Naquela manhã de julho de 1984, Larissa sentiu que alguma coisa não ia bem. Depois de brincar com as amigas no parquinho, ficou enjoada, com febre e muita dor na nuca. Deitou-se na cama de uma amiga para descansar. Só foi se levantar dois meses depois. A menina de 7 anos, até então completamente saudável, recebeu o diagnóstico em setembro. Tinha artrite idiopática juvenil (AIJ), uma doença autoimune que mudaria sua vida para sempre.
Leia outras matérias da série:
Exercícios físicos não são mais proibidos para quem tem artrite reumatoide
Embora muita gente ainda associe as enfermidades reumáticas à idade avançada, elas podem aparecer mesmo em bebês. No caso de crianças, a AIJ é uma das mais frequentes. Não existem dados epidemiológicos do Brasil, mas estudos internacionais indicam uma ocorrência relativamente comum: até dois casos em cada mil. Uma pesquisa de 2013, realizada em Embu das Artes (SP) com 2.880 estudantes de 6 a 12 anos, encontrou uma prevalência de 0,34 em mil nessa faixa etária.
Assim como a artrite reumatoide, que afeta adultos, a idiopática juvenil tem causa desconhecida. Os pesquisadores desconfiam, porém, que alguns fatores, como alteração hormonal, infecção viral ou bacteriana, estresse psicológico e trauma nas articulações desencadeiem o problema em pessoas predispostas geneticamente.
Na década de 1980, quando Larissa Jansen, 38 anos, apresentou os sintomas, as opções terapêuticas eram escassas. Além disso, ela tem a forma mais grave da doença, a sistêmica, com indícios de síndrome de Still. Essa última é uma rara enfermidade reumática que provoca febre alta sem causa aparente. Em Larissa, a artrite se manifesta de forma poliarticular: todas as articulações do corpo — do dedo do pé à nuca — são afetadas.
Como, há três décadas, os medicamentos eram muito menos eficazes que hoje, a jornalista, escritora e analista judiciária desenvolveu diversas deformidades, precisou colocar próteses nos quadris e, em 2006, submeteu-se a dois transplantes ósseos. Devido a uma lesão medular, Larissa aguarda, na cadeira de rodas, uma nova cirurgia. Ainda assim, dá uma lição de vida: “Sentir-se deprimida é comum. O que não podemos é ficar deprimidas. A depressão passa a ser uma doença quando é um constante estado. Isso não, nunca tive”, diz (leia Duas perguntas para).
Hoje, o prognóstico de crianças e adolescentes com artrite idiopática juvenil melhorou muito. Os medicamentos não atuam mais apenas nos sintomas, mas são capazes de modificar o curso da doença. Dessa forma, as deformidades ficaram no passado. Assim como o repouso, uma recomendação em desuso. “Não existem mais limitações. A criança é orientada a ter uma vida feliz, tranquila. A atividade física é superimportante, mesmo as de impacto”, afirma a reumatologista Margarida de Fátima F. Carvalho, presidente do Departamento de Reumatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SPB).
A médica ressalta a importância da detecção da doença ainda no início para garantir que os pequenos pacientes fiquem livres de deformidades e complicações. O diagnóstico da artrite idiopática juvenil é clínico e se faz por exclusão. Os pais precisam ficar atentos à duração dos sintomas, que se estendem para além de seis semanas. A partir daí, os médicos descartam outras doenças que se manifestam de forma semelhante, como infecções, males oncológicos e hematológicos. É muito importante começar o acompanhamento precoce, não apenas para garantir o sucesso do tratamento, mas porque a forma sistêmica, que costuma acometer crianças de até 3 anos, pode, inclusive, matar.
Terapias melhoradas
Margarida de Fátima F. Carvalho lembra que a estrutura musculoesquelética das crianças e dos adolescentes ainda está em desenvolvimento, o que poderá implicar alterações do crescimento. Diferentemente da artrite reumatoide, a idiopática juvenil nem sempre acomete as articulações de forma bilateral, atingindo apenas um dos lados do corpo. “Pode acontecer, por exemplo, de uma perna ficar maior do que a outra”, diz. Contudo, a qualidade do tratamento atual reduz os riscos desses problemas. “Em 35 anos de reumatologia pediátrica, vi muitos pacientes precisarem de próteses e cadeiras de rodas. Mas, agora, com os novos medicamentos, o diagnóstico precoce e o acompanhamento regular, a qualidade de vida deles tem sido muito boa”, garante.
Normalmente, a artrite idiopática juvenil entra em remissão no fim da adolescência. Foi o que aconteceu com Thiago Bitar M. Barros, 33 anos. Dos 7 aos 16, ele conviveu com a doença. “Na minha época, eram poucos os tratamentos disponíveis. Então, demorei muito tempo para alcançar um real controle da doença. É muito difícil ver sua vida mudar do dia para a noite, não conseguir fazer suas coisas, frequentar a escola, sair com os amigos. Mas, com o apoio da minha família e dos médicos, alcancei o controle e, hoje, tenho uma vida normal. Óbvio que me cuido bastante. Eu me alimento bem, pratico atividade física, durmo cedo. Sempre visando qualidade de vida”, relata.
De paciente, ele se tornou médico — Thiago formou-se em medicina, especializou-se em reumatologista e atende pessoas com artrite em São Paulo. “Aprendi muito com a dor e o sofrimento impostos pela doença e consigo compreender as necessidades dos meus pacientes, pois já estive do outro lado”, diz.
Larissa Jansen, jornalista e autora do livro Diário de um transplante ósseo — na real, dois.
De que forma a artrite afetou sua infância e adolescência?
A artrite idiopática juvenil mudou minha vida. Ninguém passa por ela imune. Comigo não é diferente. Pique-pega, queimada, jogo de vôlei.... nada disso pude fazer porque havia um risco enorme de me quebrar. E no início da doença é quando há mais inflamação, dores, cansaço, desânimo. Aí veio a adolescência. O primeiro beijo, a primeira transa. Comigo, isso veio após os 20 anos. Eu já era formada na Universidade de Brasília, como bacharela em jornalismo. Nós todas com AIJ sentimos dores na ATM — articulação temporomandibular. E precisamos ter cuidados para não deslocá-la. Aos 16 anos, fiz minha primeira ATQ — artroplastia total do quadril (prótese). Só então voltei a andar! Como pode ver, é um leão por dia.
Quais conselhos você poderia dar para crianças e adolescentes que foram diagnosticados com a doença?
Bem, a dica é: vivam. Atualmente, temos muitos analgésicos, anti-inflamatórios, isso pra falar somente daquilo que tira a dor. Existem os medicamentos que “mudam o curso da doença”, como os biológicos, e são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde. Temos também cirurgias que, antes complexas, se tornam cada vez mais simples; exames que permitem saber exatamente onde e como a doença está, levando ao “tratamento do foco” com a redução dos “efeitos colaterais” (medicamentosos, cirúrgico, fisioterápico). Além de viver, cuidem do humor! A cabeça é tudo. E lembrem-se: a artrite não é só uma doença do corpo. Ela pode lesionar sua medula. E, se isso ocorrer, mexe com seu cérebro. Mas enquanto há vida, há esperança.
* Quem quiser um exemplar do livro pode escrever para mjansenlarissa@gmail.com. Basta pagar o custo do frete (em média, R$ 5)
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Exercícios físicos não são mais proibidos para quem tem artrite reumatoide
Embora muita gente ainda associe as enfermidades reumáticas à idade avançada, elas podem aparecer mesmo em bebês. No caso de crianças, a AIJ é uma das mais frequentes. Não existem dados epidemiológicos do Brasil, mas estudos internacionais indicam uma ocorrência relativamente comum: até dois casos em cada mil. Uma pesquisa de 2013, realizada em Embu das Artes (SP) com 2.880 estudantes de 6 a 12 anos, encontrou uma prevalência de 0,34 em mil nessa faixa etária.
Assim como a artrite reumatoide, que afeta adultos, a idiopática juvenil tem causa desconhecida. Os pesquisadores desconfiam, porém, que alguns fatores, como alteração hormonal, infecção viral ou bacteriana, estresse psicológico e trauma nas articulações desencadeiem o problema em pessoas predispostas geneticamente.
Na década de 1980, quando Larissa Jansen, 38 anos, apresentou os sintomas, as opções terapêuticas eram escassas. Além disso, ela tem a forma mais grave da doença, a sistêmica, com indícios de síndrome de Still. Essa última é uma rara enfermidade reumática que provoca febre alta sem causa aparente. Em Larissa, a artrite se manifesta de forma poliarticular: todas as articulações do corpo — do dedo do pé à nuca — são afetadas.
Como, há três décadas, os medicamentos eram muito menos eficazes que hoje, a jornalista, escritora e analista judiciária desenvolveu diversas deformidades, precisou colocar próteses nos quadris e, em 2006, submeteu-se a dois transplantes ósseos. Devido a uma lesão medular, Larissa aguarda, na cadeira de rodas, uma nova cirurgia. Ainda assim, dá uma lição de vida: “Sentir-se deprimida é comum. O que não podemos é ficar deprimidas. A depressão passa a ser uma doença quando é um constante estado. Isso não, nunca tive”, diz (leia Duas perguntas para).
Hoje, o prognóstico de crianças e adolescentes com artrite idiopática juvenil melhorou muito. Os medicamentos não atuam mais apenas nos sintomas, mas são capazes de modificar o curso da doença. Dessa forma, as deformidades ficaram no passado. Assim como o repouso, uma recomendação em desuso. “Não existem mais limitações. A criança é orientada a ter uma vida feliz, tranquila. A atividade física é superimportante, mesmo as de impacto”, afirma a reumatologista Margarida de Fátima F. Carvalho, presidente do Departamento de Reumatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SPB).
A médica ressalta a importância da detecção da doença ainda no início para garantir que os pequenos pacientes fiquem livres de deformidades e complicações. O diagnóstico da artrite idiopática juvenil é clínico e se faz por exclusão. Os pais precisam ficar atentos à duração dos sintomas, que se estendem para além de seis semanas. A partir daí, os médicos descartam outras doenças que se manifestam de forma semelhante, como infecções, males oncológicos e hematológicos. É muito importante começar o acompanhamento precoce, não apenas para garantir o sucesso do tratamento, mas porque a forma sistêmica, que costuma acometer crianças de até 3 anos, pode, inclusive, matar.
Terapias melhoradas
Margarida de Fátima F. Carvalho lembra que a estrutura musculoesquelética das crianças e dos adolescentes ainda está em desenvolvimento, o que poderá implicar alterações do crescimento. Diferentemente da artrite reumatoide, a idiopática juvenil nem sempre acomete as articulações de forma bilateral, atingindo apenas um dos lados do corpo. “Pode acontecer, por exemplo, de uma perna ficar maior do que a outra”, diz. Contudo, a qualidade do tratamento atual reduz os riscos desses problemas. “Em 35 anos de reumatologia pediátrica, vi muitos pacientes precisarem de próteses e cadeiras de rodas. Mas, agora, com os novos medicamentos, o diagnóstico precoce e o acompanhamento regular, a qualidade de vida deles tem sido muito boa”, garante.
Normalmente, a artrite idiopática juvenil entra em remissão no fim da adolescência. Foi o que aconteceu com Thiago Bitar M. Barros, 33 anos. Dos 7 aos 16, ele conviveu com a doença. “Na minha época, eram poucos os tratamentos disponíveis. Então, demorei muito tempo para alcançar um real controle da doença. É muito difícil ver sua vida mudar do dia para a noite, não conseguir fazer suas coisas, frequentar a escola, sair com os amigos. Mas, com o apoio da minha família e dos médicos, alcancei o controle e, hoje, tenho uma vida normal. Óbvio que me cuido bastante. Eu me alimento bem, pratico atividade física, durmo cedo. Sempre visando qualidade de vida”, relata.
De paciente, ele se tornou médico — Thiago formou-se em medicina, especializou-se em reumatologista e atende pessoas com artrite em São Paulo. “Aprendi muito com a dor e o sofrimento impostos pela doença e consigo compreender as necessidades dos meus pacientes, pois já estive do outro lado”, diz.
Larissa Jansen, jornalista e autora do livro Diário de um transplante ósseo — na real, dois.
De que forma a artrite afetou sua infância e adolescência?
A artrite idiopática juvenil mudou minha vida. Ninguém passa por ela imune. Comigo não é diferente. Pique-pega, queimada, jogo de vôlei.... nada disso pude fazer porque havia um risco enorme de me quebrar. E no início da doença é quando há mais inflamação, dores, cansaço, desânimo. Aí veio a adolescência. O primeiro beijo, a primeira transa. Comigo, isso veio após os 20 anos. Eu já era formada na Universidade de Brasília, como bacharela em jornalismo. Nós todas com AIJ sentimos dores na ATM — articulação temporomandibular. E precisamos ter cuidados para não deslocá-la. Aos 16 anos, fiz minha primeira ATQ — artroplastia total do quadril (prótese). Só então voltei a andar! Como pode ver, é um leão por dia.
Quais conselhos você poderia dar para crianças e adolescentes que foram diagnosticados com a doença?
Bem, a dica é: vivam. Atualmente, temos muitos analgésicos, anti-inflamatórios, isso pra falar somente daquilo que tira a dor. Existem os medicamentos que “mudam o curso da doença”, como os biológicos, e são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde. Temos também cirurgias que, antes complexas, se tornam cada vez mais simples; exames que permitem saber exatamente onde e como a doença está, levando ao “tratamento do foco” com a redução dos “efeitos colaterais” (medicamentosos, cirúrgico, fisioterápico). Além de viver, cuidem do humor! A cabeça é tudo. E lembrem-se: a artrite não é só uma doença do corpo. Ela pode lesionar sua medula. E, se isso ocorrer, mexe com seu cérebro. Mas enquanto há vida, há esperança.
* Quem quiser um exemplar do livro pode escrever para mjansenlarissa@gmail.com. Basta pagar o custo do frete (em média, R$ 5)