Para entender a questão, é preciso saber que cada organismo tem um lado dominante: um olho que enxerga melhor, um ouvido que escuta com mais clareza, uma perna ou mão com mais habilidade e força. Essas diferenças funcionam como um ponto de referência e são definidas por volta dos 6 ou 7 anos de idade. Quando estão todas do mesmo lado, constituem uma lateralidade homogênea. Mas nem sempre o corpo se organiza dessa maneira. Uma pessoa destra pode ter o ouvido esquerdo dominante, entre outras combinações possíveis. Nesse caso, ocorre a lateralidade cruzada, que, dependendo da combinação de fatores, implica em alguns desafios.
“O cérebro funciona de forma integrada. Assim, dificuldades na lateralidade podem afetar outras funções, como a habilidade motora, a fala e a escrita”, pontua o neuropediatra. Várias questões do cotidiano estão relacionadas às direções, incluindo as noções de dentro e fora, em cima e embaixo. “Se eu não consigo me situar no espaço, então é difícil armar uma conta, saber onde colocar unidades ou dezenas, e também entender o sentido da leitura e da escrita”, destaca Daluzia Cesário, psicopedagoga e orientadora educacional. Dessa forma, a criança pode ter problemas para copiar conteúdos no quadro, na organização, no reconhecimento das formas das letras e das proporções do próprio corpo e do ambiente em volta, o que facilita tropeções e quedas.
O foco e a concentração também podem ser prejudicados. “Em vez de a criança prestar atenção no conteúdo, ela fica numa etapa anterior, de entender de qual lado uma letra é escrita. Algo que seria praticamente automático acaba sendo um desgaste, prejudicando a atenção”, afirma Christian Muller. Alguns distúrbios que podem vir associados à lateralidade cruzada são a dislexia, a disortografia, a discalculia e o deficit de atenção. “Os adultos se queixam de se perderem com facilidade. A pessoa jura que está no caminho certo, mas acaba no caminho oposto. Quer ir para as quadras 200 e acaba nas 300”, exemplifica Carla Azevedo, psicopedagoga e fonoaudióloga.
Mas não existe uma regra para os sintomas, que podem estar presentes ou não. O pequeno João Pedro Matias, 5 anos e meio, não apresentou dificuldades com a lateralidade cruzada. Ele tem a perna esquerda dominante, mas é destro. “Antes, eu achava que ele ia ser canhoto, porque chutava com o pé esquerdo. A surpresa foi que ele preferiu a mão direita. Eu não sabia que poderia ser assim”, conta a mãe, Stela Matias, 38 anos. Ela é psicóloga e gerente de uma academia para crianças. “Isso me chamou a atenção. Fiquei na dúvida se iria atrapalhar ele, mas tratamos de forma natural.”
Stela explica que a orientação das professoras da academia era a de deixar a criança experimentar e incentivar os dois lados, mas sem a intenção de substituir a preferência, apenas para estimular todos os membros. Agora que João Pedro está na fase de pré-alfabetização, Stela observa que ele espelha algumas letras. “Mas é algo normal para a idade. Ele é muito tranquilo e caprichoso com as tarefas”, elogia a mãe. Ela também destaca que cada criança tem o próprio tempo. Entre os três filhos de Stela, João demorou um pouco mais que Maitê, 9, para definir a mão dominante, enquanto a caçula, 2, já aparenta preferir a mão direita.
“A pessoa que tem lateralidade cruzada não necessariamente vai ter dificuldades, depende de vários aspectos”, pontua a psicopedagoga Carla Azevedo. Para os que apresentarem sintomas, o tratamento precoce é ideal, pois ajuda a definir as funções no momento em que elas estão sendo desenvolvidas e aprendidas, como a escrita e a orientação espacial. O diagnóstico e o tratamento não são complicados. “É algo simples, mas que, sem cuidado, pode trazer um prejuízo enorme”, alerta Carla. Para identificar a lateralidade cruzada, bastam alguns exercícios, como andar em linha reta, olhar através de um buraco e pegar ou arremessar objetos. “Alguns pais até estranham trazer o filho para a oftamologista e eu pedir para ele chutar uma bola”, brinca Isabela Garcia, oftamologista pediatra.
O tratamento pode ser até divertido, incluindo diversas atividades motoras e cognitivas. Jogos simples, como o de sete erros e o de memória, ajudam a aprimorar a atenção e a percepção das diferentes direções. Os exercícios melhoram a consciência corporal e podem fortalecer o lado mais fraco. Em alguns casos, é útil usar um tampão em um dos olhos por algumas horas ou durante os exercícios. Por exemplo, se a pessoa tem a maior parte da lateralidade no lado direito, mas tem o olho esquerdo dominante, o olho esquerdo é tampado para que o olho direito receba mais estímulos. A mesma lógica vale para atividades auditivas que foquem em apenas um dos lados. “Não é possível mudar a dominância, mas conseguimos adaptar, trabalhar para que ela não gere mais problemas”, afirma Daluzia Cesário.
Com acompanhamento de uma psicopedagoga, Isadora Nardelli, 8 anos, tem conseguido superar as dificuldades da lateralidade cruzada. “Esses dias, ela gabaritou uma prova de matemática. Eu até brinquei que ia emoldurar em um quadro”, orgulha-se a mãe, a jornalista Beth Nardelli, 61. Isadora também apresentou distúrbio de processamento auditivo central (Dpac). Nesse caso, a pessoa tem a audição perfeita, mas a compreensão das informações é prejudicada. O Dpac dificulta a seleção das informações relevantes e a interpretação do que é ouvido. Beth conta que o diagnóstico foi fácil e o desafio foi encontrar a escola mais adequada.
Ela percebeu que a filha estava com dificuldades no primeiro ano do ensino fundamental, em áreas como a interpretação e a leitura de frases, na identificação das letras e dos sinais matemáticos. “Eu passei um semestre avisando que ela estava com dificuldade, mas me responderam que eu era muito ansiosa. De tanto insistir, eu comecei a ser a chata da escola”, conta Beth. Depois, a própria instituição orientou a mãe a procurar um profissional. Ela preferiu mudar a filha para uma escola menor, que desse atenção mais individualizada. Nas provas, Isadora faz as avaliações em uma sala separada, para diminuir as fontes de distração, e tem ajuda de uma pessoa para ler as questões. Dessa forma, o desempenho da menina melhorou bastante.
Beth acredita que ter paciência é fundamental para lidar com as dificuldades. “Muitas vezes, você não compreende como a criança não entende o conteúdo. Quantas pessoas não devem ter o problema e são tidas como preguiçosas?”, questiona. Sem apoio ou tratamento, a lateralidade cruzada, principalmente associada a outros distúrbios, pode chegar a prejuízos emocionais. “A criança não consegue executar determinadas atividades e tende a enraizar que é inferior”, lamenta a psicopedagoga Daluzia.
A ortoptista Mathilde Sardinha destaca que os alunos com dificuldade podem ser marginalizados e abandonar os estudos. Ela ressalta que a dominância ocular é um aspecto fundamental da imagem de si mesmo e do ambiente. “Nós construímos o nosso mundo por meio da percepção visual. Ela afeta o nosso processo de escolha, a nossa compreensão”, avalia. Além da lateralidade cruzada, ela aponta outras alterações na lateralidade, que podem provocar efeitos semelhantes. Como exemplo, ela cita a lateralidade imatura ou ausência de lateralidade e a lateralidade alternante, em que a pessoa alterna o olho e a mão dominante de acordo com a situação, ou seja, ela não tem uma referência fixa.
"Se eu não consigo me situar no espaço, então é difícil armar uma conta, saber onde colocar unidades ou dezenas, e também entender o sentido da leitura e da escrita” - Daluzia Cesário, psicopedagoga e orientadora educacional