Saúde Plena

Câncer: teste genético pode salvar vidas

Estima-se que entre 5% e 10% dos tumores malignos sejam de origem hereditária, número que representa um em cada dez dos 576 mil novos casos de tumor previstos para este ano no Brasil. Hoje já é possível prever se uma pessoa desenvolverá um tumor maligno e agir antes que ele se manifeste. O desafio agora é fazer com que os testes genéticos alcancem, em qualquer canto, as pessoas que podem se beneficiar dessa tecnologia. O exame, que pode ser feito com saliva ou sangue, é importante para descobrir as alterações nos genes relacionadas a tumores raros e ao desenvolvimento de câncer em função da grande incidência da doença na família.





Foi a notícia da retirada das mamas, dos ovários e das tubas uterinas pela atriz Angelina Jolie – que perdeu a mãe, a avó e uma tia para o câncer – que trouxe o tema da oncogenética para a mídia. O impacto da decisão da estrela hollywoodiana é tão grande que, se por um lado, a esposa de Brad Pitt trouxe para o conhecimento público a possibilidade de se fazer um teste genético para identificar a mutação dos genes BRCA1 e BRCA2, que predispõe ao desenvolvimento dos tumores já citados, ela também promoveu uma ‘corrida aos consultórios’ de pacientes em busca de exames que lhes dessem uma resposta sobre a probabilidade de desenvolver câncer no futuro e agir o quando antes.

O contrassenso de toda essa história é que a divulgação dos testes genéticos capazes de prever tumores malignos não impactou apenas quem é considerado grupo de risco, mas alimentou a busca de quem sofre de cancerofobia, um medo exagerado de ser acometido por um tumor. Uma pessoa sem história familiar de câncer ou tumor raro não entra nos critérios de rastreamento e pode ser vítima de más práticas. Assim, um avanço da medicina como o aconselhamento genético pode cair em simples achismo, sem evidência científica de benefício para a pessoa ou respaldo técnico. Coordenador do Centro de Oncologia da Rede Mater Dei de Saúde, Enaldo Melo de Lima lembra que a maioria dos casos de câncer são esporádicos, sem nenhum fator herdado.

Por outro lado, o que a história de Angelina Jolie não conseguiu foi difundir a informação de que já são conhecidos da medicina outros vários genes (além do BRCA1 e BRCA2) que, quando alterados, aumentam o risco de desenvolvimento de diversos tipos de cânceres como o de cólon (intestino), melanoma, pâncreas, próstata, além de uma variedade de tumores raros. Segundo Enaldo Melo de Lima, já foram identificados e catalogados aproximadamente 200 genes e 30 síndromes hereditárias causadores de câncer.


Mais chance de cura
Em 2002, Carlos Alberto de Oliveira descobriu um tumor no rim. Ele vivia com a esposa e os dois filhos em Jaú, interior de São Paulo. O pai da estudante Mayara, hoje com 19 anos, e do jornalista Marcelo, atualmente com 24, se submeteu a uma cirurgia e, pela avaliação dos médicos que o acompanhava, não eram necessárias quimioterapia ou radioterapia. Carlos tinha 41 anos. Depois do primeiro tumor, outros surgiram até que uma metástase cerebral o vitimou aos 44 anos.

- Foto: EM / D.A PressLogo depois da primeira cirurgia de Carlos, a esposa dele, Selma Gromboni, comerciante, hoje com 50 anos, conta que a família viveu um segundo baque com a notícia de um linfoma na caçula, que tinha 7 anos na época. A menina também recebeu tratamento em Jaú, mas no ano do falecimento do pai, em 2005, Mayara apareceu com um segundo tumor. E aí se deu a reviravolta na história dessa família.

Naquele ano, Selma Gromboni decidiu então levar a filha a um centro especializado em oncologia, o A.C. Camargo Cancer Center, na capital paulista, e, depois de um aconselhamento genético, suspeitou-se da Síndrome de Li-Fraumeni. A doença hereditária se caracteriza pelo alto risco para o desenvolvimento de vários tipos de tumores, principalmente câncer de mama, sarcomas, tumores de sistema nervoso central e tumores na suprarrenal. Essa síndrome é causada pela mutação no gene TP53, que - em sua condição não alterada - age como o principal supressor de tumores no organismo.


Até 2003, a Síndrome de Li-Fraumeni era considerada como uma síndrome rara, com apenas 280 casos identificados, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). No entanto, tem alta ocorrência no Brasil. Estudos conduzidos no país mostram que há uma mutação fundada no gene TP53 que é específica da população brasileira, a p.R337H.

A confirmação do diagnóstico de Mayara veio de um teste genético que, na época, nem foi realizado no Brasil. A jovem já passou por 13 cirurgias para retirar 14 tumores malignos e sete benignos. A síndrome de Li-Fraumeni atinge também o filho mais velho de Selma. Marcelo teve um tumor cerebral em 2010, mas graças ao diagnóstico precoce está curado. Além dele, uma irmã de 52 anos e um irmão de 58 de Carlos foram diagnosticados com a doença.

Desde então, Mayara e Marcelo fazem acompanhamento periódico – ela de três em três meses e ele, de seis em seis -, para que, no caso de um novo tumor, o diagnóstico se dê precocemente. "O fato de a gente saber da síndrome esclareceu muita coisa. Meus filhos enfrentam a doença de cabeça erguida e lidam muito bem com toda a situação. Mayara está fazendo cursinho para entrar em medicina e se especializar em oncologia. Se soubéssemos da síndrome na época que meu marido descobriu o tumor no rim, a história poderia ter sido outra. Tudo que você consegue descobrir quando ainda é pequeno, a chance de cura é maior”, avalia Selma.


Apesar dos desafios enfrentados constantemente, Selma Gromboni afirma que os filhos pretendem se casar e ter filhos e garante que, apesar de não ter a doença, mantém seus exames em dia. “Se eu não estiver bem, não consigo ajudar minha filha e meu filho. Faço meus exames preventivos anualmente”, diz. Para ela, é muito importante divulgar não apenas a síndrome de Li-Fraumeni como todas as outras para mostrar que, com o tratamento adequado, é possível superar o câncer.

Árvore genealógica do câncer

A médica geneticista e diretora do Departamento de Oncogenética do A.C.Camargo Cancer Center, criado em 2001 e pioneiro no Brasil, Maria Isabel Achatz explica que o objetivo do aconselhamento genético é tentar identificar quem são os indivíduos que têm alguma alteração hereditária e definir se essa pessoa tem uma mutação que possa explicar a manifestação da doença. Segundo ela, apesar de o código genético ser único, ciência e medicina conhecem a base desse código que possibilita ao especialista investigar regiões bem específicas da sequência de DNA.

Enaldo Melo de Lima - Foto: Divulgação / Mater DeiO aconselhamento genético se inicia com uma consulta no Departamento de Oncogenética em que o especialista vai abordar informações que se referem aos hábitos de vida e de saúde dos familiares de primeiro e segundo graus do paciente como pais, irmãos, avós, tios e primos. Achatz explica que essa consulta propicia o levantamento de toda a história de câncer de uma família: o tipo, em que idade se manifestou nos indivíduos, em quais parentes, se o tumor vem passando de geração a geração. “Com essas informações construímos o que é chamado heredrograma, que nada mais é que uma árvore genealógica do câncer”, detalha.


Diante dessas informações é possível identificar a possível síndrome hereditária que deve ser investigada. “Algumas histórias são tão típicas que apenas o diagnóstico já mostra que naquela família tem-se um agrupamento maior de um tipo de câncer do que se vê na população em geral”, diz.

Quando houver indicação, a etapa seguinte é a do diagnóstico molecular através do teste genético, que vai dizer se o paciente herdou ou não uma alteração genética relacionada ao câncer. Se, com esse exame, for identificada uma mutação relacionada ao câncer é possível avaliar o risco que essa pessoa tem de desenvolver determinados tumores e também investigar quais familiares podem estar inseridos no grupo de risco.

Inicialmente, todo esse processo é realizado em paciente que teve ou tem um tumor. É a partir do resultado do exame desse indivíduo que vai se identificar a mutação nos outros membros da família. Um jeito simples de explicar, usado por Maria Isabel Achatz, é pensar em um código com 5 mil letras. “Se o especialista detectou a troca de uma letra desse código no paciente com o tumor, ele não vai precisar olhar as 5 mil letras das outras pessoas da família. Ele vai direto na alteração para ver quem herdou e quem não”, detalha. Isso também impacta no custo do exame, já que não é necessário pesquisar toda a sequência de DNA. O teste genético para identificar a mutação no BRCA, por exemplo, varia entre R$ 5 mil e R$ 15 mil.


Exames preventivos ou cirurgia preventiva
De posse dessas informações, de acordo com o coordenador do Centro de Oncologia da Rede Mater Dei de Saúde, o especialista vai oferecer ao paciente a realização de exames de rastreamento com o objetivo de diagnosticar a doença em fase inicial ou retirar preventivamente um ou mais órgãos, como foi o caso de Angelina Jolie. “As cirurgias representam uma minoria das indicações”, destaca Enaldo Melo de Lima.

A decisão da estratégia de redução de risco é sempre baseada em estudos que foram desenvolvidos em milhares de pessoas para se encontrar o melhor caminho a ser tomado. É importante saber que o acompanhamento do paciente em que a alteração genética foi detectada permite que o tumor seja identificado tão no início que basta que ele seja retirado para eliminar a doença, sem sequer a necessidade de quimioterapia ou radioterapia.

Selma Gromboni (esquerda) é mãe de Marcelo, 24, e Mayara, 19 diagnosticados com Síndrome de Li-Fraumeni - Foto: Arquivo Pessoal
Enaldo Melo de Lima lembra ainda que o teste genético deve ser oferecido à família do paciente diante dos seguintes critérios: histórico familiar positivo, diagnóstico de câncer antes dos 50 anos, dois casos de câncer diferentes no mesmo indivíduo, alteração da cognição, história de câncer incomum ao gênero (homem com câncer de mama). O resultado da análise molecular demora, em média, 45 dias. O especialista explica também que todo paciente que vai fazer a consulta de aconselhamento genético é obrigado a assinar um termo de consentimento estabelecido pelo Ministério da Saúde e Agência Nacional de Saúde (ANS).


A Rede Mater Dei de Saúde criou o Departamento de Oncogenética em 2013 e, segundo Enaldo de Melo Lima, é crescente a demanda para consultas de aconselhamento genético. “Isso se deve em grande parte à orientação da conduta de tratamento que vai desde a possibilidade de detecção muito precoce da doença até a intervenção cirúrgica. É possível fazer um tratamento mais refinado e personalizado para o paciente com o tumor e preventivo para os membros da família”, considera.

Acesso
No Brasil, o Sistema Público de Saúde (SUS) ainda não oferece a análise molecular de forma ampla. O Ministério da Saúde esclarece que o SUS garante o tratamento integral aos pacientes com câncer. “Em relação aos exames para aconselhamento genético, pesquisas têm sido feitas e financiadas pelo MS e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da Rede Nacional de Câncer Familial (RNCF)”, explica em nota enviada à reportagem.

Segundo a entidade, “é justamente a necessidade de mais evidências científicas sobre o tema que justifica o financiamento de pesquisas na área de câncer familial. A incorporação de tecnologias – como testes genéticos em geral, para oncologia - no sistema de saúde deve ser realizada após estudos de avaliação de tecnologias em saúde, no qual os riscos e benefícios para a população deverão ser avaliados”.


Atualmente, ainda de acordo com o MS, “o sequenciamento das regiões codificadoras dos genes BRCA1 e BRCA2 é oferecido, no âmbito do SUS, por estabelecimentos de saúde que desenvolvem pesquisas nesta área. Esses exames são feitos em mulheres com histórico de câncer na família para identificar risco aumentado de alguns tipos específicos de câncer de mama e ovário, com indicação médica e cujo acompanhamento será orientado por este profissional.

Segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS), 45.6% da população brasileira tem plano de saúde, mas mesmo na saúde suplementar, o acesso ao teste genético precisar seguir algumas regras estabelecidas na diretriz número 876 de 2013: é obrigatório que a prescrição seja feita por um geneticista, especialidade não muito disseminada no país, e estar de acordo com as regras estabelecidas, que contempla o rastreamento e tratamento de 29 doenças genéticas sendo que cada uma delas possui uma diretriz diferente. Clique e acesse o documento.

Veja aqui a lista das doenças contempladas no rol de procedimentos da ANS.