Uma pesquisa com mais de mil adultos norte-americanos recentemente concluída dá uma boa ideia dessa realidade. A maioria dos participantes erroneamente respondeu que perder o bebê, como se diz popularmente, é algo raro, que ocorreria em menos de 6% das gestações. Essa falta de informação, segundo o coordenador do estudo, Zev Williams, é fonte de sofrimento emocional. “Os resultados de nossa pesquisa indicam equívocos generalizados. Por ser um problema muito comum, mas raramente discutido, muitas mulheres e casais se sentem isolados e sozinhos. Precisamos educar as pessoas, pois isso poderia nos ajudar a reduzir a vergonha e o estigma associados a ele”, diz Williams, diretor do Programa para a Perda de Gravidez Precoce e Recorrente (Pearl, na sigla em inglês), da Universidade Yeshiva, em Nova York. Os resultados foram publicados na revista Obstetrics & Gynecology.
Segundo João Steibel, presidente da Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), os equívocos não se restringem à população norte-americana. No Brasil, também são comuns. “Nessa hora, a gente precisa explicar que é comum, que acontece quando o corpo se dá conta de que não dá para levar adiante a gestação”, afirma o brasileiro. Uma mulher que tem três filhos, conta o médico, provavelmente passará por um aborto natural. “Não sabemos exatamente o que o causa. É a seleção natural. Costuma ocorre com seis a oito semanas (de gestação), e, a cada cinco grávidas, uma aborta.”
Solidão
A técnica em radiologia Neuma Lopes, 50 anos, é uma das milhares de mulheres que já viveram a experiência. Passadas mais de duas décadas, ela consegue falar sobre o assunto com tranquilidade. “Comecei a sentir dores e achei que menstruaria. Fui ao médico e nós tentamos de tudo, como repouso, colocar as pernas para cima, mas não deu certo”, lembra. “Fiquei muito triste e me afastei do trabalho durante duas semanas. Deu a sensação de que era um castigo e que eu não ia mais engravidar”, conta Neuma. Apesar disso, ela não desistiu e se tornou mãe de três filhas saudáveis, hoje com 24, 20 e 15 anos.
Os resultados do estudo americano, feito em parceria com o Montefiore Medical Center, mostram que os sentimentos de culpa e vergonha são muito comuns após um aborto. Entre homens e mulheres que declaram ter vivenciado a situação, 47% sentiram-se culpados, 41% acharam ter feito algo errado, o mesmo índice relatou a sensação de solidão e 28% admitiram sentir vergonha. Apenas 45% contaram ter recebido apoio emocional adequado da comunidade médica.
Neuma conta que, felizmente, foi tranquilizada pelo médico que a atendia. “Se acontecer com você, tente novamente, procure ajuda. Depois disso, tive três filhas lindas”, aconselha a técnica em radiologia. João Steibel faz coro: “Não tem a ver com a condição física da mulher, mas sim com os próprios mecanismos da gravidez. É uma coisa natural, que faz parte do jogo. O casal fica triste, mas é assim mesmo”.
Por isso, Zev Williams reforça que os pais, especialmente os de primeira viagem, devem obter o máximo de informação. “O aborto natural é um assunto tradicionalmente tabu, que raramente é discutido publicamente. Queremos que as pessoas que passam por isso saibam que não estão sozinhas. As interrupções são muito comuns e há testes disponíveis para ajudá-las a saber o que causou o incidente”, acrescenta. Oitenta e oito por cento das pessoas que participaram do estudo gostariam de saber a causa do incidente e se algo poderia ser feito para evitá-lo. Delas, 78% iam querer a informação mesmo que nada pudessem fazer para evitar um novo aborto no futuro.
Percepções erradas
Para fazer uma radiografia de como os casais percebem o tema, Williams e colegas elaboraram um questionário de 33 itens, sendo que 10 deles eram direcionados especificamente para mulheres que tinham passado pela experiência ou homens cujas companheiras tinham tido uma interrupção na gestação. O levantamento foi feito pela internet para manter o anonimato e todos os participantes tinham mais de 18 anos. Das 1.084 participações consideradas válidas, recolhidas ao longo de três dias em 2013, 45% eram de homens e 55%, de mulheres. Quinze por cento das pessoas relataram que elas próprios ou os parceiros tinham sofrido um aborto espontâneo.
Os resultados revelaram outras percepções erradas a respeito do aborto natural. Para 22% dos respondentes, por exemplo, o estilo de vida durante a gravidez — como fumar, usar drogas ou álcool — é a principal causa, superando fatores genéticos ou médicos. E participantes menos instruídos, sem ensino superior, especialmente os homens, eram duas vezes mais propensos a acreditar que o comportamento da mãe é crucial. E mais de 70% dos homens e mulheres também apontavam um evento estressante ou o estresse de longa duração como uma das maiores causas.
Kelly Paim, do Centro Wainer de Psicologia Cognitiva, em Porto Alegre, explica que aspectos emocionais influenciam na gravidez, mas não são determinantes para que a gestação seja bem-sucedida. “Quanto mais ansiosos ficamos, maior é a produção de cortisol. Mas a ansiedade não prejudica a ponto de determinar ou não uma gravidez”, explica a especialista em casais e família. Outras causas apontadas para o aborto, mas que não correspondem a realidade foram: levantar objetos pesados (64%), doenças sexualmente transmissíveis (41%), uso passado de um dispositivo intrauterino (28%) ou anticoncepcionais orais (22%).
Luto
Pesquisas anteriores indicaram que os níveis de dor psicológica que uma mãe sente ao sofrer um aborto espontâneo são semelhantes à perda de um familiar. Os resultados de Williams reforçam a constatação: 36% dos participantes, incluindo os que nunca viveram a experiência, relataram que sofrer um aborto seria extremamente perturbador, o equivalente a perder um filho.
Nem todos, contudo, têm a mesma sensação. Rosângela Nascimento Paixão, 38 anos, é um exemplo disso. “Eu acho que é diferente porque, por mais que sentisse o bebê mexer, não estava presente, convivendo comigo”, conta sobre as interrupções que vivenciou nas duas primeiras gestações. Hoje mãe de Victor, 5 meses, ela não vê motivos para sentir vergonha. “Sempre confiei em Deus e recebi muito apoio dos amigos, da família e da igreja. E isso me ajudou a superar”, conta. “Hoje, só tenho motivos para agradecer e dizer a outras mães que passaram por situações assim que tenham esperança e não se entreguem”, prossegue Rosângela, que busca ajuda mulheres que passaram pela experiência recentemente. “Explico para elas que é normal, e que elas devem conversar com os médicos sobre isso, mas sem se preocupar.”
Esse conhecimento foi valioso para Andressa de Menezes Silva Pereira, 29 anos, mãe de Enzo Netuno Silva Pereira, 1 ano e 2 meses, de quem ela engravidou pouco depois de passar por um aborto espontâneo. “Tive um sangramento e corri para o hospital. A médica disse que não havia batimentos cardíacos e que meu corpo expulsaria o bebê naturalmente”, lembra. Não foi o que aconteceu, porém, e ela precisou passar pelo procedimento de curetagem, que é a remoção do feto pelo médico.
A história, ela observa, não deve deixar outras mães temerosas. “Nem todo aborto espontâneo tem complicações, e é bom frisar isso. Eu tive essa falta de sorte. Fora isso, meu médico conversou bastante comigo e me disse que é algo comum. Às vezes, a pessoa perde sem nem saber que estava grávida, e esse esclarecimento me tranquilizou”, conta Andressa, formada em letras. O apoio de Celso Daniel, o marido, fez toda a diferença. “Não temos familiares no Distrito Federal, sou de Sergipe e ele da Bahia. Por isso, ele sempre foi meu porto seguro”, diz, assegurando que pretende ter mais um filho. “O pré-natal é fundamental. As mulheres devem procurar um excelente obstetra, pois, pelo menos para mim e para minha superação, foi essencial. Meu médico teve um papel muito importante.”
As reais causas
A grande maioria (60%) dos abortamentos resulta da aneuploidia, que é a alteração na quantidade dos pares de cromossomos. Quando a combinação dos 23 cromossomos da mãe e dos 23 do pai não se “encaixa”, então a gestação é naturalmente interrompida. Outras causas comuns são anormalidades estruturais do útero, propensão ao desenvolvimento de trombose (trombofilia), transtornos hormonais e doenças autoimunes.