento foi testado (em humanos), não sabíamos se ou quando ele funcionaria. Sua leucemia era tão agressiva que tal resposta é quase um milagre”, avalia Paul Veys, diretor de transplante de medula óssea no GOSH e principal médico da menina.
Confiantes com os resultados, os médicos realizaram um transplante de medula óssea na pequena paciente para recuperar o sangue e o sistema imunitário prejudicados durante o tratamento. Em casa e passando bem, Layla vai frequentemente ao hospital para acompanhamento. “Nós usamos o tratamento em uma menina muito forte e precisamos ser cautelosos sobre a possibilidade de que essa se torne uma opção adequada de tratamento para todas as crianças”, ressalta Waseem Qasim, professor de terapia gênica da UCL e imunologista consultor do Gosh.
Mais análises
Há a previsão de testes clínicos financiados pela empresa Cellectis para estudar as células UCART19 em grupos maiores de pacientes. Eles devem ser iniciados no começo do ano que vem. O médico geneticista Cassio Luiz, professor da Faculdade de Medicina de Petrópolis, no Rio de Janeiro, considera o tratamento promissor. “Nunca trabalhamos com questões imunológicas tão setorizadas”, diz. Segundo ele, encontrar meios de alterar o sistema imune para combater células oncológicas abre a possibilidade de desenvolvimento de tratamentos para vários outros tipos de cânceres de difícil tratamento.
Porém, assim como Waseem Qasim, Cassio Luiz insiste que é preciso cautela. “Devemos estudar melhor para saber quais são os efeitos, bons e/ou ruins. Temos que tomar cuidado para não criar situações que gerem mais sofrimento e dor ao paciente e aos familiares que convivem com quadros incuráveis. Não é que não valha a pena tentar de tudo, como esses pais fizeram, mas, às vezes, é melhor oferecer qualidade de vida e evitar sofrimento do que correr riscos que, muitas vezes, podem estar sendo oferecidos por charlatões.”
Defesa debilitada
Forma aguda de câncer nas células brancas do sangue caracterizada pela produção excessiva e pelo acúmulo de células brancas imaturas e doentes chamadas linfoblastos. A doença é mais comum na infância e tem como principais sintomas febre, aumento do risco de infecções (especialmente bacterianas), maior tendência a sangramento e sinais indicativos de anemia. A cura é alcançada por mais de 80% das crianças afetadas, mas apenas de 20% a 40% dos adultos sobrevivem.
"Nós usamos o tratamento em uma menina muito forte e precisamos ser cautelosos sobre a possibilidade de que essa se torne uma opção adequada de tratamento para todas as crianças” - Waseem Qasim, um dos integrantes do grupo que tratou Layla
Primeiros passos
“O que aconteceu com a menina não é usual e precisa ser visto como uma situação especial, única e rara. A técnica testada agora pulou algumas etapas, mas isso ocorreu em uma situação crítica. Os médicos agiram de maneira adequada, pois pediram consentimento dos pais. Além disso, o assunto foi discutido pelo Comitê de Ética do hospital, que aprovou o procedimento. É supercedo para dizer que o tratamento funciona para todo mundo. Precisamos ver, primeiro, o que acontece com ela em médio e longo prazo. Possivelmente, esse se tornará um tratamento acessível, mas os testes devem continuar antes que possamos falar em cura para a doença.”
Helano Freitas, oncologista clínico e Coordenador do Setor de Pesquisas Clínicas do Ac. Camargo Cancer Center, em São Paulo