Ao final do texto da fictícia matéria, os leitores eram informados de que as fotos tiradas pela garota teriam vazado na web e que era “só clicar no link para acessá-las”. Cento e vinte e três mil pessoas acessaram a URL que redirecionava para uma página que mostrava a foto do usuário atrás das grades, com o seguinte aviso: “Cuidado, ser voyeur de criança é crime. Não alimente essa indústria criminosa”.
Muito mais do que apenas focar no crime de compartilhamento dessas imagens, a campanha da ONG Bandeiras Brancas quis fazer um alerta sobre a importância do tratamento da pedofilia na prevenção dos abusos sexuais. Psiquiatra, psicanalista e professora da Residência de Psiquiatria do IPSEMG, Gilda Paoliello, afirma que a pedofilia é classificada pelo Código Internacional de Doenças (CID) como um transtorno de preferência sexual onde o objeto de desejo é a criança na pré-puberdade ou início da adolescência.
No Brasil, o tratamento é ainda incipiente. “Há um despreparo, mesmo entre os profissionais de saúde, para a abordagem do pedófilo. Seja pelo estigma, pela culpa, pela falta de acesso ao tratamento ou por não se considerarem doentes, o fato é que poucos pedófilos buscam ajuda. Os programas de atendimento ainda são tímidos e não têm divulgação devido à reprovação social. O problema é sério, pois não se dialoga com esses pacientes”, afirma a especialista.
Com a viralização do conteúdo falso, a matéria alcançou o primeiro lugar na lista de sites de busca e a campanha entrou em sua segunda fase. "Quando as pessoas procuravam por 'fotos de garotas nuas', finalmente começamos a atingir o público alvo. Na primeira fase a amostra era muito genérica e eu precisava chegar a quem realmente faz a busca por conteúdo pornográfico infantil, não somente os curiosos que caíram na ‘pegadinha’ da notícia falsa. Mesmo assim, parte da missão estava cumprida: informar ao público em geral sobre o crime de compartilhar imagens de crianças nuas”, explica Brunno Barbosa.
Antes de completar um mês no ar, a falsa notícia foi acessada, através de sites de busca, por sete mil pessoas. “O perfil mudou e passou a ser de homens com idades entre 25 e 55 anos. Entendi que esse era o público-alvo da campanha e era para essas pessoas que eu precisava direcionar os meus esforços”. Assim, Brunno Barbosa coletou, filtrou os dados obtidos e entrou em contato com essas pessoas através de uma página que criou no Facebook. “Tive a oportunidade de conversar com mais de 1.600 desses usuários”, relata.
O publicitário deu início à tarefa mais desafiadora da campanha: convencer essas pessoas a procurar ajuda. Para isso, indicou clínicas especializadas ou nomes de profissionais que poderiam tratar desse transtorno de preferência sexual e as reações foram as mais diversas. Brunno divulgou algumas:
“A curiosidade me levou a procurar fotos e vídeos de crianças, após algum tempo virou obsessão. A campanha me fez repensar essa grande indústria que traumatiza diversas crianças pelo mundo. Vou repensar meus atos”.
“Eu quase me divorciei por causa dessa doença. Com o tempo e o acompanhamento que venho levando, estou me curando. Sou muito grato a vocês. Muito obrigado”.
“Eu quase me divorciei por causa dessa doença. Com o tempo e o acompanhamento que venho levando, estou me curando. Sou muito grato a vocês. Muito obrigado”.
Assista ao vídeo da campanha:
Preconceito e estigma
Gilda Paoliello diz que a prevalência mundial de pedófilos, de acordo com a OMS, é de 1,5% na população masculina e 0,3% na feminina. “No Brasil teríamos em torno de 1 milhão de homens pedófilos e 300 mil mulheres”, exemplifica. A especialista explica que grande parte dos pedófilos não passa ao ato do abuso sexual e se satisfaz com masturbação e fantasias frente a filmes ou outros estímulos. “Atualmente, uma forma cada vez mais frequente – e também cada vez mais combatida -, de pedofilia e abuso sexual é através da internet”, diz.
A psiquiatra e psicanalista afirma que a pedofilia é um campo minado pelos preconceitos. “Devemos lembrar que o pedófilo é um doente que necessita de tratamento. As campanhas identificando pedofilia como crime acabam estigmatizando mais e afastando a pessoa de uma possibilidade de tratar-se até preventivamente. O ato de abuso é crime, a tendência à pedofilia é doença e deve ser tratada”, avalia.
Para a psiquiatra, o maior desafio do Brasil para a prevenção, identificação precoce e tratamento adequado da pedofilia é o desconhecimento sobre o transtorno, que leva ao preconceito e ao estigma. “A abordagem adequada do problema está ligada ao binômio educação-saúde e envolve uma campanha educacional de esclarecimento e políticas públicas de saúde que possibilitem a abordagem adequada”, pontua.
Psicóloga e professora da Universidade Metodista de São Paulo, Miria Benincasa Gomes trabalha com psicopatologias sexuais e acredita que a violência, seja ela qual for, está naturalizada em nossa cultura. “Quando se trata de minorias - no sentido de direito e não em quantidade -, como mulheres, crianças, negros e homossexuais, me parece que são mais aceitas socialmente", diz.
A doença
A psiquiatra Gilda Paoliello diz que o sistema classificatório americano “caracteriza a pedofilia por intensas fantasias e desejos sexuais ou comportamentos recorrentes, por no mínimo seis meses, envolvendo crianças (geralmente abaixo de 13 anos de idade) e deve causar sofrimento clinicamente significante ou comprometimento nas áreas social ou ocupacional”.
Segundo ela, o indivíduo, para ser considerado pedófilo, deve ter no mínimo 16 anos de idade e ser no mínimo cinco anos mais velho que a criança. “É interessante notar que a pedofilia raramente é identificada em mulheres. Em minha interpretação, avalio que a intimidade entre crianças e mulheres é socialmente aceita pelo próprio papel feminino de cuidadora. Desta forma, várias manifestações de pedofilia feminina ficariam veladas”, alerta ela.
Diagnóstico
A grande dificuldade do diagnóstico desse transtorno de preferência sexual é o fato de o pedófilo esconder a sua prática. Além disso, segundo Gilda Paoliello, não é raro a conivência da vítima que, por várias razões, desde o medo até à cumplicidade, não fala sobre o abuso sexual. “Esta cumplicidade ou conivência pode estar presente também na própria família. Não é incomum adultos relatarem história de abusos na infância e afirmarem que os pais não acreditavam ou não tomavam providências quando denunciavam a prática”, observa.
A psiquiatra explica ainda que, em relação ao diagnóstico, é importante esclarecer se a pedofilia é um sintoma primário, ou seja, sem associação com outros quadros psiquiátricos ou orgânicos. “Podemos encontrar alterações neuroendócrinas, neuroquímicas e cerebrais (principalmente nos lobos frontais e temporais) em exames laboratoriais e de neuroimagem. Nível de inteligência abaixo da média também é um achado comum. Fatores ambientais, sociais e psicológicos são outras possíveis causas de pedofilia e, entre elas, os que foram abusados sexualmente na infância. Alcoolismo também é comum entre os pedófilos”, enumera.
Segundo Gilda, uma avaliação rigorosa deve contemplar dosagens hormonais, tomografia computadorizada de crânio ou ressonância magnética e testes psicológicos ou projetivos de personalidade. “Em geral, os pedófilos são isolados e solitários, com dificuldades em se relacionarem com pessoas de sua faixa etária. Têm sentimento de inferioridade e baixa autoestima. Atualmente, a prática da pedofilia pela internet é frequentíssima. Assim, o refúgio constante na web pode ser um sinalizador, mas há também o inverso, como pessoas que usam a própria posição ou autoridade para se aproximarem, seduzirem e abusarem de crianças”, salienta.
Tratamento
Gilda Paoliello explica que a terapia é sempre fundamental. O primeiro passo é o diagnóstico claro identificando se a pedofilia é um sintoma isolado ou secundário a alguma doença orgânica ou mental. “Algumas medicações, como antidepressivos e remédios para controle do desejo, são usadas para conter os impulsos e sintomas de ansiedade comuns no pedófilo. Em alguns países usa-se a castração química com hormônios, que anulam a libido e podem levar à impotência sexual e também a cirurgias cerebrais que atuam na área ligada aos impulsos sexuais”, diz.
A psicóloga Miria Benincasa Gomes cita como alternativa aos pacientes ambulatórios de atendimento gratuitos a transtornos sexuais em alguns hospitais escola. “Esse atendimento, portanto, para que ocorra, precisa que o paciente se dirija à unidade de saúde e solicite atendimento”.
A especialista lembra, entretanto, que o que ocorre com a pedofilia é que a abordagem terapêutica é tardia. "Ela é realizada a partir de uma determinação penal, ou seja, o paciente cometeu algum tipo de abuso, foi imputada uma pena e indicado um tratamento", observa.
Prevenção do abuso
Infelizmente, em quase 100% dos casos, a ida ao médico e o diagnóstico, acontecem depois que o abuso foi consumado. “Isso tem a ver com as características da pedofilia, pois o pedófilo não é facilmente reconhecido como doente pelas pessoas próximas a ele e nem por ele próprio. A instituição do tratamento pode prevenir novos abusos e uma boa relação terapêutica ajudar o pedófilo a reconstruir sua vida afetiva e sexual”, afirma a psiquiatra.
Gilda Paoliello lembra que um dos fatores comuns na história do pedófilo é a incidência de abuso na própria infância. Assim, a terapia para crianças que foram abusadas teria a função preventiva. “As crianças tendem a repetir os elementos de um evento traumático ou de um relacionamento afetivo ambivalente. Ou seja, tendem a fazer com os outros o que fizeram com elas. Em geral, podem se identificar com o agressor e desenvolver comportamento autodestrutivo”, alerta.
É importante lembrar que o pedófilo, em geral, tem plena consciência sobre a proibição de seu desejo, mas não consegue resistir ao impulso e comete o abuso sexual. “Ele esconde suas tendências por sentir-se culpado e, portanto, do ponto de vista moral, se recrimina. A responsabilidade jurídica é avaliada dentro de cada caso, mas o tratamento é sempre imperativo junto às penalidades”, explica a psiquiatra.
Enquanto o estupro sempre envolve violência física, a pedofilia não. “Ao contrário, o pedófilo procura seduzir a criança”, explica.
Reincidência alta
A pedofilia é considerada um transtorno crônico, portanto, o tratamento é vitalício. “Se não é tratada vai apresentar reincidência. É quase uma forma de laço social que a pessoa desenvolve, por, em muitos casos, ser incapaz de outra forma de relacionamento afetivo e sexual”, observa.
A psiquiatra afirma que a resposta ao tratamento constante pode levar a um controle do impulso pedófilo.
Histórias de abuso são histórias sem caras
Maria* é fisioterapeuta, casada, 35 anos e tem dois filhos. Aos 11, foi vítima de abuso sexual em uma colônia de férias. O autor era professor de educação física de um clube da cidade onde morava. “Ele foi caminhando comigo pelos corredores da escola e depois entrou no banheiro onde ficavam as cabines com os vasos sanitários. Trancou a porta principal e, naquele momento, tive a sensação que aquilo estava errado. Tive o pressentimento que alguma coisa muito ruim iria acontecer”, recorda-se. Ela conta que passou quatro horas com ele: “Durante esse tempo ninguém apareceu; ninguém foi me procurar. Fui abusada várias vezes”.
Após o episódio de violência, Maria optou pelo silêncio, mas seu comportamento como estudante mudou drasticamente. “Era expulsa de sala diariamente, recebia suspensões na escola, tirava notas ruins, brigava com os professores e com os meus pais”, conta. Há doze anos ela faz tratamento para depressão, já pensou em tirar a própria vida e resume as consequências do trauma: “Tão ruim quanto tudo que aconteceu é ter que conviver com isso durante a vida”.
Vítima de violência sexual, Maria se tornou uma mãe superprotetora. “Vejo perigo em todos os lugares. Além de orientações em relação aos cuidados com estranhos que como pais sempre devemos dar, meus filhos sabem que precisam me contar caso recebam algum carinho que não gostem ou que alguém os toquem intimamente”, narra.
As crianças também não frequentam muito a casa dos colegas da escola. “Apenas quando eu conheço bastante os pais, mas não deixo brincar nas casas desses coleguinhas se a mãe não estiver presente, não deixo dormir fora de casa, tomo o cuidado de escolher os professores das atividades extra-curriculares deles (só permito professores do sexo feminino), não os deixo sozinhos com tios e nem com os avôs. Fico muito atenta para mudança de comportamento e tento desenvolver ao máximo o diálogo entre nós, o que permite que eu saiba o que anda acontecendo com eles e desenvolva uma relação de confiança”.
Maria diz que se sente uma investigadora da vida dos filhos. “É muito difícil. Sempre depois que meus filhos ficam longe dos meus olhos (escola, casa de colegas, etc), começo com um milhão de perguntas. Eles enxergam como interesse sobre o que eles fizeram...”. Ela também tem dificuldade em aceitar a pedofilia como doença. “Todos me dizem isso, mas não é como eu vejo meu agressor. E não consigo falar sobre isso. Não consigo escrever sobre ele”, interrompe.
De fato, apesar de a pedofilia ser classificada como doença pela Organização Mundial de Saúde, nem toda pessoa que abusa sexualmente de criança ou adolescente sofre desse transtorno de preferência sexual. Ou seja, um sujeito pode não ter a criança como objeto fixo de desejo, mas a oportunidade pode despertar essa vontade e o abuso acontecer. Clique aqui e saiba a diferença entre pedofilia, violência, abuso e exploração sexual.
A psicóloga Miria Benincasa lembra que o fato de a pedofilia ser um transtorno mental não significa que seus atos não sejam punidos. “A legislação brasileira pune rigorosamente qualquer pessoa que pratique sexo ou abuse de crianças. Uma coisa é ter desejo, ninguém pode ser punido pelo desejo. Outra coisa é cometer um crime, praticar um desejo criminoso”, reforça.
Para ela, a pedofilia é ainda um tabu na sociedade, não recebe a atenção que merece e considera difícil mudar esse quadro: “Precisaria de uma mobilização enorme da sociedade, mas, infelizmente, as pessoas não dão atenção suficiente para isso porque não acham que irá acontecer com elas. Acham que o abuso sexual só acontece nas comunidades mais carentes, dentro de lares destruídos, ou pensam que pode ser evitado da mesma forma que se evita um assalto”, observa.
A fisioterapeuta diz ainda que a maioria das pessoas com as quais convive pensa que “a única chance de seus filhos sofrerem abuso seja como consequência de um sequestro ou assalto, por exemplo. Não entendem que, na maioria das vezes, a relação com o abusador é construída, que normalmente são pessoas que as crianças gostam muito e que confiam”, alerta.
Maria diz, no entanto, que imagina ser realmente difícil para quem não viveu uma história de abuso entender como “as coisas podem acontecer e como é devastador. Normalmente as histórias que lemos por aí não têm caras, quase todas anônimas pela dificuldade da vítima em se expor. Casos que acontecem dentro da família são mais abafados ainda devido às consequências e grandes proporções que possam tomar na família inteira. Isso tudo contribui para que esses casos permaneçam distante das pessoas”, reforça.
Ela afirma que ainda não superou a violência sexual sofrida. “A dor que eu senti molda meu relacionamento com meu marido. O medo de que isso possa acontecer com meus filhos interfere na educação que dou para eles. Não se passa uma semana sem que eu tenha pesadelos com as diversas cenas que ficaram na minha memória. Tenho fases péssimas quando a depressão realmente toma conta de mim. Não acho que vou superar um dia, mas tenho tentado aprender a conviver com isso. De alguma forma eu consegui seguir em frente. Construí uma família linda e me apego a ela. Não contei aos meus pais na época, por vários motivos, mas principalmente por medo e vergonha. A relação que eu tinha com eles me fez tomar essa decisão e, agora, acho que não faz sentido contar mais. Seria um péssimo "presente" para a velhice deles. Se consegui seguir em frente, penso que agora não preciso dar essa dor para eles levarem para o fim da vida deles”, diz.
Para quem também foi vítima de abuso, Maria recomenda se cercar de bons profissionais e boas pessoas para tentar seguir em frente mesmo com tantas marcas. “Gostaria de pedir que os pais dessem mais atenção aos filhos, que protegessem e vigiassem os espaços que as crianças frequentam e, principalmente, que criassem um relação de confiança com seus pequenos”, encerra.
* Nome fictício
O Código Penal brasileiro considera crime a relação sexual ou ato libidinoso contra crianças e adolescentes. O artigo 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também é claro quanto a “adquirir, possuir, compartilhar ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente". O ato é passível de prisão e varia de quatro a oito anos de prisão.