As letrinhas miúdas cobrem o papelzinho dobrado até o limite, e mesmo o olhar mais atento se perde entre as palavras incompreensíveis. Decifrar a bula pode ser um desafio para aqueles que não estão familiarizados com a linguagem médica, que esconde, por trás do vocabulário rebuscado, uma série de informações essenciais aos pacientes. O exercício frustrante de tradução é ainda mais complicado no caso dos pais, que se responsabilizam pela saúde dos filhos e nem sempre encontram respostas nas instruções farmacêuticas. Será que pode misturar o remédio no suco? O enjoo sentido depois de tomar o remédio é normal? E, para recém-nascidos, há cuidados especiais?
A fim de ajudá-los nessa tarefa, uma equipe de médicos e farmacêuticos do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e da
Universidade de Brasília (UnB) desenvolveu um guia que traduz as principais orientações médicas de doenças comuns na infância para uma linguagem simples e didática. A publicação tem o objetivo de informar os adultos sobre as condições médicas dos filhos e incentivar a adesão ao tratamento necessário, além de alertar sobre os principais cuidados que devem ser tomados em relação a medicamentos receitados contra doenças como deficiência do hormônio do crescimento, anurese noturna, déficit de atenção e hiperatividade.
O livro digital Uso racional de medicamentos na pediatria: doenças da infância levou mais de um ano para ser produzido e está disponível gratuitamente na internet. A professora Patrícia Medeiros de Souza, coordenadora do curso de especialização em farmacologia clínica da UnB e uma dos responsáveis pelo projeto, que envolveu dezenas de professores, profissionais e estudantes, conta que as instruções simplificadas são resultado de conversas com pacientes reais. “Validamos toda a linguagem à beira do leito para chegar a uma linguagem que a mãe e a criança entendessem”, ressalta.
Embora o consumo de muitos remédios citados no guia seja comum, a profissional revela que são poucos os pais que têm a noção correta a respeito da farmacologia do tratamento. Mais do que a dosagem e o número de vezes que a substância deve ser ingerida, os responsáveis pelos pequenos pacientes devem estar conscientes de que fatores como hábitos alimentares, condições crônicas e ingestão de outros medicamentos podem interferir no sucesso da terapia. Muitas dessas informações estão na bula, mas nem sempre é possível traduzir as instruções técnicas para o cotidiano da criança.
O hábito de triturar o remédio e dissolvê-lo na mamadeira, por exemplo, pode até facilitar a ingestão do medicamento, mas há o risco de o truque também comprometer o efeito de componentes, como o ferro, no organismo do paciente. Já o leite de soja afeta a ação do remédio usado contra o hipotireoidismo. Até mesmo o uso ocasional de medicamentos que não exigem receita exerce efeitos graves para a saúde da criança que segue outro tratamento. “Se ela estiver usando a ritalina, não pode usar remédio para desentupir o nariz, relaxante muscular nem outro antidepressivo”, exemplifica a especialista.
O livro é ilustrado com imagens que representam as reações causadas pelos medicamentos e podem ser apresentadas ao público infantil por meio de jogos interativos feitos no consultório médico — a ideia é ajudar não somente os pais a compreender as condições que acometem os filhos, mas também orientar profissionais da saúde a usar uma linguagem apropriada para explicar detalhes importantes a adultos e crianças.
As próprias crianças, quando orientadas sobre o uso correto dos medicamentos, adquirem uma noção de responsabilidade sobre as suas condições. “Muitas mães dão remédios para os filhos e dizem que é uma bala, um docinho. Isso explica por que há tantos casos de intoxicação medicamentosa. A criança vê o remédio da pressão da vovó e come todas as ‘balinhas’. Então, é importante que os pais avisem que é um remédio para tratar a doença”, alerta Tadeu Fernandes, presidente do Departamento de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). “O manual é muito bom justamente para isso, para informar”, avalia.
Alertas
A publicação também usa um sistema inspirado no semáforo de trânsito para alertar pais e mães sobre o uso dos remédios durante a infância dos filhos, na gravidez e na amamentação. Os sinais verde, amarelo e vermelho mostram quando o uso da substância está liberado, quando demanda cuidados especiais receitados pelo médico e se a ingestão representa perigo para a criança.
O livro faz parte de um projeto institucional do HUB, que há mais de cinco anos produz materiais instrutivos para pacientes. Foram feitas, inclusive, traduções de bulas de remédios muito receitados. “Um profissional de saúde de nível superior tem um vocabulário muito extenso, também técnico. Isso contribui para a dificuldade de entendimento dos pacientes. Daí a nossa necessidade de construir material instrutivo, usando mídias visuais. Quando a gente puder passar a mesma informação de maneiras diferentes, a gente vai tentar atingir o objetivo de melhorar a comunicação do profissional de saúde com o paciente”, ressalta o superintendente do HUB, Hervaldo Sampaio Carvalho.
De acordo com o médico, apenas quatro em cada 10 recomendações em saúde são seguidas. A baixa taxa de adesão é resultado de fatores como falta de estrutura da rede de atendimento, resistência em mudar comportamentos, alto custo dos tratamentos e baixa instrução a respeito das doenças. O último problema, ressalta Carvalho, pode ser resolvido por meio de comunicação clara. “Precisamos criar um ambiente mais propício para que a pessoa possa dizer: ‘Doutor, eu não entendo o que o senhor está falando’”, defende Hervaldo Sampaio Carvalho.
A equipe espera lançar este ano um guia semelhante voltado para o tratamento de doenças cardiorrespiratórias. Deve produzir outro livro focado no tratamento do câncer e um sobre condições dermatológicas. Também está nos planos do HUB divulgar materiais sobre os principais exames realizados e vídeos de esclarecimento sobre procedimentos clínicos e cirúrgicos.
Karina Saviatto de Carvalho Martins, professora do curso de farmácia da Unisul e especialista em uso racional de medicamentos
A bula é suficiente para orientar mães e crianças a respeito do uso de um medicamento?
Ela pode ser importante para esclarecer dúvidas usuais, como o modo de preparo ou mesmo de administração de um medicamento; ou ainda para confirmar a existência de alguma substância na composição do medicamento. Mas deve-se evitar esse material como guia para a autosseleção de um remédio ou ainda como única fonte de informação. Outro ponto importante é compreender que um tratamento pode ir além da utilização de um medicamento. Assim, é necessário compreender os cuidados gerais com a saúde da criança. Pode-se solicitar orientações sobre a prevenção de doenças, hábitos saudáveis para a faixa etária em questão, suporte familiar e afetivo para cada fase do desenvolvimento infantil.
Que tipo de informações devem ser passadas à criança que toma um medicamento a longo prazo?
Inicialmente, deve-se considerar a idade dela e, tão logo se faça possível, a criança deve, sim, ser orientada sobre o tratamento medicamentoso. A administração do remédio deve sempre ser realizada por um responsável. Porém, ela poderá ser informada dos benefícios que o tratamento lhe propiciará. Compreender a necessidade do uso do medicamento ameniza o impacto negativo que um tratamento a longo prazo pode desencadear. A criança deverá ser orientada ainda sobre os cuidados para a sua saúde. Assim, caso seja necessária alguma restrição na rotina, ela provavelmente a realizará de modo mais otimista. Promover a autonomia do cuidado torna a criança uma parceira dos pais na manutenção e na recuperação da saúde dela.
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O livro digital Uso racional de medicamentos na pediatria: doenças da infância levou mais de um ano para ser produzido e está disponível gratuitamente na internet. A professora Patrícia Medeiros de Souza, coordenadora do curso de especialização em farmacologia clínica da UnB e uma dos responsáveis pelo projeto, que envolveu dezenas de professores, profissionais e estudantes, conta que as instruções simplificadas são resultado de conversas com pacientes reais. “Validamos toda a linguagem à beira do leito para chegar a uma linguagem que a mãe e a criança entendessem”, ressalta.
Embora o consumo de muitos remédios citados no guia seja comum, a profissional revela que são poucos os pais que têm a noção correta a respeito da farmacologia do tratamento. Mais do que a dosagem e o número de vezes que a substância deve ser ingerida, os responsáveis pelos pequenos pacientes devem estar conscientes de que fatores como hábitos alimentares, condições crônicas e ingestão de outros medicamentos podem interferir no sucesso da terapia. Muitas dessas informações estão na bula, mas nem sempre é possível traduzir as instruções técnicas para o cotidiano da criança.
O hábito de triturar o remédio e dissolvê-lo na mamadeira, por exemplo, pode até facilitar a ingestão do medicamento, mas há o risco de o truque também comprometer o efeito de componentes, como o ferro, no organismo do paciente. Já o leite de soja afeta a ação do remédio usado contra o hipotireoidismo. Até mesmo o uso ocasional de medicamentos que não exigem receita exerce efeitos graves para a saúde da criança que segue outro tratamento. “Se ela estiver usando a ritalina, não pode usar remédio para desentupir o nariz, relaxante muscular nem outro antidepressivo”, exemplifica a especialista.
O livro é ilustrado com imagens que representam as reações causadas pelos medicamentos e podem ser apresentadas ao público infantil por meio de jogos interativos feitos no consultório médico — a ideia é ajudar não somente os pais a compreender as condições que acometem os filhos, mas também orientar profissionais da saúde a usar uma linguagem apropriada para explicar detalhes importantes a adultos e crianças.
As próprias crianças, quando orientadas sobre o uso correto dos medicamentos, adquirem uma noção de responsabilidade sobre as suas condições. “Muitas mães dão remédios para os filhos e dizem que é uma bala, um docinho. Isso explica por que há tantos casos de intoxicação medicamentosa. A criança vê o remédio da pressão da vovó e come todas as ‘balinhas’. Então, é importante que os pais avisem que é um remédio para tratar a doença”, alerta Tadeu Fernandes, presidente do Departamento de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). “O manual é muito bom justamente para isso, para informar”, avalia.
Alertas
A publicação também usa um sistema inspirado no semáforo de trânsito para alertar pais e mães sobre o uso dos remédios durante a infância dos filhos, na gravidez e na amamentação. Os sinais verde, amarelo e vermelho mostram quando o uso da substância está liberado, quando demanda cuidados especiais receitados pelo médico e se a ingestão representa perigo para a criança.
O livro faz parte de um projeto institucional do HUB, que há mais de cinco anos produz materiais instrutivos para pacientes. Foram feitas, inclusive, traduções de bulas de remédios muito receitados. “Um profissional de saúde de nível superior tem um vocabulário muito extenso, também técnico. Isso contribui para a dificuldade de entendimento dos pacientes. Daí a nossa necessidade de construir material instrutivo, usando mídias visuais. Quando a gente puder passar a mesma informação de maneiras diferentes, a gente vai tentar atingir o objetivo de melhorar a comunicação do profissional de saúde com o paciente”, ressalta o superintendente do HUB, Hervaldo Sampaio Carvalho.
De acordo com o médico, apenas quatro em cada 10 recomendações em saúde são seguidas. A baixa taxa de adesão é resultado de fatores como falta de estrutura da rede de atendimento, resistência em mudar comportamentos, alto custo dos tratamentos e baixa instrução a respeito das doenças. O último problema, ressalta Carvalho, pode ser resolvido por meio de comunicação clara. “Precisamos criar um ambiente mais propício para que a pessoa possa dizer: ‘Doutor, eu não entendo o que o senhor está falando’”, defende Hervaldo Sampaio Carvalho.
A equipe espera lançar este ano um guia semelhante voltado para o tratamento de doenças cardiorrespiratórias. Deve produzir outro livro focado no tratamento do câncer e um sobre condições dermatológicas. Também está nos planos do HUB divulgar materiais sobre os principais exames realizados e vídeos de esclarecimento sobre procedimentos clínicos e cirúrgicos.
Karina Saviatto de Carvalho Martins, professora do curso de farmácia da Unisul e especialista em uso racional de medicamentos
A bula é suficiente para orientar mães e crianças a respeito do uso de um medicamento?
Ela pode ser importante para esclarecer dúvidas usuais, como o modo de preparo ou mesmo de administração de um medicamento; ou ainda para confirmar a existência de alguma substância na composição do medicamento. Mas deve-se evitar esse material como guia para a autosseleção de um remédio ou ainda como única fonte de informação. Outro ponto importante é compreender que um tratamento pode ir além da utilização de um medicamento. Assim, é necessário compreender os cuidados gerais com a saúde da criança. Pode-se solicitar orientações sobre a prevenção de doenças, hábitos saudáveis para a faixa etária em questão, suporte familiar e afetivo para cada fase do desenvolvimento infantil.
Que tipo de informações devem ser passadas à criança que toma um medicamento a longo prazo?
Inicialmente, deve-se considerar a idade dela e, tão logo se faça possível, a criança deve, sim, ser orientada sobre o tratamento medicamentoso. A administração do remédio deve sempre ser realizada por um responsável. Porém, ela poderá ser informada dos benefícios que o tratamento lhe propiciará. Compreender a necessidade do uso do medicamento ameniza o impacto negativo que um tratamento a longo prazo pode desencadear. A criança deverá ser orientada ainda sobre os cuidados para a sua saúde. Assim, caso seja necessária alguma restrição na rotina, ela provavelmente a realizará de modo mais otimista. Promover a autonomia do cuidado torna a criança uma parceira dos pais na manutenção e na recuperação da saúde dela.