Um dos cânceres de sangue mais comuns, o mieloma múltiplo pode ganhar nova frente promissora de tratamento. Pesquisadores do Centro para Câncer Kimmel, ligado à Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, relatam na edição de hoje da revista Science Translational Medicine o primeiro ensaio clínico de uma intervenção que diminuiu em até 90% a quantidade dos tumores usando células presentes na medula óssea dos próprios pacientes. Pelo menos metade deles apresentou boas respostas ao tratamento contra a doença que debilita o corpo dizimando o sistema imunológico.
A maioria das imunoterapias do câncer obtém anticorpos especializados contra a doença dentro do próprio tumor, que geralmente é sólido. As estruturas do mieloma múltiplo, porém, são líquidas e descentralizadas. A equipe liderada pelo imunologista Ivan Borrello imaginou, diante disso, que células T especializadas em atacar as células doentes poderiam estar justamente no órgão que produz o sangue, a medula óssea, um tecido esponjoso que fica dentro dos ossos.
Treze dos 22 pacientes que participaram do estudo apresentaram significativa redução na quantidade de tumor no sangue após receberem células T especiais retiradas de seus ossos. Essas células, chamadas linfócitos infiltrantes da medula (LIM), foram coletadas de cada participante e cultivadas em laboratório para serem multiplicadas. Depois, ativadas e injetadas novamente nos voluntários.
Um ano após terem recebido a terapia com LIM, mais da metade dos pacientes apresentou pelo menos uma resposta parcial ao tratamento, o que significa que os tumores diminuíram em pelo menos 50%. Dos 22 pacientes, sete apresentaram redução de 90% no volume de células tumorais e viveram em média 25,1 meses sem progressão do câncer. Nos 15 restantes, os pesquisadores observaram média de 11,8 meses sem progressão da doença. Nenhum deles sofreu efeitos colaterais sérios com a terapia.
Além disso, os cientistas descobriram que os pacientes cuja medula óssea continha um elevado número de células de memória central — também estruturas do sistema imunológico — antes do tratamento apresentaram melhor resposta à terapia. “Esse estudo mostra que as LIMs podem ser eficazmente usadas como uma fonte de células T específicas na terapia celular, especialmente em enfermidades hematológicas. Além disso, ele destaca alguns parâmetros nas LIMs e no hospedeiro que poderiam potencialmente ajudar a prever resultados clínicos. Se confirmados por mais estudos, podem servir como biomarcadores para determinar a elegibilidade do paciente”, acredita Borrello.
Ramificações
Os dados estão sendo utilizados para orientar outros dois ensaios clínicos com LIMs também em Johns Hopkins. Os cientistas tentam estender a resposta antitumoral por meio da combinação do transplante dessas células com uma vacina contra câncer desenvolvida na mesma universidade: a GVAX. Também testam a combinação com uma droga contra mieloma já usada fora do país, a lenalidomida. Outro ramo do estudo é focado no desenvolvimento de LIMs que tratem tumores sólidos, como os de pulmão e os gástricos, bem como cânceres pediátricos, neuroblastoma e sarcoma de Ewing, por exemplo.
Evanius Wiermann, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc), explica que os princípios do estudo não são uma novidade. “No geral, são fabricadas vacinas e outras estratégias utilizando pedaços do próprio tumor ou do sangue periférico para alguns tipos de câncer”, conta. Estados Unidos e Europa aprovaram uma vacina que segue a mesma linha, a sipuleucel-t, para tratar tumores na próstata. “É pouco tóxica e aumenta em quatro meses a sobrevida. O problema é que é muito cara: US$ 93 mil”, detalha o médico.
Na opinião do oncologista, com a terapia dos pesquisadores de Johns Hopkins e outras na mesma linha, enjoos e perda de cabelo comuns nos tratamentos atuais estão com os dias contados. “Com estratégias assim, de imunoterapia, o próprio indivíduo ataca a doença, o que é bom, pois não é submetido a tratamentos que não sabemos se vão dar certo ou não”, defende.
Difícil acesso
As novas frentes de tratamento, entretanto, devem demorar para chegar ao Brasil, acredita Wiermann. “Temos dificuldade para fazer pesquisas, pois as drogas não são aprovadas aqui. Isso acontece porque são muito caras, podendo ser cobertas por convênios particulares, mas isso é mais difícil para o Sistema Único de Saúde e pode haver muita judicialização.”
O problema foi enfrentado por Rogério de Sousa Oliveira, 45 anos, diagnosticado com mieloma múltiplo há quatro anos, após procurar tratamento para um desconforto nos pés. “Um formigamento”, conta. O advogado foi submetido à quimioterapia ainda em 2011, mas recorreu à lenalidomida — uma das substâncias estudadas na Universidade de Johns Hopkins e ainda não aprovada no Brasil. Conseguiu, após entrar na Justiça, três meses de medicamento. “Foi um processo muito desgastante. Eu e meu médico vimos que não compensa porque o estresse afeta a imunidade e isso não é uma coisa interessante durante o tratamento.”
Rogério conseguiu estabilizar a progressão da doença com um transplante de medula óssea. Hoje, dedica-se a informar as pessoas sobre o mieloma múltiplo, principalmente com um evento chamado Café & Acolhimento. Trata-se de uma reunião mensal com pacientes, familiares, profissionais da saúde e amigos de pessoas com a enfermidade. “O mieloma e minha profissão estão interligados. Isso faz parte do meu trabalho. Tento apoiar os movimentos sociais e advogo em favor de outros pacientes”, conta. Mais de 30 mil brasileiros são diagnosticados com a doença a cada ano. Embora seja um tipo mais raro de neoplasia, é o segundo mais comum entre os cânceres do sangue, ultrapassando a leucemia.
Cautela
“Esse estudo oferece uma perspectiva importante, mas não pode ser considerado o único tratamento e nem curativo. Deve ser olhado com cautela. Cada vez mais pesquisas focam-se no mieloma, que é um tipo mais raro de câncer em relação ao de mama e ao de pulmão, por exemplo. Hoje, existem no Brasil cerca de 20 mil pacientes sendo tratados. O diagnóstico não é difícil, mas, às vezes, os sintomas da doença confundem até mesmo médicos que não são especialistas, como clínicos gerais e geriatras. Só que o atraso no diagnóstico faz a gente perder tempo. A mortalidade é alta por causa disso. E no Brasil deve ser mais ainda do que lá fora. É um dado não computado, mas que temos certeza, pois as pessoas que chegam ao tratamento já estão com a doença muito avançada”.
Angelo Maiolino, diretor da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
A maioria das imunoterapias do câncer obtém anticorpos especializados contra a doença dentro do próprio tumor, que geralmente é sólido. As estruturas do mieloma múltiplo, porém, são líquidas e descentralizadas. A equipe liderada pelo imunologista Ivan Borrello imaginou, diante disso, que células T especializadas em atacar as células doentes poderiam estar justamente no órgão que produz o sangue, a medula óssea, um tecido esponjoso que fica dentro dos ossos.
Treze dos 22 pacientes que participaram do estudo apresentaram significativa redução na quantidade de tumor no sangue após receberem células T especiais retiradas de seus ossos. Essas células, chamadas linfócitos infiltrantes da medula (LIM), foram coletadas de cada participante e cultivadas em laboratório para serem multiplicadas. Depois, ativadas e injetadas novamente nos voluntários.
Um ano após terem recebido a terapia com LIM, mais da metade dos pacientes apresentou pelo menos uma resposta parcial ao tratamento, o que significa que os tumores diminuíram em pelo menos 50%. Dos 22 pacientes, sete apresentaram redução de 90% no volume de células tumorais e viveram em média 25,1 meses sem progressão do câncer. Nos 15 restantes, os pesquisadores observaram média de 11,8 meses sem progressão da doença. Nenhum deles sofreu efeitos colaterais sérios com a terapia.
Além disso, os cientistas descobriram que os pacientes cuja medula óssea continha um elevado número de células de memória central — também estruturas do sistema imunológico — antes do tratamento apresentaram melhor resposta à terapia. “Esse estudo mostra que as LIMs podem ser eficazmente usadas como uma fonte de células T específicas na terapia celular, especialmente em enfermidades hematológicas. Além disso, ele destaca alguns parâmetros nas LIMs e no hospedeiro que poderiam potencialmente ajudar a prever resultados clínicos. Se confirmados por mais estudos, podem servir como biomarcadores para determinar a elegibilidade do paciente”, acredita Borrello.
Ramificações
Os dados estão sendo utilizados para orientar outros dois ensaios clínicos com LIMs também em Johns Hopkins. Os cientistas tentam estender a resposta antitumoral por meio da combinação do transplante dessas células com uma vacina contra câncer desenvolvida na mesma universidade: a GVAX. Também testam a combinação com uma droga contra mieloma já usada fora do país, a lenalidomida. Outro ramo do estudo é focado no desenvolvimento de LIMs que tratem tumores sólidos, como os de pulmão e os gástricos, bem como cânceres pediátricos, neuroblastoma e sarcoma de Ewing, por exemplo.
Evanius Wiermann, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc), explica que os princípios do estudo não são uma novidade. “No geral, são fabricadas vacinas e outras estratégias utilizando pedaços do próprio tumor ou do sangue periférico para alguns tipos de câncer”, conta. Estados Unidos e Europa aprovaram uma vacina que segue a mesma linha, a sipuleucel-t, para tratar tumores na próstata. “É pouco tóxica e aumenta em quatro meses a sobrevida. O problema é que é muito cara: US$ 93 mil”, detalha o médico.
Na opinião do oncologista, com a terapia dos pesquisadores de Johns Hopkins e outras na mesma linha, enjoos e perda de cabelo comuns nos tratamentos atuais estão com os dias contados. “Com estratégias assim, de imunoterapia, o próprio indivíduo ataca a doença, o que é bom, pois não é submetido a tratamentos que não sabemos se vão dar certo ou não”, defende.
Difícil acesso
As novas frentes de tratamento, entretanto, devem demorar para chegar ao Brasil, acredita Wiermann. “Temos dificuldade para fazer pesquisas, pois as drogas não são aprovadas aqui. Isso acontece porque são muito caras, podendo ser cobertas por convênios particulares, mas isso é mais difícil para o Sistema Único de Saúde e pode haver muita judicialização.”
O problema foi enfrentado por Rogério de Sousa Oliveira, 45 anos, diagnosticado com mieloma múltiplo há quatro anos, após procurar tratamento para um desconforto nos pés. “Um formigamento”, conta. O advogado foi submetido à quimioterapia ainda em 2011, mas recorreu à lenalidomida — uma das substâncias estudadas na Universidade de Johns Hopkins e ainda não aprovada no Brasil. Conseguiu, após entrar na Justiça, três meses de medicamento. “Foi um processo muito desgastante. Eu e meu médico vimos que não compensa porque o estresse afeta a imunidade e isso não é uma coisa interessante durante o tratamento.”
Rogério conseguiu estabilizar a progressão da doença com um transplante de medula óssea. Hoje, dedica-se a informar as pessoas sobre o mieloma múltiplo, principalmente com um evento chamado Café & Acolhimento. Trata-se de uma reunião mensal com pacientes, familiares, profissionais da saúde e amigos de pessoas com a enfermidade. “O mieloma e minha profissão estão interligados. Isso faz parte do meu trabalho. Tento apoiar os movimentos sociais e advogo em favor de outros pacientes”, conta. Mais de 30 mil brasileiros são diagnosticados com a doença a cada ano. Embora seja um tipo mais raro de neoplasia, é o segundo mais comum entre os cânceres do sangue, ultrapassando a leucemia.
Cautela
“Esse estudo oferece uma perspectiva importante, mas não pode ser considerado o único tratamento e nem curativo. Deve ser olhado com cautela. Cada vez mais pesquisas focam-se no mieloma, que é um tipo mais raro de câncer em relação ao de mama e ao de pulmão, por exemplo. Hoje, existem no Brasil cerca de 20 mil pacientes sendo tratados. O diagnóstico não é difícil, mas, às vezes, os sintomas da doença confundem até mesmo médicos que não são especialistas, como clínicos gerais e geriatras. Só que o atraso no diagnóstico faz a gente perder tempo. A mortalidade é alta por causa disso. E no Brasil deve ser mais ainda do que lá fora. É um dado não computado, mas que temos certeza, pois as pessoas que chegam ao tratamento já estão com a doença muito avançada”.
Angelo Maiolino, diretor da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro