Num primeiro momento, a reação do paciente é de indignação e a sensação é de impotência, incapacidade, descaso... A maioria não entende o lado do médico, que sempre é apontado como culpado, sem chance de defesa. Flávio Chaimowicz, professor-associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG, que concluiu recentemente o pós-doutorado em educação médica no Institute of Medical Education Research, da Erasmus University de Rotterdam (Holanda), alerta que, “se depender do desejo médico, as consultas seriam longas, porque ele sabe da eficiência. No entanto, na medicina como é praticada hoje, o médico é pressionado pelas circunstâncias do dia a dia. E ele se queixa disso”.
Desacelerar. É hora de repensar o ritmo da vida. O mundo está numa toada que amplifica tudo. E, se é impossível controlar o tempo, é preciso encontrar uma saída para que ele corra a favor da saúde e do bem-estar. Slow food, slow fashion, slow parenting, slow medicine... A velocidade da vida parece pedir socorro por comportamentos, ações e atitudes mais em câmera lenta, no slow motion.
A slow medicine, termo que surgiu em 2011 em Turim, na Itália, tem a missão de desacelerar a medicina atual, que é pressionada a se impor de maneira cada vez mais veloz, diante de consultas cada vez mais rápidas e excessos de exames e remédios. Um dos defensores desse pensamento (ou movimento) é o cardiologista Marco Bobbio, diretor do Hospital Santa Croce e Carle di Cuneo, em Piemonte, na Itália, que adota prática que valoriza a relação médico-paciente e avisa que fazer mais não significa fazer melhor. Ele exalta a evolução da medicina, diz que seria insensatez negar o impacto de seus avanços, mas alerta sobre a complexidade do ser humano.
MISSÃO
“O ideal é a medicina individualizada, com maior tempo e proximidade na avaliação do paciente, assim como dos fatores que o cercam. É a medicina que exerço. Por outro lado, questiono alguns paradigmas da slow medicine, principalmente quanto a uma certa limitação ao uso da biotecnologia e dos recursos da moderna prevenção”, alerta Marcus Vinícius Bolívar Malachias, cardiologista, professor do Instituto de Pesquisa e Pós-graduação da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e presidente eleito da Sociedade Brasileira de Cardiologia para o biênio 2016–2017.
A verdade é que essa relação anda descompassada. Há acertos, erros e injustiças dos dois lados. A missão é buscar o equilíbrio com um modo de vida mais relax em todos os âmbitos. Mudar a forma de comer, o consumo no vestir e a maneira de lidar com a saúde. Não é fácil. Mas é preciso o primeiro passo, vislumbrar um caminho e a saída para que o tempo, o avanço da tecnologia e as pressões da vida moderna corram numa mesma direção, com o propósito essencial de viver melhor, de forma saudável e com total assistência à saúde.
O prazer de cuidar
Uma boa relação médico-paciente reforça a credibilidade e a confiança entre as partes, tornando o tratamento mais eficaz e trazendo bem-estar ao paciente
Nilza Palhares Correa, que festejará seus 80 anos em 26 de agosto, conta que é privilegiada por ter uma “relação estreita e amorosa” com sua médica ginecologista, Nilce Verçosa, que já atende à terceira geração da família. “Sou sua paciente há 20 anos, ela atende minha filha, Silvana, e minhas netas Roberta, Bruna e Luíza, sendo que fez o parto dos meus dois bisnetos, Ricardo e Roberto. A Luíza mora em São Paulo, mas só se consulta com a Nilce. O carinho dela é especial, dá atenção sem igual e é educada. E não tem pressa, mesmo com o consultório lotado. Já teve ocasião de o porteiro do prédio ir até seu andar, preocupado, porque era meia-noite e ela ainda estava atendendo. E mesmo com prioridades para atender, fazer um parto, uma mãe apavorada, ela não se apressa. O importante é que percebo que ela atende a todos como se fosse consulta particular, e isso é raro.”
Para Nilza, o valor de ter essa atenção da médica é a segurança. “Há cinco anos, tive um problema. Ela me pediu exames e me fez procurar outra médica. Passei por uma colonoscopia, foi detectado um câncer no início e tudo foi resolvido. Estou ótima, viajando o mundo inteiro e aproveitando a vida. A Nilce me atende por telefone a qualquer hora do dia ou da noite. Tenho todos os seus números. Sempre a indico e todos recebem o mesmo tratamento.” Roberta, a neta, revela que a relação com a ginecologista é como a de mãe e filha, tamanho o carinho. “Ela fez o parto dos meus filhos, Ricardo, de 6 anos, e Rodrigo, de 4. Passei por quatro abortos e ela foi fundamental no processo, foi também uma psicóloga, me deu todo o suporte, ligava de madrugada e ela atendia sempre disposta. Aliás, ligo para a Nilce até quando estou gripada.”
A proposta da slow medicine é resgatar uma abordagem mais cuidadosa na relação médico-paciente. Há profissionais que nunca abrem mão dessa proximidade e de conversas longas, outros passaram a adotá-la, há aqueles que têm dificuldade, são mais frios, e há ainda quem, ainda que pareça estranho, não precisa mesmo mais do que cinco minutos para resolver a vida de um paciente e dar o diagnóstico. Sem precisar de muita conversa. Por isso, não se apresse nos julgamentos.
PLENITUDE
O oncologista clínico Amândio Soares Fernandes Júnior, da equipe multidisciplinar da Oncomed, membro da atual diretoria da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica e preceptor da oncologia clínica do Hospital Felício Rocho, diz que, independentemente da doença, o paciente sente temor e medo diante de um diagnóstico e qualquer um fica fragilizado. “Não adianta toda a tecnologia, medicação de última geração, se não tiver sua expectativa atendida por completo, que é o atendimento do ponto de vista humano na sua plenitude. O paciente precisa sentir segurança, ser acolhido e ter a assistência médica.”
Para Amândio, o médico precisa saber ouvir na hora da angústia, no anseio diante do resultado de um exame, no momento do desconforto. “Penso que o fato de ser médico é um privilégio, porque podemos ajudar. E, independentemente da especialidade, a missão é resolver as angústias e oferecer o melhor que temos em termos técnicos e humano. Atender o paciente como ser humano.”
O oncologista enfatiza que a relação médico-paciente sempre foi valorizada e o médico é idolatrado pela sociedade. No entanto, houve mudanças, infelizmente, algumas prejudiciais. “Há casos em que a relação se transformou somente na mera prestação de serviço, numa relação de consumo. Alguns se esqueceram de toda a nossa história e do juramento de Hipócrates. Não podemos, porque escolhemos lidar e trabalhar com a maior nobreza da vida, o ser humano.”
Para inspirar
A Unicamp desenvolveu uma série de atividades curriculares e extracurriculares para ajudar o estudante a lidar com os desafios da relação médico-paciente. No primeiro ano, são usadas as artes plásticas, a música e a narrativa reflexiva para despertar a necessidade de se apropriar da dimensão afetivas dos pacientes e mostrar como a doença é indissociável da pessoa doente. No segundo, usa-se a teoria do improviso no teatro para mostrar qual a melhor postura do médico diante do diálogo com o paciente. Tradicionalmente, a universidade ensina habilidades de comunicação com uma série de regras de conduta e comportamento. “No último ano, trabalha com uma companhia de atores com experiência em educação médica, criando pacientes simulados. Os estudantes atendem esses pacientes e são observados por outros estudantes e por professores. Depois, se sentam em rodas e discutem o que ocorreu, centrando o debate nas emoções dos estudantes e dos pacientes, e como lidam com isso durante uma consulta real.
DEPOIMENTO
Marco Antonio de Carvalho Filho - clínico-geral e chefe da disciplina de emergências clínicas da Unicamp
“O estudante de medicina entra na faculdade muito jovem e, geralmente, vem de famílias pequenas, de nível socioeconômico alto, com um histórico de sucesso na vida acadêmica e, portanto, com poucas experiências de perda ou luto. Geralmente, começa o curso movido por uma grande vontade de ajudar. Mas ao longo do curso é exposto a uma série de experiências de perda e morte. E, infelizmente, nós, professores em geral, não somos capazes de criar um ambiente seguro para debater essas questões e mostrar para os nossos alunos como aprendemos a lidar com isso ao longo da nossa própria vida. Os estudantes sozinhos muitas vezes passam a acreditar que o isolamento afetivo é o caminho mais fácil para lidar com isso. Mas não é. Acabam ficando frustrados e não conseguem se aproximar do paciente e entender suas reais necessidades, muitas vezes utilizando o cinismo como válvula de escape. O paciente sofre muito com isso. Assim como somos capazes de amar cada vez melhor nossos parceiros de vida, aprendemos também a amar nossos pacientes e a amar nossa profissão. Para isso, precisamos cuidar da criação de uma identidade profissional médica pautada em valores, tais como compaixão, caridade, coragem, fidelidade, verdade científica e verdade humana. É muito importante que o médico seja sempre capaz de colocar os interesses do paciente acima dos seus interesses pessoais. Essa é a base do nosso contrato social.”
Acolher com respeito e combater a doença
Profissionais procuram ouvir e fazer diagnóstico preciso ao atender o paciente, apontando o caminho mais fácil para se chegar a um final feliz
A arte de curar é mais abrangente do que simplesmente diagnosticar e tratar uma doença. A importância da relação médico-paciente é fundamental para a conquista da saúde física, mental e espiritual. O cardiologista Bernard Lown, professor da Escola de Medicina de Harvard, no livro A arte perdida de curar, Editora Fundação Peirópolis, descreve casos com evidências sobre a importância e o poder terapêutico existentes nas palavras de um médico humanista, que pratica sua profissão com devoção, amor e arte. Um dos mais destacados cardiologistas do século 20, Bernard Lown já declarou que “jamais a medicina avançou tanto no diagnóstico e tratamento das mais variadas doenças e nunca o ser humano foi tão mal-cuidado”. Portanto, a missão dos adeptos da slow medicine é equilibrar os tempos modernos com a vida contemporânea e a medicina atual, tecnológica e avançada.
Quem assume esse papel é o cardiologista Marcus Vinícius Bolívar Malachias, mas sem idealizações utópicas, de maneira prática, correta e próxima do paciente. “O mundo é outro e não só para a medicina. O tempo se tornou o bem mais precioso e a otimização foi se modificando. O processo industrial, a mecanização, o computador... É preciso adequação. A população aumentou, a diversidade de médicos também e, acima de tudo, o conhecimento. Hoje, a cada segundo, há centenas de milhares de artigos científicos. A consequência é a especialização e a superespecialização. Não tem como ter conhecimento em todos os aspectos. Hoje, há cirurgias feitas pela mão de um robô, mais delicadas, com corte menor e incisão mínima. Avanços que médicos e pacientes ganharam.”
Mas Marcus lembra que tudo tem um preço, ou seja, mais pessoas com planos de saúde, mais assistência, mais acesso. E chega-se à encruzilhada: “Ganhamos quantidade, mas perdemos qualidade. Equação que sempre vai gerar conflito. Ganha com uma e perde com a outra”. Ele concorda com a urgência da reumanização da medicina, “porque lidamos com o tesouro maior, que é a saúde da pessoa. O fundamental é que cada profissional volte a entender (e aplicar) o valor de conciliar o legado dos antigos médicos, com a facilidade do conhecimento na ponta dos dedos”. Para isso, o cardiologista propõe quatro atitudes: primeiro, o bem-querer ao paciente; segundo, médico da família; terceiro, não tratar só a doença, mas a pessoa; e em quarto, compreender não só o indivíduo, mas onde vive, sua alimentação, ambiente de trabalho, condições climáticas, e isso leva tempo. “O ideal é captar as nuances, mais que o simples diagnóstico.”
SINALIZAÇÕES Marcus Vinícius exalta a busca da humanização como ponto principal do desejo de uma nova relação dentro do consultório, ambulatório e hospital. “O médico que consola, comemora vitória, sofre com a derrota da saúde. Essa relação é primorosa, profunda e foi para isso que escolhemos a medicina, para acolher as pessoas e combater as doenças. É a missão de todas as ciências da saúde.” Para o cardiologista, estar atento, ter tempo e decifrar o que não está só nas palavras e nos exames é o papel do médico. Ele precisa ouvir cada paciente e suas sinalizações, porque têm características diferentes e sua individualidade. “Escolher a medicina é querer bem ao próximo.”
O cardiologista compartilha o que imagina de um novo caminho. Para ele, não adianta abandonar, voltar no tempo. É preciso ser aliado dos avanços nesse embate, entender a tecnologia e reiterar a ética médica. O desafio é que o conhecimento científico chegue às pessoas. “Na minha área, falta tratamento e prevenção com conhecimento que sabemos há 40 anos, que está disponível. Resgatar a qualidade de vida, não se preocupar com a doença e tomar remédio, sim, se necessário. A sociedade cobra do médico que ele não pode errar, mas se esquece que a medicina não é uma lista de virtudes. Ela não é exata, mas de probabilidade. Por isso, a importância de estar mais próximo do paciente. Se há proximidade não será preciso, por exemplo, pedir tantos exames. Ele saberá dosar, já que remédios e exames são aliados, não inimigos. Cada vez mais os médicos serão cobrados e é preciso saber equilibrar os dois mundos. Como disse Gandhi, ‘a ciência sem humanismo é cega’.”
Atenção aos sintomas
Na relação médico-paciente, a discussão é válida, o alerta é importante, a percepção é real, mas há distorções. Por isso, antes de mais nada, Flávio Chaimowicz, professor associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG e com pós-doutorado em educação médica no Institute of Medical Education Research da Erasmus University de Rotterdam (Holanda), expõe duas questões primordiais: “primeiro, o médico não é o centro da saúde, porque cada vez mais é uma equipe que ajuda a preservar e a recuperar a saúde. Impossível pensar em adultos e idosos sem a participação de um psicólogo ou fisioterapeuta, de um paciente obeso sem um nutricionista. O médico deixou de ser o centro e passa a fazer parte de uma equipe. Segundo, cada vez menos a saúde das pessoas depende da consulta com o médico, porque elas estão mais bem-informadas, tanto pelo “dr. Google” (com seus lados bom e ruim) quanto pela disseminação de informações. Sabem da importância da atividade física, de não fumar e estão mais imunizadas. Elas conseguem cuidar da saúde e o fazem de maneira eficaz. Mudam hábitos ruins”.
Ao destacar esse cenário, Flávio Chaimowicz quer chamar a atenção para a existência da consulta abrangente e a focalizada na medicina. “Torceu o joelho, vai no ortopedista para saber a lesão e o tratamento. Cabe consulta focalizada. Na abrangente, o paciente vai a um clínico, que poderá identificar o problema ortopédico, qual a lesão, o tratamento e dizer que não foi uma torção, mas artrose provocada pela obesidade. O que faz a consulta corrida é a superespecialização. Se você vai tratar a catarata, o médico não vai perguntar sobre sua dieta.”
RESGATE
Por outro lado, lembra o médico, como fica um paciente que chega ao consultório sentindo-se fraco? Um idoso com problema de memória? Uma mulher que sente palpitações? Não dá para fazer uma consulta focalizada nesses casos. “Aqui entra a velha clínica médica, o resgate da atividade médica tradicional, a consulta abrangente e cuidadosa. E por que ela é importante? Quando a queixa não está clara, há muitas causas possíveis. No caso da mulher, pode ser endocrinológica, cardiológica ou psicológica. A mulher com falta de energia abre um leque de hipóteses diagnósticas. Já o idoso pode ser neurológico ou uso inadequado de remédio. Daí a importância da conversa, do ouvir. E por isso, também é importante entender a diferença de raciocínio entre o médico jovem e o mais velho (veja arte ao lado). E tem o outro lado. É tarefa do paciente organizar seus exames, listar seus medicamentos, expor seus sintomas e dar informações do histórico da sua saúde e da família. Ter tudo organizado.”