Aos 2 anos e meio, um acidente mudou para sempre a vida de Ananda Martins. No interior do Maranhão, onde morava, não havia energia. Ela estava deitada em uma rede quando a irmã, dois anos mais velha, quis iluminar o ambiente com um lampião. A rede pegou fogo e Ananda sofreu queimaduras gravíssimas. Ganhou marcas irreversíveis, perdeu um braço. No ano seguinte, a família se mudou para Brasília à procura de reabilitação. Ao longo de 26 anos, ela sobreviveu às dores, ao tratamento, às sequelas físicas e emocionais. Vive uma vida normal. Por que não viveria?
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Hoje, a Revista conta histórias de mulheres como Ananda. Gente que aprendeu a viver do jeito que é. Que acredita que as marcas no corpo são, na verdade, algo único, lembranças da própria história. Que aprendeu a filtrar o olhar dos outros e a tirar dele também admiração. Que ignora o preconceito. Que transforma a expressão de piedade alheia em motivação para vencer na vida e recusa, com muita veemência, o papel de coitada e sofrida.
Autoestima à prova de marcas irreversíveis
O primeiro olhar das pessoas para Ananda Martins é de curiosidade, mas ela extrai dele muito mais. Considera absolutamente normal o interesse. “É lógico que olham, é diferente e não deixa de ser chocante. Mas também percebo que muita gente me olha com naturalidade e até com admiração. Não sinto muito o espanto”, explica.
Aos 26 anos, Ananda é uma mulher com a autoestima elevada. Tal condição foi gestada ao longo do tempo. Desde os 2 anos, quando sofreu as graves queimaduras num acidente doméstico, lida com as cicatrizes. Cresceu vendo seu rosto e corpo se transformarem a despeito das marcas. Lida com elas de forma natural, afinal não se lembra de ver sua imagem no espelho sem cicatrizes.
Na escola, recebeu apelidos das crianças mais malvadas, mas nunca voltou para casa chorando nem quis faltar às aulas para fugir dos comentários. É claro que passou por momentos de dúvida, de raiva, de indignação. Enfrentou e superou todos eles. Como sempre foi muito sociável, fez amigos com facilidade e eles não se importavam com sua aparência.
Nunca deixou de sair, de se divertir. “Eu saía muito, paquerava. Eu ficava com os caras que conhecia nas festas e em outras ocasiões. Não sentia e não sinto muito preconceito e até acho meio estranho os homens me verem como uma mulher mesmo, e não como uma deficiente, uma coitada, coisa que eu definitivamente não sou. Sou tratada como mulher, mas nunca quis ter um namorado mesmo. Tenho outros focos, quero morar fora do país, não quero ficar presa. Mas se acontecer, é claro que não vou correr.”
Vaidosa, aos 18 anos resolveu mudar o estilo. Já era uma mulher. Passou a andar de salto, escolher melhor as roupas. Não sai sem maquiagem, sem o cabelo escovado. Demora quase uma hora e meia para se arrumar, quer estar bem vestida e bonita. Leva uma rotina semelhante a de qualquer mulher.
Escolheu fazer moda na faculdade. “Eu gostava de desenhar, de criar, de customizar as minhas roupas e, por isso, resolvi estudar moda. Mas logo percebi que era muito mais trabalhoso e detalhista do que eu pensava, não era exatamente o que eu queria”, lembra. Desistiu do curso e passou no vestibular para letras, a fim de estudar francês.
Com porte de modelo, a estudante nunca pensou em seguir a profissão, exatamente por ser diferente. Mas, com a onda de modelos fora do padrão, não descarta completamente a possibilidade. “Caso surgisse uma oportunidade, quem sabe?.”
Tomada pelo estresse
A professora Zilei Cintra, 42 anos, já teve quase 100% do corpo tomado pelas marcas da psoríase. O couro cabeludo, a testa, o pescoço, as pernas, os braços, a barriga. Tudo cheio de feridas vermelhas que coçam, descascam. “Começou aos 12 anos e nem sabia o que era. Os médicos disseram tratar-se de dermatite seborreica, era só uma manchinha pequena no couro cabeludo. Mas, somente aos 20, ao entrar na faculdade, as marcas se espalharam e recebi o diagnóstico de psoríase. Eu morava a 55 quilômetros de onde estudava, tinha uma rotina muito corrida, estressante”, conta a professora.
A psoríase é uma doença genética, não contagiosa, e que tem tratamento — há vários remédios para cada tipo de paciente e, em alguns casos, as lesões praticamente desaparecem. Mas é muito ligada ao emocional. Se o paciente vive uma rotina estressante ou um período emocionalmente difícil, as marcas se multiplicam. Por isso, é complicado lidar com a imagem. “Há uma discriminação muito grande, as pessoas acham que não pode chegar perto, que é mulheres. Os maridos evitam as esposas, os pacientes se escondem, não vão à praia, não usam shorts. É um impacto muito grande na qualidade de vida”, explica a médica Letícia Galvão, especialista na patologia.
Em 2007, o efeito rebote dos remédios, vinculado ao estresse, provocou o ápice das lesões na professora. Zilei dava aulas de química em uma escola de ensino médio e continuou trabalhando enquanto pode. “Não tinha como esconder e eu nunca quis esconder. Assim que entrava na sala, explicava logo para os alunos sobre a doença, mandava fazerem pesquisa sobre a psoríase para não terem preconceito. Apesar de sofrer pouco no trabalho, tenho certeza que eles criticavam nas minhas costas, adolescente é terrível”, conta.
Zilei manteve a rotina apesar da doença. Não deixou de se maquiar ou ir à praia, continuou fazendo as unhas, arrumando os cabelos. Não parou de frequentar o clube de Inhumas, sua cidade natal. Foi lá que passou por uma das piores experiências de intolerância e falta de conhecimento sobre o problema. Certa vez, os associados fizeram questão de pedir à direção que vetasse o acesso dela às piscinas. “A sorte é que minha prima era a diretora e fez questão de explicar para todos que a psoríase não é contagiosa, que ninguém corria risco. O preconceito pode vir de qualquer lado, até do próprio portador. Mas nunca me deixei abalar”, afirma.
Hoje, a professora não dá mais aulas, mas continua trabalhando na administração da escola. Namora há dois anos. Descobriu um novo tratamento e toma remédios injetáveis a cada 15 dias. Chegou a ficar sem nenhuma ferida. Como uma espécie de lembrete para provar a impossibilidade de cura, a psoríase voltou a se manifestar durante as férias. A professora ficou sem tomar uma dose de remédio e ralou o braço em um muro. Resultado? As marcas voltaram. Com a maturidade, Zilei aprendeu a aceitar que a doença faz parte dela.
“Parei de me importar. Aprendi que não preciso me esconder”
A pele vai despigmentando aos poucos. Com o tempo, e, a cada crise de estresse ou problema emocional, as marcas brancas vão se espalhando pelo corpo. De mancha em mancha, o corpo todo vai sendo tomado. O vitiligo não é uma doença contagiosa nem incapacitante. A estudante Laynara Gomes, 21 anos, viu as manchas passarem de uma pequena área perto da boca, aos 6, para uma boa parte do corpo. As mãos, os pés e parte do rosto da estudante já são brancos.
“Tomei todo tipo de remédio e o tratamento que mais fez efeito foi a fototerapia. Mas ela afetava muito a minha visão, meu grau subiu de um e meio para quase três em pouco tempo. Escolhi parar e fiquei bastante tempo sem tratar o vitiligo, cuidando somente do emocional. No mês passado, voltei a tomar remédio, estou tranquila”, conta Laynara. A estudante conta que nunca sentiu necessidade de se esconder, apesar de ter sofrido com o preconceito e a desinformação. Com o tempo, descobriu que a melhor defesa contra a curiosidade que desperta nas pessoas é um equilíbrio entre bom humor e paciência. Leva as perguntas e piadinhas na esportiva, sempre procurando encontrar um lado positivo. “É quem eu sou. Não sou coitada, sei que muita gente tem problemas maiores do que os meus.”
O vitiligo não interferiu na vaidade da estudante, que se arruma quase todos os dias — passa base no rosto para disfarçar as manchas, aposta no rímel e no batom. Mas, se acorda com preguiça, Laynara não sofre por sair sem maquiagem. Hoje, não vê probema se o make não cobre bem as manchas brancas. “Parei de me importar. Aprendi que não preciso me esconder apenas para agradar os olhos dos outros. Me acho bonita do jeito que sou”, explica.
Assim como a psoríase, o vitiligo tende a piorar com qualquer desequilíbrio emocional. Quando o paciente se isola, entra em depressão, o quadro se agrava. Se sofre muito com o olhar curioso do outro, as manchas aumentam, o ciclo se forma e é difícil sair. No ano passado, a estudante passou por momentos delicados com a família e no trabalho. Como resultado, as manchinhas aumentaram — o vitiligo serve quase como um termômetro de estresse. Laynara conta que, quando percebe que a doença está se espalhando, tenta controlar o emocional e se acalmar.
Mãe de Túlio, 2 anos, Laynara namora com o pai do menino e pondera que, se fosse insegura com a aparência, talvez não tivesse tido tanto sucesso em seus relacionamentos. “As pessoas recebem o que a gente envia, e quem realmente me conhece não trata diferente por causa do vitiligo, porque sabe que eu não me enxergo diferente. Tive sempre o apoio da minha família, que me ensinou a procurar pelo lado bom das coisas”, afirma.
A mulher mais feia do mundo?
A americana Lizzie Velásquez, 26 anos, tem uma misteriosa síndrome, raríssima (apenas ela e mais uma pessoa foram diagnosticadas no mundo), que a impede de ganhar peso. Com 1,57m, Lizzie pesa 29 quilos. A jovem nunca conseguirá ultrapassar esse peso, apesar da dieta hipercalórica. Por conta do problema, ficou cega de um olho. Quando pequena, sofreu com o bullying das crianças, que a chamavam de monstro e, na adolescência, descobriu um vídeo que a classificava como “a mulher mais feia do mundo”. Os comentários eram cruéis — muitos incentivavam o suicídio —, mas Lizzie não se deixou abalar. Usa a maldade dos outros como degraus para ter sucesso na vida. Tornou-se uma ativista contra o bullying, escreveu vários livros, formou-se na faculdade, dá palestras motivacionais e agora, está lançando um filme. A americana escolheu olhar tudo por uma perspectiva positiva. Não enxerga com o olho direito, então, dá um jeito de ficar à esquerda de pessoas rudes ou más para não as enxergar. É magra, então pode comer qualquer coisa. O rosto é diferente, mas o cabelo é maravilhoso. Assim, Lizzie acostumou-se a ver o mundo ao redor.
Leia também: Lizzie Velasquez lança documentário antibullying
Uma bela borboleta
Uma borboleta roxa, que reside em um lindo casulo próprio. É assim que Anna Carolina da Rocha se define. A cor roxa é a preferida dela, que tem um delicado casulo marcado pela epidermólise bolhosa (EB). Essa é uma rara condição genética caracterizada pela extrema fragilidade da pele — tão sensível que é comparada às asas da borboleta, símbolo internacional da doença. Os pacientes apresentam bolhas e feridas constantes. Apesar dos desafios, Anna, 31 anos, conta uma série de conquistas. Ela pode não ter asas de verdade, mas elas não lhe fazem falta.
Servidora pública concursada, ela é graduada em ciência da computação, professora de inglês, bailarina de dança do ventre, palestrante e relações públicas da Associação de Parentes, Amigos e Portadores da Epidermólise Bolhosa Congênita (APPEB). Também fala espanhol, está aprendendo alemão e aproveita congressos internacionais para adquirir conhecimento sobre EB e ainda conhecer novos países, como a Costa Rica, o Chile e a Inglaterra.
Para ajudar na autoestima, uma das principais aliadas é a dança do ventre. Anna Carolina conta que escolheu a atividade como uma alternativa para se exercitar, algo mais divertido do que as sessões de fisioterapia. As aulas, no entanto, revelaram um significado além dos benefícios físicos. “Foi um resgate do feminino. Às vezes, eu não me achava no direito de me importar com beleza ou cosméticos. Pensava que tinha coisas piores para me preocupar e me boicotava.” As apresentações exigem um cuidado com a maquiagem e as roupas, e ela ficou mais atenta a esses aspectos.
No cotidiano, Anna Carolina precisa ter outros cuidados: não pode usar peças apertadas ou grossas. Assim, as opções preferidas são as saias e vestidos. “É meio dramático comprar roupa e sapato. Na adolescência, até insisti em usar jeans com lycra porque achava bonito, mas não me fazia bem.” Os botões também precisam ser substituídos por materiais mais leves, como o velcro.
Outra dificuldade é encontrar as numerações certas das peças, pois ela enfrenta uma luta para manter o peso em pelo menos 50kg. O organismo de Anna Carolina gasta muita energia e nutrientes para se recuperar dos ferimentos. Além disso, lesões na boca e no esôfago tornam a alimentação mais lenta e difícil. “A sociedade é tão louca que as pessoas nem me acham mais tão magra. Tem mulheres que dizem que queriam ser magras como eu. Se for alguém que eu conheço, eu dou até uma resposta abusada.”
Ela também não consegue usar salto alto, esses belos e, por vezes, dolorosos artifícios femininos. “Sou muito feliz depois que as sapatilhas entraram na moda. Posso escolher um modelo bonito e ir até para um casamento. Melhor do que aquelas que vão de salto e depois ficam descalças no meio da festa”, ri.
Quem encontra o bom humor e alto astral de Anna Carolina pode até esquecer que vencer o preconceito e as limitações da doença é um processo complexo. O contato com os alunos de inglês era tranquilo. No primeiro dia de aula, ela explicava sobre a EB e o que não se podia fazer para “não machucar a tia”. “Criança é fácil de lidar, elas têm apenas curiosidade. O problema é o adulto, que é preconceituoso e aborda de forma agressiva”, lamenta. Para ela, é importante as pessoas que fazem parte do cotidiano dela tenham informações sobre a doença, sejam colegas de trabalho, seja a funcionária do restaurante no qual ela vai com mais frequência.
Questões simples, como ir ao banco, podem se tornar constrangedoras, com reações de espanto ou perguntas como: “Você se queimou no micro-ondas?”. Muitos desconhecem que a epidermólise bolhosa não é contagiosa. Os questionamentos frequentes nem sempre são bem-vindos. “Tem dias que a gente acorda da pá-virada e se cansa de dar explicações”, admite. E também há momentos mais críticos. Há cerca de cinco anos, ela passou por uma depressão. “Foi uma época complicada e eu pedi para ser internada.”
Foram três semanas em um “retiro forçado”, no qual ela teve acompanhamento psicológico e tempo para refletir. Anna Carolina saiu fortalecida do processo e, com a experiência, viu que não teria problemas em sair da casa da mãe. O apartamento dela tem algumas peculiaridades, pois os utensílios devem ser leves e fáceis de manusear. A maçaneta, por exemplo, precisa ser mais comprida e não do tipo redondo. Isso porque ela tem epidermólise bolhosa do tipo distrófica, que afeta as articulações e provoca alterações nas mãos e pés. A sucessiva cicatrização da pele faz os dedos se unirem, que ficam com a aparência de uma luva.
Mas ela é vaidosa. Conta que demora cerca de duas horas se preparando para sair. O banho é mais demorado, cuidadoso, pois ela precisa trocar curativos e passar por uma rotina de hidratação e uso de medicamentos. Atenciosa com o próprio corpo e ávida estudiosa da EB, ela conseguiu alertar os médicos com antecedência sobre uma lesão no pé que doía mais do que o normal e levava mais tempo para cicatrizar.
O diagnóstico não foi fácil: câncer de pele, que tem grande incidência em pacientes com EB. No caso deles, se a identificação for tardia, aumentam as complicações e as chances de amputações. Ela conta que chorou muito assim que teve a notícia, mas não se abateu por muito tempo. O amplo conhecimento que Anna tem sobre a EB foi fundamental para ela intervir logo e não desenvolver maiores complicações. Muitas pessoas com a doença não chegam a idades mais avançadas justamente por problemas como o câncer ou infecções. No Distrito Federal, Anna Carolina é a paciente mais velha com EB do tipo distrófica. O caráter único fez com que ela ganhasse certa fama, é veterana em dar entrevistas.
Apesar de ser comunicativa, ela confessa que os pedidos de jornalistas já chegaram a incomodar. “Eu me perguntava, sou exemplo de quê? De nada.” Anna Carolina se considerava apenas ela mesma, não uma inspiração para outras pessoas. Ela conta que levou um tempo para se acostumar, mas resolveu encarar o papel. “Foi algo que surgiu de maneira natural. Agora, eu compreendo que, infelizmente, existem poucos exemplos”, afirma. “Hoje, acho que faz parte da minha missão”, acredita.