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Pelo Código Brasileiro de Trânsito o ciclista não é obrigado a usar o acessório. O capítulo VI do artigo 105 diz que “são equipamentos obrigatórios para as bicicletas, a campainha, sinalização noturna dianteira, traseira, lateral e nos pedais, e espelho retrovisor do lado esquerdo”. Além disso, os capacetes vendidos no Brasil não têm certificação do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Para muitos adeptos da bike, apenas essas duas informações são suficientes para a decisão de não usá-lo, mas essa questão é uma das que mais gera polêmica dentro do universo da bicicleta.
Isso porque, segundo o presidente da Sociedade Mineira de Medicina do Exercício e do Esporte (SMEXE), cardiologista e médico do esporte Marconi Gomes da Silva, os dados encontrados em artigos científicos sobre o tema não são fortes o suficiente para comprovar os benefícios no uso do capacete ou a ausência dele.
Reportagem recente publicada no ‘The Guardian’ mostra que obrigatoriedade do uso de capacetes por ciclistas na Austrália está ameaçada. Isso porque relatórios médicos demonstram que a lei é ineficiente já que desencoraja parte da população a andar de bicicleta, além de existirem provas de que há danos maiores para a saúde da população com a redução do número de ciclistas do que pelo não uso de capacetes.
Além de ser um meio de transporte sustentável, a magrela é, acima de tudo, promotora de qualidade de vida, saúde e bem-estar. Fatores esses que não podem ser desconsiderados diante de dado recente divulgado pelo Ministério do Esporte que mostra que 41,2% dos brasileiros e 50,4% das brasileiras são sedentários e, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o sedentarismo provoca a morte de 5,3 milhões de pessoas no mundo anualmente.
Marconi Gomes da Silva explica que muitos adversários das leis que obrigam o uso do capacete acreditam que a decisão pelo equipamento deve se dar de maneira espontânea e que as consequências negativas dessas leis podem superar os benefícios quando se fala em saúde pública já que a obrigatoriedade é um desestímulo ao ciclismo urbano. “Essa é uma opinião compartilhada por diversos defensores da mobilidade urbana no Brasil e também no mundo já que essas leis poderiam também causar um forte impacto negativo nos programas de bicicletas compartilhadas recentemente instituídos no Brasil e já bem conhecidos nos países desenvolvidos. Eles também alegam que as leis do capacete obrigatório podem ainda passar a ideia de que o ciclismo urbano é uma atividade particularmente perigosa, quando, na verdade, é uma atividade com benefícios conhecidos para a saúde e para a mobilidade urbana”, observa.
O especialista cita um estudo desenvolvido pelo psicólogo Ian Walker, da Universidade de Bath, que constatou que os motoristas que avistam ciclistas que estão utilizando capacetes costumam ter um comportamento menos cauteloso em relação a eles. “Utilizando uma bicicleta equipada com um sensor para registrar a distância entre ciclista e os veículos que passam ao lado da bicicleta – foram avaliadas mais de 2.300 medições -, a pesquisa descobriu que os motoristas passavam mais próximos ao ciclista quando esse usava um capacete”, afirma.
Para o presidente da SMEXE, o capacete parece não impedir os fatores que causam um acidente, mas ele oferece uma última linha de defesa quando as coisas dão errado. “É por esse motivo que não se questiona o uso do equipamento em esportes como o Downhill ou Mountain Bike, situações em que o risco de queda é sabidamente maior e com maior impacto. Do ponto de vista médico, há uma maior tendência à recomendação ao uso dos capacetes, sobretudo quando se trata de proteção individual, mas como o assunto é complexo, não se pode deixar de abordar os potenciais efeitos negativos quando há obrigatoriedade no uso dos capacetes”, pondera.
Marconi Gomes da Silva lembra ainda que são muitas as pesquisas que têm demonstrado que pessoas que pedalam regularmente, tanto para ir ao trabalho ou para a escola, são mais saudáveis e esse comportamento é capaz de promover mais efeitos positivos sobre a saúde, tais como controle da obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares do que o risco de acidentes.
Cirurgião especialista em trauma do Hospital João XXIII e vice-presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET), Guilherme Durães Rabelo é defensor do capacete para ciclistas. Ele, que recebe os feridos do trânsito do maior pronto-socorro de Minas Gerais, afirma que o motorista do carro não conhece a regra que o obriga a passar pelo ciclista mantendo a distância de 1,5 metro. Ele afirma que as consequências de um acidente de trânsito para o ciclista são semelhantes a do motociclista como as fraturas e o traumatismo crânio encefálico.
A assessoria de imprensa da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) informou que no ano de 2013, 336 ciclistas deram entrada no Hospital João XVIII vítimas de acidente de trânsito. Em 2014, o número foi um pouco menor: 316. De 1º de janeiro a 31 de julho de 2015, já foram realizados 238 atendimentos a ciclistas.
Segurança na quantidade
Professor de saúde pública da universidade de Sydney, Chris Rissel, afirma em artigo que, no caso da Austrália, o número de ciclistas diminuiu no país após a implementação da lei que tornou obrigatório o uso de capacetes. Segundo ele, qualquer queda na quantidade de acidentes de cabeça deve ser atribuída a essa diminuição.
O especialista apresenta o conceito de “segurança na quantidade” em que à medida que mais pessoas andam de bicicleta, mais as vias se tornam seguras para elas. “Mesmo se ciclistas usarem o capacete, eles estarão menos seguros em ruas com poucos ciclistas que estariam em ruas com mais ciclistas. A necessidade de usar capacete reforça a mensagem de que andar de bicicleta é perigoso - e essa percepção de perigo é um grande motivo pelo qual as pessoas dizem não pedalar", afirma.
Marconi Gomes da Silva concorda que não se pode subestimar o dado que demonstra que quando o uso de bicicleta dobra, ocorre uma diminuição do risco individual de cada ciclista em torno de 34%. “Esse número sugere que o comportamento dos motoristas é ajustado na presença de pessoas pedalando, tornando o condutor do veículo automotor mais cauteloso”, explica.
A voz de quem pedala
Voluntário do projeto Bike Anjo BH desde 2011, o funcionário público federal, Thiago Tiganá, 38 anos, que utiliza a bicicleta como meio de transporte há 3, diz que dentro do próprio movimento - que tem o objetivo de, voluntariamente, ensinar as pessoas a pedalarem e ajudá-las a adotarem a magrela como veículo de deslocamento – não existe consenso quanto à recomendação do uso do capacete. “Embora não seja obrigatório, acredito que o capacete é um acessório importante em situações inesperadas como a de um pedestre que surge na ciclovia, principalmente para quem está começando. Com o susto, a pessoa pode se desequilibrar e bater a cabeça no meio fio. Eu recomendo o uso do capacete como forma de prevenção, mas participo de grupos de pedalada à noite e já presenciei acidentes acontecendo com ciclistas sem capacete que não deu em nada e sem capacete que gerou algo grave”, afirma.
Para o jornalista ambiental Gil Sotero, 36 anos, que também é adepto da bicicleta como meio de transporte há 3 anos, o capacete não é o mais importante quando se fala em segurança para o ciclista. Para ele, conhecer as leis de trânsito, sinalizar conversões e ter iluminação na bike são atitudes muito mais relevantes para a discussão. Ele, que não usa frequentemente o acessório, diz que o que mata não é o uso ou não do capacete, mas a velocidade dos carros na cidade. O jornalista acredita na regra de quanto mais pessoas pedalando mais o trânsito ficará seguro para os ciclistas.
Gil Sotero afirma que a bicicleta não é um veículo perigoso, mas um veículo simples: “A polêmica em torno do capacete se sustenta muito mais na cultura do medo, que desestimula o ciclismo e deixa as pessoas paradas diante da tv”.
O que dizem os estudos
O presidente da SMEXE reforça que não existem estudos brasileiros bem controlados que abordem o tema. Assim, é preciso ter cuidado na interpretação de dados internacionais que retratam realidades diversas de mobilidade urbana, cultura e educação no trânsito. Para ajudar na reflexão sobre a obrigatoriedade ou não do uso do capacete, o especialista cita duas pesquisas que comprovam a falta de consenso sobre o tema.
A primeira, publicado em 2013 no Journal of Pediatrics, analisou, segundo ele, estatísticas sobre ciclistas norte-americanos que foram gravemente feridos ou mortos entre janeiro de 1999 e dezembro de 2009. Marconi Gomes da Silva diz que os autores compararam as taxas de ferimento e morte entre os ciclistas com menos de 16 anos em estados americanos com leis que obrigam o uso do capacete e estados onde essa obrigação não existe. “Eles concluíram que as taxas de lesões eram cerca de 20% menores em estados com leis que obrigavam o uso de capacete”, afirma.
Já um estudo canadense divulgado pela British Medical Journal (BMJ), também em 2013, não conseguiu relacionar a obrigatoriedade do uso do capacete com a incidência menor no número de ferimentos na cabeça já que não foi possível constatar se a redução nessa taxa estava relacionada com a redução no número de ciclistas nas ruas, se campanhas educativas ditavam esse ritmo ou se, de fato, tinha relação com lei.
Marconi Gomes da Silva explica que tal estudo comparou as taxas de ferimentos na cabeça relacionadas ao ciclismo em seis cidades canadenses antes e depois que elas passaram a obrigar o uso de capacete. “Entre 1994 e 2003, a taxa de ferimentos na cabeça entre os jovens diminuiu 54,0% nas cidades com legislação que obrigava o uso de capacete, enquanto nas cidades em que essa lei não existia, a queda no mesmo período foi de 33,1%”, relata.
O problema desse dado, ainda de acordo com o especialista, é que essa evidência inicial a favor do uso do capacete não foi possível de ser detectada independentemente da legislação sobre a taxa de internações hospitalares por ferimentos na cabeça. “As taxas desses acidentes já estavam em queda antes da aplicação da legislação e os próprios autores, apesar de recomendarem o uso dos capacetes por acreditarem que eles diminuem o risco de lesões na cabeça, concluíram que a contribuição adicional de uma legislação que obrigue o uso desse equipamento não apresentou grande relevância”, explica.
Para ele, estudos verdadeiramente imparciais e com boa metodologia deverão ser conduzidos para se ter uma conclusão baseada em evidências científicas mais robustas. “Como médico e ciclista, tendo a levar em consideração os princípios da física clássica e um pouco de bom senso para admitir que os capacetes devem fornecer alguma proteção, mesmo que a magnitude dessa proteção possa ser contestada. Parece-me que a reação contra os capacetes para andar de bicicleta é mais emocional do que baseada em evidências. Capacetes, quando usados de maneira correta, oferecem pelo menos algum grau de segurança para o indivíduo, sobretudo em impactos de menor gravidade, mas que poderiam ser mais graves sem o uso do equipamento. Parece-me claro que os potenciais benefícios são atenuados ou mesmo anulados em alguns tipos de acidentes, tais como aqueles em que o impacto é frontal ou envolve a parte não protegida pelo capacete, assim como em acidentes demasiadamente graves em que nenhum tipo de equipamento de segurança seria capaz de diminuir suas consequências”, afirma. No caso de crianças, o médico pondera que, como os acidentes são mais comuns, o uso de capacete pode promover uma verdadeira redução no risco de lesões na cabeça.
Desafios para o Brasil
O cardiologista e médico do esporte Marconi Gomes da Silva ressalta que o Brasil precisa progredir muito nos aspectos relacionados a infraestrutura cicloviária e também nas questões relacionadas à educação tanto dos motoristas, pedestres e ciclistas. Para ele, essa polêmica parece ter um ponto de convergência muito mais importante que o uso de capacetes. “As reduções nos acidentes podem ser significativamente alcançadas por outras medidas, como a introdução de vias com tráfego lento, chamadas zonas 30, construção de ciclovias bem estruturadas e campanhas de educação e segurança destinadas aos pedestres, ciclistas e motoristas”, acredita.
O especialista lembra ainda que em países como Dinamarca e Holanda, por exemplo, os ciclistas têm baixos índices de acidentes - apesar de altas taxas de praticantes - e quase não há ciclistas que usam capacetes. “Esse conjunto desejável de aspectos positivos parece ser obtido por meio de intervenções como uma boa infraestrutura, forte legislação para proteger os ciclistas e uma cultura do ciclismo caracterizado por um comportamento cauteloso e destinado à mobilidade urbana”, reforça.