Com a filha doente, Evelyn procurou ajuda e foi informada pelo médico de que a febre alta da menina era consequência da vacina e que as fezes com sangue poderiam durar até 40 dias. Os dias passaram e a menina não melhorava. De repente, o problema era outro: os médicos começaram a desconfiar que Isabelly tinha, na verdade, alergia à proteína do leite. Ela chegou a ficar anêmica devido à perda de sangue, e Evelyn entrou numa dieta restritiva para cuidar que o seu leite não fizesse mal à filha. “Foi uma saga. Fizemos tratamento para alergia, anemia. O sangramento durou 75 dias. Os médicos diziam que era alergia, mas exame algum comprovou isso”, lembra a mãe. Evelyn percorreu São Paulo, onde mora, atrás de um médico que desse uma explicação razoável para o problema, até conseguir um laudo de um pediatra atestando que o que Isabelly teve foi, de fato, uma reação ruim à vacina contra o rotavírus. Nada a ver com alergia. Foi ele quem a isentou, a custos de discussões com o posto de saúde, da segunda dose da imunização.
A vacinação contra o rotavírus foi licenciada nos Estados Unidos em 1998, 200 anos depois da chegada da primeira de todas as vacinas, a contra a varíola, criada pelo britânico Edward Jenner no fim do século 18. As duas representam grandes avanços aos olhos da medicina: a solução para uma doença que matava milhares de pessoas todos anos e foi, inclusive, responsável pela construção de hospitais de isolamento (graças à vacina, é considerada erradicada pela Organização Mundial da Saúde desde 1980); e uma arma poderosa na redução de hospitalizações por gastroenterite e da mortalidade infantil. Com dois séculos de história, recaem sobre a vacinação conquistas importantes, como o controle do sarampo, da poliomelite, da hepatite — inclusive com a diminuição dos transplantes de fígado — e da rubéola, cuja erradicação das Américas foi anunciada pela OMS na semana passada. Mesmo assim, casos como os de Isabelly mostram que ainda há aspectos pouco compreendidos.
Isabelly voltou a se alimentar normalmente com leite, recuperou-se da anemia e tem vida normal hoje, mesmo sem ter concluído a imunização contra o rotavírus — exceto que, segundo a mãe, desde a vacina, a menina parou de ganhar peso no mesmo ritmo e está sempre no limite da curva, padrão que ela observa em outros bebês que tiveram a mesma reação e que ela conheceu em um grupo on-line de pais que não aprovam a vacinação para o rotavírus. Para Evelyn, ficou uma lição: vacina, agora só com muita informação. “Não sou contra a vacinação, mas sou contra a falta de informação, os riscos deveriam ser informados”, comenta. “Eu jamais incitaria uma mãe a não vacinar, mas eu tive duas experiências: com o Yuri, que não foi vacinado e teve a doença; e com a Isabelly, que foi vacinada e teve reação. E posso dizer que, no meu caso, a reação foi muito pior do que a doença em si”, contou.
Um surto na Disneylândia
O movimento antivacinação é uma preocupação nos Estados Unidos já há algum tempo. Alguns alegam motivos religiosos — a decisão de contrair ou não uma doença caberia a Deus, e não à ciência —; outros têm razões filosóficas; outros, ainda, têm medo: de que as vacinas causem reações adversas, autismo, esclerose múltipla. Lá, a consequência mais recente dessa onda foi o surto de sarampo que explodiu em dezembro passado na Disneylândia, na Califórnia, onde o movimento tem bastante força, e que até fevereiro atingiu 121 pessoas, em 18 estados. “O sarampo é o maior indicador da situação de um programa de imunização, porque é muito contagioso. Quando você tem uma baixa na imunização, ele se espalha rapidamente”, comenta Paul Offit, diretor do Centro de Educação de Vacinas no Hospital Infantil da Filadélfia, nos Estados Unidos, e considerado um dos maiores especialistas em vacinas do mundo.
Em outros países, como Paquistão ou Nigéria, onde doenças controladas no mundo todo continuam endêmicas por falta de vacinação, a maior causa da não adesão é religiosa. No Brasil, os especialistas dizem que o problema, embora exista, ainda não é uma preocupação para as autoridades sanitárias, mas os radares estão ligados. Com a facilidade das viagens internacionais, nunca se sabe quando uma doença “sob controle” dará as caras novamente.
A despeito de antivacinistas do mundo todo, os médicos são quase unânimes ao declarar que as vacinas ainda não perderam o posto de grande tacada da medicina moderna. Para a saúde pública, é um feito tão decisivo quanto o advento da água tratada, como frisou o Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) em um documento publicado em 1999 e, ainda hoje, tido como referência. E, se as promessas de novas vacinas se concretizarem como os médicos torcem e acreditam, chegando inclusive às doenças não infecciosas, como diabetes e obesidade, o pódio deve ser mantido, com componentes cada vez mais modernos e seguros.
“Os benefícios das vacinas são óbvios. Nós estamos conversando agora, no momento em que a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde, órgão da OMS) anuncia a erradicação da rubéola nas Américas. Isso é fruto da vacinação. Significa o fim da síndrome da rubeóla congênita, que é grave”, comenta a infectologista Isabella Ballalai, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações. “Permitiu a erradicação da varíola, que matava até 1973, 1974. O sarampo está quase erradicado no Brasil. As vacinas são, sem dúvida, uma das melhores ferramentas de prevenção e investimento na saúde da população. Elas evitam doenças potencialmente graves, óbitos, internações, mal-estar e perda de qualidade de vida”, completa.
Guerra de versões
Falar em movimento antivacinista arregala olhos de médicos e sanitaristas. Eles consideram retrocesso, ignorância, egoísmo e negligência. Controvérsias vêm de longe, basta lembrar da chamada Revolta da Vacina, contra o projeto de vacinação compulsória proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz no início do século passado. Muitos especialistas, porém, acreditam que o debate se acirrou a partir de 1982, quando um documentário chamado DPT: Vaccine Roulette associou a vacina tríplice bacteriana, contra difteria, tétano e coqueluche, a inflamações crônicas cerebrais.
Depois, em 1998, o britânico Andrew Wakefield publicou na prestigiada revista científica Lancet um estudo feito com 12 crianças com autismo, das quais oito teriam apresentado os primeiros sintomas duas semanas depois da vacina tríplice viral, que protege contra caxumba, sarampo e rubéola. O estudo ganhou manchetes em jornais importantes pelo mundo todo e causou um enorme alarde. As autoridades sanitárias norte-americanas calculam que mais de 100 mil crianças deixaram de receber a tríplice nos EUA naquele ano.
Uma série de estudos desmentindo Wakefield vieram em seguida, e uma investigação por fraude foi aberta no Conselho Britânico de Medicina. Em 2010, o órgão acabou concluindo que o médico era culpado e cassou o seu registro profissional dele. A apuração descobriu que, na verdade, Wakefield havia sido cooptado por um escritório de advocacia interessado em entrar com ações contra a indústria farmacêutica.
Ainda hoje, alguns pais acreditam que o autismo de seus filhos esteja diretamente relacionado à tríplice. O estudo mais recente sobre o assunto foi publicado no mês passado, no Journal of the American Medical Association. Os cientistas analisaram 95 mil crianças de um banco de dados de planos de saúde e concluíram que a aplicação da vacina não está associada a um maior risco de desenvolver transtornos do espectro autista, inclusive em crianças com irmãos mais velhos com o diagnóstico.
“O índice de autismo entre os que tomam a vacina e os que não tomam é exatamente o mesmo. Milhares de casos já foram acompanhados e absolutamente nenhuma relação foi encontrada. Mas veja o estrago: em países como Inglaterra e França, você tem registro de surtos de sarampo porque houve diminuição na vacinação. E isso permanece, porque tem efeito residual”, observa Guido Levi, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações e autor do livro Recusa de vacinas — causas e consequências.
Além disso, existe o consenso de que, como grande parte das doenças que eram culpadas de milhares de mortes antes das vacinas já estão sob controle, elas deixaram de ser uma ameaça aos olhos dos pais. “Dizemos que as vacinas são vítimas do seu sucesso. Existiam doenças terríveis que devastavam o mundo e que foram erradicadas ou controladas de tal maneira que a população já nem se lembra delas. Alguns dos meus alunos só conhecem o sarampo pelos livros. E aí, quando as pessoas se esquecem dos riscos das doenças, começam a se preocupar com os efeitos colaterais das vacinas”, acrescenta Levi.
Desde que essas pessoas não imunizadas estejam dentro de uma margem de erro calculada — que geralmente não passa dos 5% —, o controle da doença está garantido. É a chamada “imunização de rebanho”: quando a maioria das pessoas em uma comunidade está blindada da infecção, elas acabam protegendo pessoas ao redor não imunizadas, porque não transmitem a doença.
Outras polêmicas engrossam o caldo dos antivacinistas, como a relação entre a vacina da hepatite B e a esclerose múltipla e com a síndrome de Guillain-Barré, uma doença autoimune que causa paralisia aguda flácida. Para a última, algumas pesquisas estão em andamento. Para a esclerose, já existem estudos desvinculando as duas coisas. Nos anos 1990, começou a circular na França notícias sobre uma possível ligação e, como consequência, menos da metade das crianças e dos adolescentes no país haviam tomado as três doses da vacina até 2002. Foi verificado que, o uso da vacina de hepatite B no mundo inteiro não resultou em um aumento da ocorrência de esclerose múltipla. Além disso, o Comitê Nacional de Vigilância Farmacológica da França analisou receptores de milhões de doses da vacina entre 1989 e 1997 e concluiu que a frequência de doença neurológica nesse período, incluindo a esclerose, foi menor nesse grupo do que na população geral.
E o embate continua. Em 1982, foi fundado por não médicos o National Vaccine Information Center (NVIC), movimento crítico ao sistema de vacinação em massa norte-americano. Os fundadores do NVIC acreditam que há riscos ocultos na aplicação de vacinas, tais como crises convulsivas e paralisia de membros. “É importante que os pais saibam que vacinas são produtos farmacêuticos e trazem riscos que podem ser maiores em algumas crianças do que em outras, por isso é importante estar bem informado antes de tomar a decisão de vacinar seus filhos”, considera a cofundadora da organização, Barbara Loe Fisher, autora do livro DPT: A Shot in the dark” (DTP: Um tiro no escuro), sobre a vacina tríplice bacteriana. Ela diz que, nos Estados Unidos, um programa de compensação por problemas causados por vacinas já distribuiu US$ 3 bilhões (R$ 9,1 bilhões) em indenizações desde que foi criado, em 1986. “Existem mais pais nos EUA questionando se seus filhos realmente precisam dessa quantidade de vacinas que o governo exige para que sejam saudáveis e querem fazer escolhas informadas e voluntárias. Temos muitas centenas de novas vacinas sendo criadas por indústrias farmacêuticas e por agências do governo. Quanto mais vacinas com riscos conhecidos ou não são adicionadas ao nosso calendário obrigatório, mais precisamos proteger os princípios éticos de consentimento consciente.”
Informação também é a bandeira de C.C., 35 anos, de São Paulo. A história dela e do seu bebê, que hoje tem 11 meses, é parecida com a de Evelyn e Isabelly. O bebê tinha comportamento normal até tomar a primeira dose da vacina contra o rotavírus, aos 2 meses. Segundo a mãe, a criança apresentou reação no mesmo dia da dose: diarreia, cólicas, choro intenso e irritabilidade. A reação de C. foi a mesma de muitas outras mães: jogar os sintomas no Google e buscar resultados. Descobriu outros casos semelhantes ao seu. Aos 28 dias, ele passou a excretar sangue nas fezes e a diarreia durou quase três meses. “Fiz dieta restritiva porque havia suspeita de alergia alimentar. Passei a consumir só verduras e legumes ou ficava de jejum, desesperada para que ele melhorasse”, conta.
Depois de buscar ajuda médica, C. decidiu não dar a segunda dose da vacina. O bebê só melhorou aos cinco meses e, mesmo assim, deixou de ganhar peso como antes. “Meu filho era saudável antes da vacina”, insiste. Passado o susto, ela criou um grupo no Facebook contra a imunização do rotavírus, que conta com quase 150 membros. “Sou a favor da prevenção e da vacinação, desde que haja controle absoluto sobre seus efeitos. Não recomendo essa vacina, porque são muitos os casos”, sublinha.
Algumas reações adversas são bem conhecidas. As mais comuns são dor e vermelhidão no local da aplicação. Febre baixa ocorre em certos casos. Alergias graves, causadas principalmente pela gelatina e pelo ovo (algumas vacinas são cultivadas em ovos de galinha) vêm em seguida. Os riscos, no entanto, não superam, segundo os médicos, as vantagens da vacinação. “As reações são de caráter individual, há uma predisposição de cada indivíduo”, explica a infectologista Ana Rosa dos Santos, gerente médica do Sabin Vacinas. “Mas as vacinas estão cada vez mais seguras e menos reatogênicas. Os benefícios superam em muito os riscos”, complementa.
Linha do tempo
Um histórico das vacinas pelo mundo
1796
O médico britânico Edward Jenner testa uma forma de imunização contra a varíola a partir do pus das feridas causadas pela doença nas vacas, que desenvolviam uma forma mais branda da doença. Ele conseguiu imunizar um garoto passando o líquido em cima de arranhões na pele do menino. Deu ao processo o nome de vaccination, a partir do termo em latim, vacca. Foi a descoberta da vacina.
1880
O surto de varíola no país leva à construção do Hospital de Isolamento em São Paulo, hoje Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Na última década do século 19, 8,6 mil pessoas morreram da doença no Rio de Janeiro.
1884
Louis Pasteur cria a primeira vacina antirrábica.
1923
As vacinas contra difteria, coqueluche e tétano são as primeiras a serem produzidas em massa.
1962
O polonês naturalizado norte-americano Albert Sabin desenvolve uma vacina oral, a partir de vírus vivo, contra a poliomelite. A facilidade da imunização viabiliza as campanhas de vacinação em massa contra a doença.
1963
Início da vacinação contra o sarampo no mundo.
1979
A vacinação contra a coqueluche é suspensa na Suécia até 1996 por suspeitas quanto à sua eficácia. Como consequência, durante esses anos, 60% das crianças até os 10 anos de idade do país contraíram a doença.
1982
O documentário DPT: The Vaccine Roulette, que relaciona a vacine tríplice bacteriana a reações adversas e inflamações crônicas, serve de gatilho para o movimento antivacina nos Estados Unidos.
1990
Último diagnóstico de poliomelite registrado no Brasil.
1991
Um surto de sarampo tem início da Filadélfia a partir de duas igrejas fundamentalistas antivacinação, nas quais nenhum dos seus membros eram imunizados. Entre eles, foram 486 casos e seis mortes. A epidemia se espalhou pela comunidade e infectou 938 pessoas, levando três à morte.
1998
Um estudo do médico britânico Andrew Wakefield com 12 crianças publicado na revista científica Lancet relacionou pela primeira vez a vacina tríplice viral, contra rubéola, caximbo e sarampo, ao aparecimento de autismo. A pesquisa gerou pânico, mas foi desmentida anos depois.
2000
A Organização Mundial da Saúde anuncia que o sarampo está sob controle nos Estados Unidos.
2005
Contabilizados na Nigéria 20 mil casos de sarampo e 600 mortes após líderes religiosos fundamentalistas desaconselharem a vacinação contra a doença.
2009/2010
Após a epidemia de gripe suína no mundo, começa a campanha de imunização contra o vírus H1N1.
2010
O conselho britânico de medicina cassa o registro profissional do médico Andrew Wakefield depois de considerá-lo culpado pela divulgação de informações falsas na pesquisa de 1998. A revista Lancet tira o estudo dos seus anais — fato inédito na história da publicação.
2011
É registrado um surto de sarampo na Vila Madalena, em São Paulo, a partir de uma escola em que uma das crianças não era vacinada por opção dos pais.
2012
São contabilizados 48,2 mil casos de coqueluche nos Estados Unidos, o maior número de infectados desde a década de 1950 no país.
2014
Um surto de sarampo tem início na Disneylândia, na cidade de Anaheim, na Califórnia, depois de crianças não vacinadas se contaminarem. Até fevereiro deste ano, foram notificados 121 casos em 18 estados norte-americanos.
2015
Autoridades do Paquistão decidem punir com prisão cidadãos que, por motivos religiosos ou pessoais, não se imunizassem contra a poliomelite — a doença tem caráter endêmico no país e é um desafio para as autoridades de saúde paquistanesas. O governo anunciou que só liberaria os detidos se eles se comprometessem a tomar a vacina.
Entre picadas e gotinhas
No passado, era apenas a varíola. Hoje, o calendário de vacinação de uma criança nos seus primeiros anos de vida inclui picadas contra mais de 20 doenças. Sarampo, coqueluche, poliomelite, rotavírus, meningite, hepatite, febre amarela, HPV, varicela, rubéola, tétano, pneumonia, gripe etc. E a lista continua. “Você não sabe o que é ver uma criança com sarampo, uma doença evitável”, comenta Ana Rosa dos Santos, do Sabin Vacinas. A despeito do questionamento de alguns pais sobre a quantidade de picadas, a carteira de vacinação cada vez mais recheada significa redução importante no número de hospitalizações e da mortalidade infantil. “Se não fossem as vacinas, a população hoje estaria infinitamente menor do que ela é. É inquestionável a sua importância”, complementa Aroldo Brohmann de Carvalho, presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria.
E ele vai além: seria negligência se um médico contraindicasse uma vacina, a não ser em casos especiais, como crianças imunodeprimidas ou com outro tipo de restrição. “Uma criança não vacinada é risco não apenas para si mesma, mas para as pessoas ao redor dela. É papel do pediatra orientar os pais sobre as vacinas. Imagine o sentimento de culpa desse profissional se um paciente seu não toma a vacina, contrai uma doença grave e morre em decorrência dela?”, questiona o médico.
Nos Estados Unidos, se uma criança chega a uma escola com a carteira de vacinação incompleta, não se matricula, embora a maioria dos estados permita exceções de cunho médico ou religioso. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente diz que é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias, mas não há punição especificada para a infração. Os especialistas dizem que há um motivo para a atenção em torno das crianças quando o assunto é vacinação: em geral, são elas, ao lado dos idosos, as maiores vítimas das complicações mais graves das doenças — como no caso da gripe, que pode evoluir para pneumonia ou otite —, e são elas também as maiores transmissoras de doenças, por portarem maiores cargas virais e conviverem em escolas e creches desde cedo. Segundo um dado apresentado pela Sanofi no lançamento da vacina quadrivalente contra a gripe, em abril, 47% das crianças mortas por gripe no ano passado tinham idade média de 5 anos e eram previamente saudáveis.
A fisioterapeuta hospitalar Flávia Melo de Sampaio, de 32 anos, e o marido, o médico Antônio José Brandão, 33, estão acostumados a ver de perto as estatísticas. Talvez por isso, Bernardo, de 3 anos, e Heitor, de 9 meses, estejam com as carteiras de vacinação tão carimbadas. Os dois nasceram prematuros, com 35 semanas, e, por isso, Flávia e o marido decidiram vaciná-los na rede privada, optando por vacinas acelulares, que são mais seguras a reações adversas. “Foi uma orientação do médico, na maternidade ainda, como precaução”, conta a fisioterapeuta. Esse tipo de vacina está disponível também na rede pública apenas para casos especiais, com recomendação médica. A exceção das clínicas pagas para Bernardo e Heitor é para as vacinas que são idênticas no posto de saúde, como a da febre amarela.
Flávia e Antônio não conseguem entender muito bem o que leva um pai a não vacinar os filhos. “Não me preocupo com meus filhos na escolinha porque sei que eles estão protegidos. Eu me preocupo muito mais com a ignorância dos pais que não vacinam”, comenta Antônio. A família embarca esta semana para os Estados Unidos para curtir alguns dias de férias. A notícia do surto de sarampo por lá ligou o pisca-alerta da família. “Fui atrás de reforçar todas as vacinas aqui de casa, inclusive a minha e a do Antônio”, comentou Flávia.
Reforço não é luxo
Nem toda vacina é para a vida toda. Assim como nem toda doença. O que significa que a carteira de vacinação é documento também para adolescentes e adultos. Novos reforços e vacinas devem ganhar carimbos nas carteiras, embora pouca gente atente para a importância da continuidade da vacinação depois da infância. “No Brasil, nós temos boa cobertura para as crianças, mas também precisamos pensar nos adolescentes e nos adultos”, reforça Isabella Ballalai, da Sociedade Brasileira de Imunizações.
A má notícia é que, como adolescentes e adultos — salvo casos específicos, como gestação ou doença crônica — não estão nos grupos de maior risco para doenças, as vacinas para essas faixas etárias quase nunca fazem parte do calendário público. O que não significa que não sejam importantes. A coqueluche, por exemplo, tem crescido no mundo. Em 2013, foram quase 30 mil casos nos Estados Unidos. Em 2012, quase 50 mil casos foram reportados. Embora o dado possa estar ligado a uma possível diminuição na adesão à vacina, os médicos começam a achar que, ao contrário do que se acreditava quando ela fez sua estreia, a imunização que, por exemplo, ela induz não dura a vida toda.
“Faz 3 ou 4 anos que se discute em congressos que a vacina para coqueluche (ela faz parte da tríplice bacteriana) não é para a vida toda. Antes, acreditava-se que um último reforço, aos 6 anos de idade, era suficiente para imunizar uma pessoa para o resto da vida”, explica a infectologista Ana Rosa dos Santos. “Hoje, sabe-se que, por volta dos 15 anos, a imunidade contra a doença cai. Por isso, é importante fazer um novo reforço no adolescente ou no adulto”, continua.
A vacina para o reforço dada hoje é diferente da distribuída na infância pelo programa do governo. É um tipo acelular, menos suscetível a reações, e combinada ainda a uma dose de imunização contra a poliomelite, de vírus morto. Além disso, fazem parte da cartilha do adolescente a imunização contra o HPV, tanto para meninas quanto para meninos; a tríplice viral, contra sarampo, caxumba e rubéola; hepatite A e B; um reforço para a meningocócica, que agora existe na versão combinada contra quatro tipos da doença (A, C, W e Y); para catapora, caso ele ainda não tenha tido a doença; e uma segunda e última dose para febre amarela.
“O sarampo tem complicações seriíssimas em adolescentes, como encefalite, cegueira, diarreia e pneumonia. A hepatite A também pode ser fulminante. Na Argentina, eles conseguiram diminuir significativamente o número de transplantes de fígado depois de introduzir a vacina”, diz Ana Rosa. A médica acrescenta que muitos adolescentes procuram atualizar a carteira de vacinação por causa de intercâmbios, quando viajam a países que exigem vacinas para doenças cuja vacinação não é feita nas campanhas nacionais.
Tais vacinas valem também para os adultos que nunca tomaram os reforços necessários. HPV e rubeóla merecem destaque. “É importante que tanto o homem quanto a mulher se vacinem porque, mesmo que o homem não manifeste a doença, ele é transmissor e pode passar para mulheres. A campanha de rubéola só teve sucesso porque o governo vacinou também os homens”, frisa a especialista. Algumas vacinas ainda são recomendadas apenas para adultos — caso da contra o herpes zóster, licenciada apenas para maiores de 50 anos.
Matemática da doença
Doença não é ruim só para quem passa por ela. Traz custos hospitalares para governos e de produtividade para empresas. Um estudo em uma metalúrgica norte-americana constatou que, em 2001, afastamentos de funcionários por doenças do sistema respiratório, como a gripe, custaram à empresa US$ 150.865 (R$ 460 mil) no ano. Um estudo parecido feito dentro do hospital da Universidade Federal de São Paulo em 2005 chegou à conclusão que um funcionário que ganhasse, na época, um salário mínimo, causaria à instituição, um prejuízo de R$ 50,31 por dia de atestado médico. Além disso, em 2009, a Previdência Social divulgou que o custo com doenças respiratórios naquele ano representava 0,5% do PIB nacional. A média de faltas no trabalho por gripe hoje é de três a seis dias.
ENTREVISTA
Paul A. Offit tem um extenso currículo em assunto de vacinas. Ele é, atualmente, diretor do Centro de Educação de Vacinas no Hospital Infantil da Filadélfia, na Pensilvânia, professor de vacinologia no Instituto Maurice R. Hilleman e de pediatria na escola de medicina da Universidade da Pensilvânia. Além disso, é um dos coinventores da vacina RotaTeq, contra o rotavírus. Em 1991, já no hospital infantil, presenciou um surto de sarampo que teve início em igrejas fundamentalistas contrárias a vacinação. Na época, mais de 1,5 mil pessoas se infectaram e nove morreram. Não há dúvida, portanto, de que sua posição é em favor das vacinas, e contra a propaganda antivacinista.
Muitos pais acreditam que as crianças tomam uma quantidade exagerada de vacinas nos primeiros anos. Tantas doses em tão pouco tempo não trazem algum risco?
Não. E eu explico o porquê. Se você olhar para 100 anos atrás, tínhamos apenas uma vacina, para a varíola. Hoje, nós protegemos as crianças contra 14 doenças diferentes em 26 doses. Mas o que importa não é a quantidade e, sim, o número de componentes na vacina, como proteínas virais, bacterianas etc. É o que desafia o sistema imunológico a criar proteções. Antigamente, mesmo com menos vacinas, esse número era maior do que é agora. A vacina contra a varíola tinha 200 desses componentes. Hoje, todas as 14 juntas têm 160. As vacinas avançaram em recombinações, em tipos. O bebê na barriga está em um ambiente estéril. Mas quando ele passa pelo canal vaginal, não está mais. O ar que você respira não é estéril. Nem a água que você bebe ou o que você toca. O bebê se expõe a milhares de desafiadores imunológicos todos os dias. A vacina é uma gota nesse oceano.
Mesmo assim, alguns pais optam por não vacinarem seus filhos. Por quê?
Porque eles não têm medo da doença. Nos Estados Unidos, nós pedimos para as crianças se imunizarem contra 14 doenças nos primeiros anos de vida, são muitas doses. E os pais não entendem por que. Se eles não veem a doença, eles não se sentem impulsionados a proteger suas crianças contra ela.
A decisão de não vacinar o seu filho pode afetar outras pessoas na comunidade também, como, por exemplo, pessoas imunodeprimidas que não podem tomar a vacina?
Sim, claro. É uma decisão egoísta e estúpida. Por que você colocaria seu filho ou o filho dos outros em risco? E se você olha para as pessoas nos Estados Unidos que escolhem não vacinar seus filhos, elas têm educação universitária, trabalham, são profissionais e têm acesso a informação. Mas elas vão ao Google, digitam “vacinas” e acatam todo tipo de conselho. Nem sempre as informações são verdadeiras.
Muitos acham que é uma jogada da indústria farmacêutica para lucrar mais…
Vacinas não são grandes fontes de dinheiro para as farmacêuticas. É uma coisa que você toma uma ou duas vezes na vida. Financeiramente, é melhor para elas que as pessoas tomem remédios. Quando as vacinas começaram nos EUA, tínhamos 89 indústrias que as fabricavam. Hoje, temos apenas quatro, porque não é lucrativo. Se fossem, elas não teriam deixado de fabricar vacinas. O setor mais rentável para elas é o de doenças crônicas, para as quais você toma remédios toda a sua vida, como diabetes ou problemas cardiovasculares. Elas lucram, sim, é claro. Mas não é o que mais dá dinheiro a uma empresa.
Acredita que a vacinação compulsória é uma alternativa necessária?
Não deveríamos precisar. As pessoas deviam confiar nos seus médicos, nas suas autoridades sanitárias. Em alguns países, isso funciona, as pessoas se vacinam porque querem. No nosso país, se não tivéssemos a obrigação da vacinação, teríamos poucas pessoas vacinadas. Não é uma lei, mas se você não as vacina, você não consegue matriculá-las em uma escola, por exemplo, a não ser em casos de exceção médica ou religiosa.
182 milhões de pessoas foram vacinadas no Brasil no ano passado em todas as vacinas do calendário oficial, segundo o Ministério da Saúde
O que vem aí
A ciência trabalha sem freios para colocar no mercado novas e mais potentes vacinas. Algumas devem chegar às clínicas particulares ainda este ano. Outras seguem em teste. São elas:
Malária
Segundo Guido Levi, da Sociedade Brasileira de Imunizações, a vacina continua em teste, mas ainda tem uma taxa baixa de eficácia, entre 30% e 40%. Mesmo assim, ele diz que, em países como a África, com milhares de mortes por ano pela doença, o percentual já poderia representar uma quantidade importante de vidas salvas pela imunização.
Meningocócica B
Desde que o Ministério da Saúde incluiu no calendário de imunização a vacina meningocócica C, em 2010, os casos de meningite causada pela bactéria diminuíram. No entanto, a meningite B tem crescido em notificações. A vacina foi licenciada em março e chega às clínicas no segundo semestre deste ano.
HPV nonavalente
Hoje, a vacina dada no Brasil contra o papilomavírus humano protege contra quatro dos mais de 100 tipos de vírus existentes. Uma vacina mais potente, que imuniza contra nove tipos — inclusive os causadores das verrugas genitais — já foi aprovada nos Estados Unidos e a expectativa é que seja licenciada no Brasil em breve.
Dengue
A vacina ainda não foi licenciada porque, segundo especialistas, precisa de mais testes. Mas já está em estágio avançado e a expectativa é que esteja disponível em 2016.
Hepatite E
Já existem vacinas para as hepatites A e B, mas uma nova variedade, contra o tipo E, está sendo testada. No Brasil, a doença não é tão comum, mas tem alta incidência em países asiáticos, por exemplo.
Siga o calendário
Segundo dados do Ministério da Saúde, o Programa Nacional de Imunizações oferece 44 tipos de imunobiológicos usados na prevenção e no tratamento de doenças. Ao todo, são 27 vacinas, das quais 17 estão no Calendário Nacional de Vacinação, e 17 soros para tratamento de doenças. Em 2014, foram introduzidas no cronograma do ministério vacinas contra o HPV, hepatite A e a tríplice bacteriana acelular (dTpa).