Deixa chorar ou dá colo? Neurocientista explica que negligenciar choro das crianças pode ser perigoso

Professora da Universidade Drexel, nos Estados Unidos, Andreia Mortensen, diz que a norma cultural é a de que o choro não deve ser atendido imediatamente, mas não dar atenção à forma de se comunicar das crianças (principalmente os bebês) pode impactar a vida adulta

por Valéria Mendes 19/06/2015 10:40

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AFP PHOTO / Yoshikazu TSUNO e Reprodução Twitter / Sarah Blackwood
Além de episódios que ganham espaço nos jornais e promovem o debate público, é no ambiente privado onde se consolida a ideia de que o choro de um bebê ou de uma criança não merece atenção (foto: AFP PHOTO / Yoshikazu TSUNO e Reprodução Twitter / Sarah Blackwood)
Recentemente a cantora canadense Sarah Blackwood, da banda Walk Off the Earth, usou as redes sociais para desabafar ao ser expulsa de um voo São Francisco (EUA)-Vancouver (Canadá) porque seu filho de apenas 2 anos chorava muito alto (saiba mais aqui). No início de junho, portais de notícias brasileiros estamparam em suas páginas virtuais fotos do festival ‘Baby Cry Sumo’ que ocorre há mais de 400 anos no Japão. A disputa consiste em colocar dois bebês frente a frente, segurados por lutadores de sumô, para saber quem chora primeiro. Se nenhum dos dois chora, um árbitro entra no “ringue” para tentar assustá-los com ruídos altos. Segundo a tradição, o choro traz saúde e prosperidade para os bebês. Também dentro de um avião, outro episódio que repercutiu no Brasil foi a história de um casal norte-americano que distribuiu brindes aos passageiros do trajeto Miami-Dallas junto com um pedido de desculpa antecipado para o caso de um bebê de 8 meses chorar durante a viagem.

Além de episódios que ganham espaço nos jornais e promovem o debate público, é no ambiente privado onde se consolida a ideia de que o choro de um bebê ou de uma criança não merece atenção. Para além dos manuais que pregam “deixa chorar até dormir” como técnica para ensinar um bebê a adormecer sozinho no berço, é a própria família que ressoa conceitos como “não dê colo, seu filho vai ficar mimado” ou “deixa fazer birra, ela está te manipulando”. Se de um lado, a cultura naturaliza a negligência ao choro de um bebê, por outro, esse mesmo choro (ou birra) é motivo de constrangimento para os pais que se vêem diante de uma situação pública tendo que lidar ao mesmo tempo com as lágrimas de sua criança e o julgamento social de que aquela situação demonstraria uma falta de controle dos cuidadores sobre os filhos.

AFP PHOTO / Yoshikazu TSUNO
'Baby Cry Sumo': Caso os bebês não chorem, árbitro entra no ringue para assustá-los (foto: AFP PHOTO / Yoshikazu TSUNO)


Neurocientista e professora no Departamento de Farmacologia e Fisiologia na Universidade Drexel, na Filadélfia (EUA), Andreia Mortensen, explica que, em geral, a norma cultural é a de que o choro não deve ser atendido imediatamente ‘para não acostumar mal’. “Isso provavelmente vem da crença de que o aprendizado vem do sofrimento e não do exemplo e da empatia”, afirma. Ela, que também é uma das idealizadoras do projeto 'Crescer sem violência', cita Besame Mucho, livro do pediatra espanhol Carlos Gonzalez, para lançar luz à essa questão: “Existem vários tabus modernos relacionados ao choro e que culturalmente ditam que é proibido dar atenção às crianças que choram, pegar-lhes ao colo ou dar-lhes aquilo que querem”.

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"É um mito que atender ao choro cria filhos dependentes" - Andreia Mortensen (foto: Divulgação )
A especialista cita ainda outros tabus parecidos, relacionados ao sono, por exemplo, que ditam que é proibido adormecer as crianças embalando-as ou amamentado-as e é proibido dormir com elas (leia mais sobre a cama compartilhada aqui). Em relação à amamentação, ainda de acordo com a neurocientista, regras culturais dizem é proibido amamentar a qualquer momento, em qualquer lugar ou amamentar uma criança crescida. A Organização Mundial de Saúde recomenda nos primeiros 6 meses de vida o aleitamento materno exclusivo que deve ser estendido até 2 anos ou mais.

Andreia Mortensen conclui que esses tabus têm algo em comum, pois todos proíbem o contato físico entre mãe e filho. “Isso explica, em grande parte, por que o choro negligenciado é tão aceito e está ligado à crença de que isso incentiva a independência da criança. Porém, é um mito que atender ao choro cria filhos dependentes”.

Segundo ela, nenhuma dessas crenças são baseadas na neurobiologia do desenvolvimento infantil, nos estudos atuais da neurociência e trauma infantil. No livro 'Educar sem violência – criando filhos sem palmadas', de Andreia Mortensen e da doutora em ciências e doutoranda em saúde coletiva Ligia Moreiras Sena, as autoras afirmam que uma das explicações para as explosões de comportamento é que o cérebro infantil não está completamente desenvolvido e pode, com frequência, entrar em “curto-circuito”. As escritoras explicam que o cérebro pode ser dividido em duas grandes áreas, ‘cérebro reptiliano’ e ‘cérebro mamífero’. O primeiro é a parte mais antiga do cérebro humano e é basicamente igual em todos os vertebrados, a região regula funções básicas de sobrevivência como fome e respiração. O segundo, é mais complexo e foi sendo moldado ao longo da evolução, se relaciona a habilidades de convivência, à construção de relações sociais, à regulação de sentimentos e reações emocionais, capacidade de relacionar problemas, criatividade e imaginação. “O bebê já nasce com a parte reptiliana que se desenvolve quando ainda está no útero da mãe. Já o cérebro mamífero, racional (composto de neocórtex, lobos frontais) vai de desenvolvendo durante o crescimento da criança, atingindo a maturidade na vida adulta”, explicam as pesquisados.

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Para Andreia, a cultura do “deixa chorar” persiste nos dias atuais porque “acredita-se que a criança é caprichosa, que abusa e irrita os que lhe cuidam, acredita-se na maldade intrínseca do recém-nascido e da criança. A crença é a de que uma educação fortemente repressiva resulta em aquisição de valores morais, que a criança precisa chorar, e que esse choro não é sinal de sofrimento ou comunicação, é simplesmente algo normal, inócuo, que toda criança faz, por fazer”, pontua.

A professora universitária, afirma, entretanto, que existem pesquisas que mostram que os efeitos negativos dos castigos físicos a uma criança não são cancelados na presença de um ambiente afetuoso. “A pesquisadora norte-americana Elizabeth Gershoff publicou um trabalho que evidencia que, apesar de ser difícil calcular com exatidão quantos eventos adversos na vida da criança seriam necessários para causar danos a longo prazo, sugere a possibilidade de traumas futuros, mesmo que esses bebês sejam acolhidos e nunca mais negligenciados em sua infância”.

Além disso, Andreia Mortensen cita pesquisa do órgão norte-americano Centers for Disease Control and Prevention (clique aqui e saiba mais) que analisou os efeitos de uma má criação crônica, quando a criança era exposta a uma série de traumas. “Constaram que quanto mais traumas, mais danos e efeitos cumulativos na vida do adulto são observados. E mais, há evidências, mesmo que indiretas, de que o método ‘choro controlado’ (utilizado para ‘ensinar’ a criança a adormecer sozinha) causa mudanças a longo prazo nos níveis de cortisol, que é um corticóide produzido por nosso corpo em situações de estresse. Assim, a exposição repetida ao estresse, por aumentar a liberação de cortisol, induz uma série de alterações danosas ao organismo, como alergias, processos autoimunes e outros problemas”, diz.

Por outro lado, segundo Andreia, pesquisas em epigenética têm provado cada vez mais que um cuidado maternal carinhoso na infância pode resultar em benefícios. “Um importante estudo comparou dois grupos de ratas, aquelas que haviam recebido lambidas frequentes de suas mães quando ainda bebês e aquelas que não haviam recebido qualquer tipo de cuidado materno. Os animais que receberam cuidados maternos sadios transformaram-se em animais adultos mais tranquilos, quando comparados com os que não receberam. Observou-se também mudanças cerebrais correlacionadas com a regulação dos níveis dos hormônios do estresse ao longo de toda sua vida adulta”, pondera.

AFP PHOTO / Yoshikazu TSUNO
'Baby Cry Sumo': Segurados por lutadores de sumô, disputa consiste em fazer bebês chorarem (foto: AFP PHOTO / Yoshikazu TSUNO)


Para ela, a história da cantora canadense ou do ‘Baby Cry Sumo’ mostram que ainda há um longo caminho para se percorrer para que crianças realmente cresçam sem violência. “Todos dizem que querem um mundo menos violento, mais pacífico, com mais respeito e menos desigualdades. Porém, há ainda muitos individualismos e falta de empatia, em parte devido à pressão por produtividade e em parte devido às relações humanas baseadas em competitividade e egocentrismo”, acredita.

Andreia Mortensen cita Ligia Moreiras Sena, autora do blog Cientista que virou mãe, para dizer que "cabe a cada um de nós, individualmente, e depois em sua família, seu grupo, sua comunidade, sua vizinhança, escola, e assim por diante, começar com as mudanças e dar exemplos de relacionamentos respeitosos e não violentos”. As autoras de 'Educar sem violência - criando filhos sem palmadas' consideram importante privilegiar os vulneráveis, aqueles que não têm autonomia para decidir por si, para reivindicar seus próprios direitos e que muitas vezes são sujeitados a julgamentos e situações de exclusão, como a que vivenciou a cantora canadense Sarah Blackwood com seu filho de 2 anos. Para elas, é importante lembrar que as crianças são parte da sociedade e se mostrar solidário em uma situação de choro é contribuir para um mundo menos violento.