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Um outro lado da tatuagem: técnica devolve gosto pela própria aparência
Dona Pifa sempre quis ser tatuada, mas conta que era “manobrada”. “Primeiro, meu pai não deixava. Depois, meu marido não deixava. Só deu pra fazer quando me tornei dona do meu próprio nariz”, relata. Amanhã, ela completa as flores na perna com um beija-flor e, a partir de então, começará a usar short, para que todos vejam o desenho. No aniversário de 100 anos, pretende fazer uma estrela no ombro, para exibir quando usar blusas de alça. Questionada sobre a dor, Dona Pifa admite: “Tomei um vinhozinho e um uísque antes. Senti como se fosse uma formiga. Aos 90, já me acostumei com dor”. Pra ela, a juventude está na cabeça e é importante realizar os desejos, mesmo que isso demore décadas.
As flores de Dona Pifa foram um presente do neto, o gaitista Engels Espíritos. “Quando chegamos ao estúdio, o tatuador pirou. Acho que foi a mulher mais velha que ele já tatuou”, conta. Ele calculou que alguns tios e primos poderiam ficar bravos com a surpresa, mas a reação foi positiva. Curiosamente, a atitude da matriarca encorajou vários familiares. Agora, quase todos trazem alguma arte no corpo.
O culto — e o estigma — da tatuagem oscilou ao longo dos tempos. Os motivos sobre a pele já foram usados para distinguir os membros mais valentes de uma sociedade. E também para marcar os indesejáveis e marginalizados. O preconceito enfraquece sempre que a tattoo ressurge como adorno, a meio caminho entre a rebeldia e o fashionismo. Além do aspecto artístico, as pessoas hoje também enxergam a possibilidade de ter uma ligação emocional com o desenho. São mães que eternizam o dia em que deram à luz; namorados que fazem juras de amor.
A assistente administrativa Denise Valéria da Silva Aquino, 51 anos, também demorou um pouco para fazer a primeira tatuagem, aos 30. “Foi por conta da pressão em casa. Meu pai e meus irmãos não aceitavam, achavam que era coisa de marginal”, diz. Atualmente, a cinquentona coleciona 20 desenhos na pele. Uma cobra coral no punho, presente de um sobrinho, foi sua “estreia”. No braço, a tattoo considerada mais importante: homenagem a um filho, morto em 2013. Ela só as faz onde consegue ver. “Onde não vejo, não tem graça”, afirma Denise, uma fã do chamado black work, estilo em que somente tinta preta é usada.
O tatuador Pablo Hermano tem uma teoria sobre a maior quantidade de pessoas interessadas em se tatuar. Ele acredita que o maior acesso à informação, com a internet, mostrou que a arte corporal é milenar e está na base de muitas culturas. “Os índios usavam genipapo; os indianos, hena nas mãos. As pessoas se tocaram da beleza e da naturalidade da tatuagem”, reflete. E menciona o fato de que muitas celebridades ostentam suas tattos, despertando interesse num público amplo. Hermano diz fazer um estilo mais comercial e feminino de tatuagem. “Busco muita referência árabe e indiana”, resume.
Entre os tatuadores, há divergência sobre tratar-se ou não de um modismo. “Não cabe a mim dizer se é moda ou não. Depende de quem está fazendo e os motivos que o levaram a fazer”, opina Hermano. Ele conta que quando começou a tatuar, nos Estados Unidos, todas as mulheres queriam escrever “made in Brazil” no pulso. Também cita épocas em que muitos tatuaram âncoras, borboletas, mandalas, corações e conta que, hoje, muita gente o procura querendo o desenho de uma mão de Fátima (tradicional amuleto contra mau-olhado). Com sua experiência, viu a tattoo old school ressurgir com força e, depois, voltar a ser mais uma variação entre outras. “Fazer uma tatuagem totalmente original é complicado. O diferencial é o estilo”, conclui.
O tatuador Taiom, um dos mais procurados da cidade, vê a questão de outra forma: “Se, hoje, o mundo é multidiciplinar, e a informação viaja em minutos, as influências se cruzam em algum momento, o que se reflete na tatuagem”. Para ele, a popularização dessa forma de expressão era inevitável. “Se hoje as pessoas consomem algum conceito, naturalmente vão querer de alguma forma carregar isso em seu corpo, o que não significa que tatuagem seja moda”, enfatiza.
Ferramentas de trabalho
Da mesma forma que aumentou o contato dos brasileiros com a cultura da tatuagem, cresceu o acesso dos tatuadores aos instrumentos de trabalho. A tatuadora Nashari Katherin conta que, quando começou a trabalhar, há nove anos, fazia tatuagens menores e era bem mais complicado comprar material. “Tínhamos que esperar um fornecedor vir de São Paulo; nós mesmos tínhamos que soldar as agulhas antes de os clientes chegarem. Hoje, vem tudo pronto”, compara.
Ela explica que as tatuagens modernas não perdem a definição como antigamente, embora seja normal que a pele absorva um pouco da tinta. Além disso, ela defende que as tatuagens evoluíram esteticamente: “Eu acho linda quase toda tatuagem, inclusive aquela de cadeia, mas houve uma evolução, sim, que fez com que mais pessoas quisessem se tatuar”. O estilo dela é contemporâneo. Ela explica que uma das características é usar menos o preto chapado e mais texturas com linhas, pontilhados e composições geométricas.
Existe uma nova onda?
O tatuador Daniel Matsumoto tem um traço mais fino. Suas tattoos, geralmente feitas em tinta preta, seguem os preceitos do black work e o dot work (pontilhismo) — duas escolas em evidência. Embora toda tatuagem parta de pontos (os furos da agulha para formar o desenho), o pontilhismo faz uma leitura sofisticada desse recurso, lançando mão de sombras, texturas e de cores diferenciadas.
“Comecei a fazer esse tipo de desenho porque quase ninguém em Brasília fazia. Incorporo muito misticismo, pela influência da cidade, e também tecnologia, que vem da minha criação no Japão”, revela. Geometria sagrada e circuitos também fazem parte do repertório de Daniel. Ele acredita que a visão da sociedade sobre a tatuagem sofreu uma mudança: “A tatuagem e os tatuados saíram de um contexto marginalizado para uma ideia mais comercial”.
Frases, corações, borboletas e “desenhos mais genéricos”, de acordo com Daniel, ganharam espaço. Para ele, a mudança é positiva, pois diminui o preconceito e abre portas para que a tatuagem seja vista como arte. “Existem tatuadores que são contra, grupos mais alternativos que acham que isso é uma apropriação cultural. Eu entendo, mas acho que não devemos ir para nenhum extremo”, pondera.
Rogélio Santiago Paz Neto tatua há 37 anos. É o profissional mais antigo da capital ainda na ativa. Ele acredita que, assim como todas as artes, a tatuagem é cíclica. “Os artistas é que mudaram, começaram a usar mais elementos da arte na tatuagem. Sombra, perspectiva, aquarela, são todas técnicas antigas de desenho”, afirma. “No passado, eu já usei pontilhismo e aquarela, por exemplo. Mas são técnicas que não eram usadas porque precisam de muito cuidado, o pontilhismo pode expandir e borrar; a aquarela pode sumir”, acrescenta. Rogélio defende que o tatuador precisa dominar o máximo de estilos e estar familiarizado com as técnicas da “velha guarda”.
O tatuador Leonardo Chacel também enxerga a popularização da tatuagem com bons olhos. “Não se trata mais de um grupo fechado e erroneamente marginalizado. Hoje, tenho clientes entre 18 e 65 anos. Assim como o público, o espaço e a aceitação dessa arte cresceram”, garante.
Clássicos não envelhecem jamais
Leonardo Chacel tatua há 6 anos e trabalha com todos os estilos, mas é especializado no conhecido como neotradicional (ou new school), inspirado no old school, só que mais elaborado. No old school, só eram usados o preto, o cinza e as “cores do reggae” (vermelho, verde e amarelo). Já o neotradicional tem uma paleta bem maior. “Eu não necessariamente escolhi esse estilo, mas ele se encaixa mais com as minhas influências, como quadrinhos, filmes de terror e ficção cientifica”, explica.
Apesar de ser especializado em desenhos maiores, Leonardo está convencido de que as tatuagens menores, mais delicadas e mais simples tiveram e têm um papel fundamental na aceitação que a tatuagem tem hoje. São muito procuradas, principalmente, por quem está começando a incorporar desenhos à pele.
O neotradional é o estilo preferido estudante Gabriela Costa Gama (Foto 1), 19 anos, dona de 20 tattoos. As mais significativas para ela são a imagem do gato de estimação, no braço, e um camafeu na coxa, em homenagem à avó. Para ela, a tatuagem é uma forma de exercer a liberdade de expressão. “É uma maneira de eternizar algo que sempre vai ter um significado para você”, resume.
Envolvida com arte desde criança, não se lembra ao certo de quando surgiu esse interesse. “Sempre pintei e meu irmão mais velho já tinha tatuagem. A tatuagem sempre representou coisas que eu gostava muito”, declara. A primeira foi feita com 14 anos, um pequeno símbolo da marca Chanel no punho, uma homenagem à figura de Coco Chanel. “Sempre admirei, tanto o trabalho como a mulher. Ela foi muito revolucionária e uma das primeiras mulheres do mundo com ideologia feminista.”
A designer Júlia Oga (Foto 2), 25 anos, celebra o fim do preconceito. “É muito bacana ver mãe e filha fazendo uma tatuagem pequena e delicada juntas. Com certeza, essa mãe vai olhar diferente para uma pessoa toda tatuada”, completa. Recentemente, fez tatuagens no estilo geométrico, com pontilhismo e traço fino, mas afirma não ter um estilo preferido. Um dos desenhos mais queridos representa cristais posicionados logo abaixo do peito. “É um elemento muito bonito, perfeccionista em sua forma natural. Centralizado na minha barriga, funciona quase como um amuleto”, justifica. A vontade de fazer uma tatuagem surgiu com 14 anos, mas o sonho só se realizou aos 18. Apesar de já ser maior de idade, ela admite: “Fiz escondido da minha mãe, com meu primeiro salário”.
Efeito aquarela
Outro estilo permitido pelo avanço técnico — e muito procurado — é a tatuagem com tinta colorida que reproduz o efeito da aquarela. É a chamada watercolor tattoo. A desvantagem de ser uma novidade é que não se sabe ao certo como ela reage com o passar dos anos. Não há idosos com esse tipo de desenho. De acordo com o tatuador Pablo Hermano, isso não é necessariamente um problema. “Tem gente que parte do princípio de que, se o corpo muda, a tatuagem vai junto. Já o pessoal mais tradicional prega que a tatuagem tem que ficar igual pra sempre.”
Por uma tattoo personalizada e autoral
A social media Nina Fontenelle, 22 anos, tem 11 desenhos no corpo. Quatro deles são criações próprias, levemente modificadas pelo tatuador apenas para que fosse possível desenhá-las na pele. O tatuador Pablo Hermano valoriza os traços idealizados pelo cliente, mas também incentiva a criação conjunta. “É a única arte que funciona assim, com o cliente interferindo”, explica.
Quando criança, Nina costumava pintar o corpo todo com canetinha. Ela sempre gostou de desenhar. “Acho uma forma linda de marcar momentos, fases, acontecimentos, e até mesmo sua arte ou a de outras pessoas em si”, declara. A mãe de Nina também ostenta tattoos.
Mais de 49 mil pessoas acompanham as publicações de Nina nas redes sociais. Com isso, muitos acabam imitando as tatuagens dela. “Por exemplo, ela foi a primeira a fazer no pulso e na mão”, conta Hermano. Ela diz levar as “homenagens” numa boa, mas admite: “Não me importo que peguem como referência, mas como cópia, fico chateada. São horas a fio para chegar ao desenho certo. Qualquer artista espera respeito e crédito por sua arte”. Quando os clientes vêm com um desenho pronto nitidamente copiado, os tatuadores tentam dissuadi-los. É um ponto de honra.
Uma longa história
A origem exata da tatuagem é incerta, mas pesquisas sugerem que remonta à pré-história. Diversos povos ao redor do mundo têm usado seus corpos como telas por motivos variados há milhares de anos. O analista de marketing digital Hernani Silva se dedica ao estudo da arte corporal há cerca de cinco anos e tem um blog especializado no assunto. De acordo com ele, a arte de fazer desenhos por meio da injeção de tinta surgiu em diferentes partes do mundo ao mesmo tempo, com propósitos diversos.
Em seu blog, que recebe cerca de 255 mil visitas por mês, Hernani menciona uma hipótese sobre o surgimento da tatuagem. Marcas acidentais, causadas em lutas ou guerras, se tornavam motivo de orgulho para o homem, pois expressavam a vitória. A partir de então, surgiu o hábito de fazer marcas permanentes na pele, o que eventualmente evoluiu para a tatuagem. Os desenhos no corpo passaram a ser usados para eternizar momentos importantes, como nascimentos, a chegada da puberdade e a morte.
Na década de 1930, a tatuagem chegou ao Ocidente. Os marinheiros foram os precursores, e os desenhos permaneceram como marca registrada dos homens do mar até a década de 1950. Como não tinham boa condição financeira ou influência social, fizeram da tatuagem algo popular em ambientes como guetos, prostíbulos e tavernas. A partir de então, começaram a fazer parte da subcultura de gangues e prisões. Somente no fim da década de 1970, a tatuagem ganhou novas significações.
No Brasil, segundo a doutora em antropologia Andrea Perez, o sentido estigmatizador do uso da tatuagem começou a mudar nos anos 1980, com o estabelecimento de lojas especializadas, com equipamentos modernos e materiais descartáveis. Houve a profissionalização dos tatuadores, mas mudou, sobretudo, a percepção social sobre o assunto.
Informações importantes
- Menores de 18 anos só podem ser tatuados com autorização por escrito dos pais ou responsáveis.
- As tatuagens são feitas com agulhas descartáveis e nunca devem ser reutilizadas, ainda que na mesma pessoa.
- Terminada a tatuagem, é necessário fazer um curativo no local com uma pomada que contenha ácido dexpantenol para reconstituir a pele.
- O sol provoca uma reação alérgica que faz com que a tinta da tatuagem se expanda na pele. A olho nu, tem-se a impressão de que a tinta se espalhou, portanto, é importante passar filtro solar com fator 50.
- Banho de mar e de piscina deve ser evitado na primeira semana pós-tatuagem.
- Checar se o estúdio tem alvará de funcionamento e se está com as licenças sanitárias em dia.
- É importante verificar se a tintafornecida no estúdio é aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
A composição das tintas
- A grande maioria das tintas são feitas à base de pigmentos derivados de metais, portanto, podem causar reaçõess alérgicas. É importante testá-las em uma parte do corpo antes de começar a aplicar na pele. Se você já tem muitas alergias, é melhor optar por pigmentos hipoalergênicos.
1930/40
Old school
Estilo que surgiu durante a popularização da tatuagem e segue até hoje. Os traços são firmes e grossos, e o desenho tem poucos detalhes. As cores usadas são apenas as primárias.
1970/80
New school ou neotradicional
Modernização do old school, traz uma paleta de cores maior. Tem mais detalhes e uso de sombras. Está relacionada à cultura hip hop.
1990
Realismo
Desenho mais complexo, procura imitar o efeito de uma fotografia. Arte realista, com uso de perspectiva, sombreamento e ilusões tridimensionais.
2000
Aquarela
Exibe poucos traços e aspecto de pintura. Geralmente, é usada em temas surrealistas e abstratos.
Pontilhismo ou dot work
Técnica de desenho baseada em pontos.
Dias atuais
Free-hand
Técnica muito difundida nas tatuagens contemporâneas, sem usar decalque (quando o desenho é feito no papel e transferido para a pele — o tatuador cria o desenho diretamente na pele do cliente.
Outros estilos
Geométrica
Baseado nas formas geométricas básicas: triângulos, círculos e quadrados.
Black work
Tatuagens em grandes extensões da pele, pintadas completamente de preto.
Oriental
Os desenhos são elementos tradicionais da cultura japonesa. Carpas, dragões, tigres e samurais são reproduzidos com traços firmes e bastante cor.
Tribal
Os desenhos são formados por linhas grossas e pretas, que, geralmente, possuem significados específicos. Desenhos das etnias maori e samoa são os mais usados.