A primeira vez que pensou em adoção, a pedagoga Karinne Mendes, hoje com 40 anos, era muito jovem. Como filha única, ela queria um irmão e, por isso, visitava um abrigo perto de sua escola, onde conheceu um menino e desejava que os pais o adotassem.
Com o passar do tempo, ela se casou e tentou engravidar. Depois de tentar várias fertilizações, acabou tendo uma gravidez tubária. Diante disso, e como na família do marido – o analista de sistemas Carlos Augusto Machado Vieira – havia casos de adoção, ainda tentando engravidar, eles se inscreveram na fila por uma criança adotiva. A gravidez biológica não veio, mas um ano e seis meses depois nascia para o casal uma menininha de 3 meses, que recebeu o nome de Alice Mendes Vieira, hoje com 3 anos.
Adotado aos 12 dias de vida, João Paulo Silva fala sobre desafios enfrentados por pais e filhos:
Para adotar uma criança, é preciso primeiro se inscrever no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), na Corregedoria Nacional de Justiça, e responder a 12 questões que alimentam um banco de dados sob a responsabilidade das varas da Infância e Juventude. É preciso opinar sobre o sexo de preferência, a etnia e a idade da criança que se deseja adotar, entre outras questões importantes, como as relativas à saúde. Quanto mais restrito é o perfil escolhido pelos candidatos à adoção, mais difícil e demorado tende a ser o processo. Diante disso, Karinne e Carlos Augusto decidiram aceitar doenças tratáveis e não restringiram raça ou etnia. “Fomos avisados de que havia um bebê pardo, do sexo feminino, com doenças tratáveis, e saímos para conhecê-lo. No momento em que a peguei no colo, ela olhou para o Carlos e deu um sorriso. Passamos a tarde inteira no abrigo e a levamos para tomar vacina”, lembra Karinne.
De lá, os dois foram correndo para a casa dos pais. O objetivo, segundo eles, era “avisar que a bolsa estourou depois de uma 'gravidez' que havia durado 18 meses.” Foi tudo muito rápido. No dia seguinte, a psicóloga da Vara da Infância e da Juventude avisou que o termo da guarda já estava pronto e que eles poderiam buscar a sua filha.
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Ao escolher Alice para fazer parte de suas vidas, Carlos Augusto e Karinne sabiam que seria necessário trabalhar o desenvolvimento motor do bebê, que estava com o pescocinho muito mole para a idade e apresentava ausência de alguns reflexos. A desconfiança era de que sua genitora tivesse sífilis e ninguém sabia o que isso poderia acarretar na saúde da criança.
A dificuldade não foi suficiente para assustar o casal. “Nada disso nos impediu de recebê-la como nossa filha. Levamos a Alice ao pediatra e ele nos ensinou a fazer os estímulos e fisioterapia em casa. Em uma semana, a diferença era notável. Ela foi estimulada pelo nosso acolhimento e carinho. Hoje, não tem problema nenhum de saúde. O amor que recebeu e recebe superou tudo”, comemoram os pais.
Ainda assim, há percalços no caminho. Um deles é estar preparado para lidar com o preconceito. Por serem de raça diferente da da filha – Alice é parda e Karinne e Carlos Augusto são brancos –, já enfrentaram situações problemáticas desse tipo no shopping, na praia e em outros lugares. Foi aí que descobriram que precisam se fortalecer e ensinar a filha a lidar com a questão. “É muito importante aceitar as diferenças. Mas, infelizmente, a sociedade não está preparada para isso. Descobrimos que Alice vai ter de aprender a se defender”, observa Karinne.
Como em tantos outros casos, e da mesma maneira que ocorre com a chegada de um filho biológico, o primeiro encontro entre pais e filhos é apenas o início de uma longa história, cheia de surpresas e desafios.
À espera de uma família
Um contingente de 5.637 menores está apto para a adoção no Brasil. São crianças e adolescentes de todos os tipos, jeitos e idades até os 17 anos. São meninos e meninas pardos (49%), brancos (32,7%), negros (18%), indígenas (0,46%) e amarelos (0,4%). Alguns têm irmãos que também esperam para ser adotados. Essas crianças anseiam por uma nova oportunidade de ter uma vida em família, recuperar a confiança nos adultos e reconstruir a fé no futuro.
Do outro lado, existe um batalhão de 33,6 mil candidatos a pais e mães no Brasil, à espera de uma criança para chamar de sua, o que significa que são cerca de seis pretendentes para cada uma. Se, apesar do excesso de procura, ainda há menores esperando por uma família, é porque a expectativa dos pais não coincide com a realidade encontrada nas instituições de acolhimento.
Além de dados básicos como idade, sexo e etnia, o Cadastro Nacional da Adoção (CNA) permite que pretendentes possam informar restrições a enfermidades. Isso significa que os adotantes devem indicar se aceitam crianças com doenças curáveis, incuráveis ou detectáveis.
De acordo com o cadastro, cerca de 20% das crianças brasileiras que podem ser adotadas têm algum problema de saúde. Eram 1.258 em maio. Entre elas, 466 tinham deficiência mental e outras 213, algum tipo de deficiência física. Desse universo, 93 crianças ou adolescentes estavam infectados com o HIV.
Outras 435 tinham alguma doença tratável e 162, doenças não tratáveis. O relatório não deixa claro o que seriam doenças tratáveis e não tratáveis, assim como não demonstra a gravidade das deficiências físicas e mentais.
Quando resolveu adotar uma criança, a pediatra Gisele Aparecida Borges Ferreira, de 40 anos, teve de responder a uma lista de 35 perguntas do CNA – em maio, o número foi reduzido para 12 – , entre elas, questões sobre a saúde da criança. “Quando meu marido, Lidimar Ferreira, e eu fizemos a opção de adotar, aceitamos que a criança tivesse doenças. Então, esperava qualquer coisa. Pensei em pré-maturidade, asma, deficiência visual. Aceitaria uma criança do jeito que viesse, porque sei que elas têm problemas de saúde como qualquer outra pessoa. Para mim, isso seria natural, mas nosso filho não tem problema algum”, comemora a médica, que adotou um garotinho de 1 ano e 7 meses, que hoje está com 3 anos, e espera pela sua guarda definitiva.
ADAPTAÇÃO
Diferentemente de outros casos de adoção, a história de Gisele parece um conto de fadas. A espera durou apenas 50 dias. Ela é branca e seu marido, negro. Veio um garotinho mulato. “Em geral, as pessoas esperam muito tempo, porque querem menina. Há aqueles que, inclusive, só aceitam crianças brancas. No meu caso, não optei pelo sexo, aceitei doenças tratáveis, não escolhi raça e ampliei a idade até 2 anos. Minhas únicas restrições foram excluir o HIV entre as doenças tratáveis e também deficiências mentais, porque tenho um irmão com um grau de autismo muito sério”, explica.
Gisele trabalha em Ibirité e, por coincidência, fez a sala de parto do bebê que iria adotar um ano e sete meses depois. No cartão de vacina dele, há o carimbo dela com a liberação para que saísse do hospital. “A psicóloga, que era coordenadora da Vara da Infância, brincava que não havia história como a nossa. A adaptação dele foi perfeita, a gente até esquece que ele foi adotado”, garante.
De acordo com o pediatra Paulo Taufi Maluf Júnior, pediatra do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo e do Hospital Sírio-Libanês, do total de interessados em adotar uma criança, apenas 8% não fazem restrição quanto à condição de deficiência do adotado, o que ressalta a necessidade de haver maior conscientização dos pretendentes. Segundo ele, uma realidade que também chama atenção é o grande número de crianças que tem pais biológicos dependentes de álcool, o que também pode causar problemas de saúde. “Mais um ponto a se observar é que as crianças e adolescentes passam parte da vida em abrigos, às vezes sem condições adequadas.”
Um filho para chamar de meu
A representante comercial Vanici Veronesi tinha 31 anos e estava num ônibus em Contagem levando a mãe para fazer uma cirurgia quando seu telefone celular tocou. Era uma ligação da Vara da Infância e da Juventude, o que significava que o filho que tentava adotar há três anos e nove meses poderia finalmente estar chegando. Ao atender a chamada, a voz do outro lado da linha informou que havia um menino de dois dias de vida à sua espera. Ela e o marido teriam exatamente duas horas para chegar lá. O casal venceu a distância e os percalços – ele estava em Betim, e uma obra no Anel Rodoviário provocava um enorme engarrafamento; ela teria de deixar a mãe sozinha no hospital – e chegou a tempo de conhecer aquela criança miúda e rosada que se tornaria seu filho.
“Antes do Lucas, fomos chamados para conhecer outras crianças e recusamos, porque não nos sentíamos seguros. Mas, quando se trata do 'seu' filho, mesmo não havendo uma musiquinha no fundo e não sendo um comercial de margarina, você simplesmente sente que ele é seu”, diz Vanici, recordando-se do momento em que ela e o marido viram Lucas Garcia Oliveira Veronesi pela primeira vez.
Passados oito anos, Lucas hoje é um garoto forte, inteligente e bonito. Ao ver a mãe conversando com a reportagem do Estado de Minas, avisou: “Não fala sobre esse assunto com ela, porque daqui a pouco a sala vai ficar inundada”. A alusão bem-humorada referia-se às lágrimas que, inevitavelmente, brotariam dos olhos da mãe, ao relembrar os caminhos que levaram ela e o marido a escolher Lucas como o filho do coração.
A adoção de uma criança é o final feliz de uma história que está só começando. Para que tudo corra de forma tranquila, é preciso estar atento à saúde física e emocional dos pequenos, mas também preparar-se para recebê-los, acolhendo-os como pais de direito, de fato e de afeto. Por isso, é importante que essas crianças sejam geradas emocionalmente pelos pais, que necessitam de apoio psicológico para enfrentar tudo que virá depois do primeiro dia do resto de suas vidas, que começa outra vez, só que, agora, de um jeito mais intenso, amoroso e diferente.
De acordo com Suzana Schettini, psicóloga e presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), que funciona desde 1990 e representa 130 grupos de adoção no país – oito deles em Minas Gerais –, é preciso trabalhar dentro de uma nova perspectiva na cultura da adoção.
PRIORIDADE
O ideal é inverter a ideia de que uma criança adotada deve atender à expectativa idealizada da família adotante. Segundo o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), um dos principais desafios encontrados nesse processo é que não há um encaixe perfeito entre o desejo dos pretendentes e a realidade das crianças que vivem nos acolhimentos espalhados pelo país. O número de pretendentes é quase seis vezes maior do que o total de crianças e adolescentes cadastrados.
Diferentemente do que se acredita, segundo o CNA, a questão racial não é o maior obstáculo enfrentado no momento da adoção, e sim a idade, já que a prioridade das famílias são as crianças mais novas. Hoje, existem no Brasil 33.627 candidatos à adoção e mais de 80% deles preferem uma criança de até 3 anos. O relatório do CNA mostra que existem mais adolescentes de 17 anos (655) do que o total de crianças cadastradas de até 5 anos (393).
“Procuramos famílias para essas crianças, e não crianças para famílias que não podem tê-las (biologicamente)”, observa a presidente da Angaad, que acredita que os adotantes deveriam estar preparados para receber os pequenos que estão abrigados, independentemente do desejo idealizado.