Basta lembrar nomes como o do físico Isaac Newton – uma figura tão atormentada quanto genial – e o do cineasta Woody Allen, que transforma suas conturbadas ideias em filmes premiadíssimos – para perceber que as duas características, não raramente, andam lado a lado. Por que isso ocorre? Cientistas britânicos apresentam uma possível resposta em um artigo publicado recentemente na revista especializada Trends in Cognitive Sciences. Segundo os autores, a resposta pode estar no cérebro.
A origem dessa linha de pesquisa está nos anos 1970, quando o psicólogo britânico Jeffrey Gray propôs que pessoas neuróticas têm mais pensamentos negativos porque são extremamente sensíveis à ameaça. “Gray tinha uma teoria útil e lógica, mas o problema é que ele não levava em conta o espectro completo de neuroticismo”, afirma Adam Perkins, professor de neurobiologia do King’s College London e autor do novo artigo. Segundo ele, a explicação de Gray não conseguia esclarecer por que neuróticos ficam tristes mesmo quando não há sentimento de ameaça de nenhum tipo. “O segundo problema (com essa teoria) é: há toda uma literatura que correlaciona altos níveis de neuroticismo com criatividade. Por que se sentir mais ameaçado faria uma pessoa ter novas ideias?”, questiona.
Perkins começou a elaborar uma nova hipótese sobre o assunto quando tomou conhecimento de um experimento realizado pelo psicólogo Jonathan Smallwood, da Universidade de York, no qual o cérebro de indivíduos em repouso foi monitorado por ressonância magnética. O estudo demonstrou que pessoas com pensamentos negativos (um marcador da neurose) apresentaram alta atividade no córtex pré-frontal medial (CPMF), região ligada a reações em situações de ameaça.
Efeito duplo
Os resultados corroboravam, de certa forma, a teoria de Gray (ameaça e neurose parecem ligadas), mas traziam um novo dado: a superestimulação cerebral parecia envolvida no processo. “Isso nos permitiu propor que os indivíduos altamente neuróticos são propensos a experimentar pensamentos e sentimentos negativos porque os sistemas cerebrais que respondem à ameaça são ativados, mesmo quando não há nenhuma ameaça no ambiente atual”, diz Perkins.
Com base nesses dados, os cientistas acreditam ser muito provável que pessoas neuróticas sejam mais criativas, já que a região cerebral analisada trabalharia mais do que o normal. Em outras palavras, o funcionamento diferente do cérebro geraria dois resultados, um positivo e um negativo: criatividade e neurose.
“Explicar por que as pessoas altamente neuróticas tendem a ser mais criativas é muito difícil, em parte, porque é difícil medir a criatividade em condições de laboratório. Em nosso trabalho, simplesmente sugerimos que, porque pessoas altamente neuróticas tendem a pensar muito sobre problemas (pois têm altos níveis de atividade no córtex pré-frontal medial), elas têm uma vantagem básica quando se trata de pensar em soluções para esses problemas”, explica Perkins.
O autor também frisa que outros elementos devem influenciar o comportamento criativo além da neurose, como a inteligência. “O tipo de resolução de problemas a ser tentado dependerá de outros fatores, como QI e a situação. Por exemplo, Frank Whittle, um engenheiro britânico, era uma pessoa aparentemente neurótica (ele teve um colapso nervoso no fim da Segunda Guerra Mundial), mas também era um homem muito inteligente, que estava na Força Aérea Real. Ele usou sua criatividade para inventar o motor a jato com o objetivo de resolver o problema de como os aviões poderiam voar mais alto”, destaca Adam Perkins.
Para Luciana Nerung, médica psiquiatra e membro da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, a teoria dos cientistas britânicos precisa de mais dados para ligar a criatividade à neurose. “Eles utilizam a ativação dessa área cerebral como uma justificativa para que a criatividade seja mais avançada nessas pessoas. Porém, é difícil analisar isso com poucos dados. Dentro do grupo de pessoas consideradas neuróticas, temos casos de quem não é tão criativo. Por que isso ocorreria?”, avalia a especialista, que não participou do trabalho. “Temos, por exemplo, Van Gogh, que tinha problemas psiquiátricos e era um pintor genial, mas temos também Picasso, homem de grande talento, mas sem esse histórico”, exemplifica.
NEUROTICISMO NÃO É DOENÇA
A psiquiatra destaca que o estudo do tema é difícil, porque ser neurótico não é uma enfermidade. “Ser neurótico não é um diagnóstico, e sim uma característica. Contudo, vemos muitos casos de transtornos mentais, como depressão ou déficit de atenção, em que há uma produção criativa que diminui quando a pessoa é tratada. Não sabemos se isso seria causado pelo uso de remédios, tendo algo a ver com uma melhora do problema de saúde. Resumindo: não temos dados que comprovem essas teorias de fato, precisamos de mais trabalhos que analisem um número maior de pessoas”, completa Luciana Nerung.
Os autores do estudo reconhecem que a pesquisa precisa de mais embasamento e esperam que mais especialistas se interessem pelo tema. “Esperamos que nossa explicação para o neuroticismo ajude a compreender melhor a criatividade e também auxilie pessoas altamente neuróticas a perceber que seus atributos têm algo positivo (criatividade), além de consequências negativas”, destaca Perkins. “Ainda não temos dados específicos para validar a teoria e, por isso, esperamos que nosso trabalho incentive a realização de outros experimentos, para testá-la diretamente”, complementa o cientista.