Saúde

Cientistas criam injeção de gene para amenizar cegueira

Duas semanas depois do tratamento, 10 pacientes passaram a realizar atividades cotidianas sem dificuldade

Vilhena Soares


Da cegueira total à possibilidade de executar tarefas do dia dia as enxergando. A transição revolucionária para pacientes com amaurose congênita de Leber — uma doença hereditária que vai provocando a degeneração da retina — se deu por meio de terapia genética e foi detalhada por um grupo de cientistas na edição de hoje da revista Science Translational Medicine.


Segundo eles, a técnica poderá ser usada a partir do ano que vem. Especialistas acreditam que ela tem, inclusive, potencial para intervir em outras complicações oftalmológicas.

Os pesquisadores norte-americanos começaram tentando entender como funciona o cérebro de pessoas que não conseguem enxergar. “Tomando como ponto de partida o fato de que a visão se torna possível com o olho e o cérebro, faz sentido examinar o cérebro quando o olho passa por uma mudança dramática, como em uma situação em que não vê para uma em que vê”, justifica ao Correio Manzar Ashtari, principal autora do estudo e pesquisadora do Departamento de Oftalmologia da Universidade da Pensilvânia.

Os primeiros experimentos foram feitos com ratos. Depois, em 10 pacientes com amaurose congênita de Leber. A doença é provocada por um defeito no gene LCA2. Por isso, os voluntários receberam a injeção de um vírus que inseriu cópias normais do gene em células da retina. Duas semanas após o procedimento genético, deixaram de ser cegos e se tornaram amblíopes — pessoas que têm a visão comprometida, mas conseguem desempenhar atividades rotineiras, como caminhar.

“Os pacientes não recuperaram a ‘visão perfeita’, mas as melhorias foram muito significativas, permitindo a eles andar independentemente, ler, jogar esportes”, exemplifica Jean Bennett, um dos autores da pesquisa e professor de oftalmologia na Universidade da Pensilvânia.

Cérebro ativado
Rubens Belfort Jr., professor titular do Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), destaca que o trabalho dos cientistas dos EUA chama a atenção por envolver voluntários que estavam no estágio avançado da amaurose congênita de Leber. “Ainda assim, apresentaram uma melhora”, observa. “Vemos o quanto as áreas do cérebro ficam mais ativas com a ajuda da implantação desse vírus embaixo da retina para recuperar o funcionamento dela.”

Segundo o especialista, a retina funciona como uma televisão, sendo as fibras oculares os fios que fazem com que o sistema funcione. “Quando elas se atrofiam, você tem um problema nesse sistema. Na nova pesquisa, vemos que o gene identificado como origem dessa falha, se substituído, pode corrigir o sistema e apresentar uma melhora. Isso traz esperanças de tratamentos semelhantes para outros problemas de saúde que causam a perda da visão”, aposta.

A mesma abrangência de aplicação é cogitada por Luis Fernando Rabelo Barros, oftalmologista do Visão Institutos Oftalmológicos, em Brasília. “Essa estratégia de identificar as variações genéticas responsáveis por uma doença e utilizar um vírus que possa corrigir o problema, como esse injetado na retina dos pacientes, pode ser um caminho apropriado para a busca da cura de outros problemas ligados à cegueira”, diz.

Sinais na infância
Vítimas da doença começam a perder a visão desde os primeiros meses de vida — os primeiros indícios são falta de resposta visual e movimentos oculares incomuns. Durante a juventude, mudanças na retina se tornam visíveis e os vasos sanguíneos também ficam mais estreitos. Na vida adulta, ficam evidentes os problemas para enxergar movimentos mais rápidos, como o mexer das mãos e as luzes brilhantes, além de uma grande sensibilidade à luz.

Nas clínicas, em 2016
Para esclarecer como se deu a recuperação da visão após a terapia genética, os pesquisadores da Universidade da Pensilvânia decidiram comparar as estruturas ocular e cerebral dos pacientes tratados e as de voluntários saudáveis. Na análise, observaram que as vias cerebrais dos primeiros se tornaram tão robustas quanto às de quem não tinha problemas oftalmológicos. O mesmo efeito não ocorreu no olho que não recebeu a terapia.

O próximo passo dos cientistas será testar a técnica em mais pacientes, numa tentativa de validar novamente a eficácia do procedimento. “Os dados desse estudo serão apresentados às autoridades de regulação nos EUA e o órgão decidirá se esse reagente pode ser rotulado como uma droga. Acreditamos que a FDA pode decidir sobre isso em algum momento do próximo ano”, diz Jean Bennett, um dos autores da pesquisa.

Para o oftalmologista Luis Fernando Rabelo Barros, se o procedimento for liberado, tem o potencial de entrar na lista das grandes intervenções em prol de pessoas com deficiência visual. “Já tivemos outras alternativas criadas para essas pessoas viverem melhor, como o braile. Agora, temos uma esperança maior ainda na conquista dessa independência”, completa.