Saúde

Livros de pintar e colorir já não são mais exclusividade das crianças; veja opções

O exercício de colorir tem características terapêuticas, pois provoca sensação de bem-estar, prazer e alívio do estresse

Revista do CB

Johanna Basford é autora de um livro para colorir
As crianças que tomem cuidado: agora, elas vão ter de disputar o material escolar. Usar lápis de cor e canetinhas faz parte de uma tendência que se espalhou pelo mundo: os livros de colorir para adultos. A professora Altidel Cardoso, 54 anos, ganhou um apontador e uma caixa de giz do sobrinho de 6 anos. “Mas tudo tinha um interesse”, brinca. “Gabriel queria pintar o meu livro também e fica indignado porque eu não deixo.” Com a pouca idade, ele não faz questão de respeitar os contornos mais complexos dos desenhos de Jardim secreto, uma das publicações mais famosas do gênero. A obra traz ilustrações inspiradas na fauna e flora da Escócia, onde a autora, Johanna Basford, reside, e ultrapassou a marca de 1 milhão de cópias vendidas no mundo — mais de 45 mil exemplares nas livrarias brasileiras.


Cada página apresenta um conjunto de flores e folhas cuidadosamente desenhadas e esconde algumas pequenas criaturas, em uma proposta de “caça ao tesouro antiestresse”. Todos os traços foram feitos à mão, no papel. A mente por trás do projeto se define como uma ilustradora que prefere as canetas e os lápis em vez de pixels, as imagens feitas no computador. “Eu crio arte analógica para um mundo digital”, afirma Johanna em seu blog. Para Johanna, desenhar à mão parece mais autêntico, apaixonado e pessoal, um processo que captura a emoção. Esse retorno ao trabalho manual é um dos principais motivos para a conquista de tantos leitores (ou “pintores”). Um deles é a empresária Ivna Santos, 39 anos.

Ela conta que, na primeira vez em que mostrou o livro a outras pessoas, algumas estranharam. “Uma amiga até brincou e me ofereceu o trabalhinho de escola dos filhos dela”, ri. Mas os benefícios de pintar vão além do jardim de infância. Ivna percebeu que colorir ajuda a melhorar atenção e a ter um tempo para ela mesma.
Altidel comemora o reencontro com os lápis de cor: "A descoberta e o segredo desse jardim é você mesmo"

“Eu fico tão concentrada no desenho que me esqueço de qualquer coisa ao meu redor: televisão, música, latido dos cachorros, redes sociais. É ótimo se desconectar um pouco e se concentrar em si e nos próprios pensamentos.” Assim, ela relata que as emoções e a mente ficam em ordem mais fácil. A autora do livro se identifica com o sentimento. “Quando estou criando uma obra, eu me sinto completamente absorvida. É como estar em um bolha sem nenhuma internet para se distrair! Imagino que as pessoas se sentem assim ao colorir os desenhos”, disse Johanna à Revista.

A leitora Ivna ainda compara a proposta do Jardim secreto com a vida. “O destino está traçado, como nesse livro, mas a gente colore da forma que preferir. E, se não ficar bom, é só partir para outra página”, incentiva. Segundo a arteterapeuta Amara Hurtado, a prática de pintar e outras atividades artísticas são uma maneira de compreender os conflitos internos. “A arte pode ser um caminho para tomar consciência de algo que esteja te afligindo, desde um trauma a uma inquietude que parece não ter motivo.” Para isso, é interessante dar atenção ao processo. Que material é escolhido? Uma tinta mais leve ou mais pesada? Quais as cores, o modo de segurar o lápis, a pressão exercida sobre o papel? E quando a canetinha sai do limite? Como a pessoa lida com o erro? São vários os aspectos que podem ser observados, cada um revelando um pouco da personalidade e do estado de espírito durante a criação.

Ao colorir, Ivna acredita que consegue ficar mais focada e conquistar mais tempo com ela mesma
Amara destaca que o exercício de colorir tem características terapêuticas, pois provoca sensação de bem-estar, prazer e alívio do estresse. Porém, para ser realmente uma terapia, é preciso ir mais fundo. “Se você quer algo para lidar com questões da vida, do seu inconsciente e de suas dificuldades, é importante refletir, dialogar e elaborar essa vivência com acompanhamento profissional”, pontua. Mas sem exageros nas avaliações e nos objetivos estéticos. “Tem que ser espontâneo, deixar o momento fluir.” É preciso evitar fazer análise antes da hora ou se preocupar em produzir uma obra perfeita para virar um quadro na parede. O desenho pode até ser descartado logo depois de pronto. “O ideal é experimentar. Os livros são um espaço para se permitir fazer isso dentro de casa. São ferramentas saudáveis, criativas, que fazem bem para o corpo e para a mente.”

Ivna vai se desvencilhando dos padrões aos poucos. “Eu vejo que o meu colorido ainda é metódico”, avalia ela, ao mostrar as folhas pintadas de verde e as flores, de rosa. Mas ela passou a aguçar a percepção e observar melhor a quadra onde mora. “Esses dias, eu estava andando e vi que a planta tinha diferentes tons de verde. Reparei que outra tinha uma folha roxa. Eu vi que podia ousar mais. Quando prestamos atenção, a própria natureza nos inspira”, opina. Outras descobertas foram menos felizes. “Quase caí para trás quando vi o preço do lápis de cor”, brinca. Um conjunto de 48 lápis de boa qualidade pode superar facilmente o valor de R$ 100 e surpreender quem não é acostumado a gastar com esses artigos.

Ela também destaca a integração promovida nas redes sociais. Muitos fãs postam as páginas coloridas, formam grupos e trocam incetivos, dicas de materiais e técnicas. Ivna foi convidada participar de uma comunidade no Facebook pela amiga Altidel Cardoso. Além do diálogo nas redes, o livro de colorir foi mais um assunto para unir a família de Altidel. Ela e mais três irmãs têm um exemplar. Juntas, elas especulam sobre as possibilidades futuras. “Nós viajamos para a Bahia, que é muito colorida, e tudo que víamos nos lembrava o livro. Pensamos como seria se tivesse um sobre o Brasil, com toda essa flora, esse mar. Imagina um sobre a Amazônia?”, se empolga a professora, que dá aulas de história.

Jardim Secreto foi o reencontro de Altidel com os lápis de cor, mas ela nunca se distanciou da arte. Adora customizar caixas, escrever poemas e misturar palavras ao colorido. “Até nos espaços para desenhar eu quero escrever pequenos poemas. Eu gosto de cor, de alegria, e a minha escrita fala disso.” A professora se descreve com o trecho de uma poesia que criou: “Sou mesmo assim...cheia de matizes rebuscados de cor de rosa, amarelo bem clarinho.../ pingos de azuis salpicados de bolinhas brancas.../ Mas, às vezes, fico toda prateada só em sentir a seriedade dos amores, a alegria das cores, a lealdade dos amigos…”

Outro aspecto que Altidel destaca é poder colocar diversos significados pessoais nas pinturas, inspiradas pelos elementos que a cercam. “Vem ver essa janela”, convida. E mostra com orgulho a vista do apartamento onde vive, feita do verde e do azul tão característicos de Brasília. O cenário simples e bonito é dotado de uma mangueira, um pinheiro e um abacateiro “com o melhor tipo de abacate que existe”. As três árvores adoram abrigar vários passarinhos pela manhã, conta. Até agora, a ilustração preferida dela é justamente uma casa de pássaros. Apesar do tamanho bem menor, a estrutura a faz lembrar -se do pombal na Praça dos Três Poderes. “Eu tinha um fascínio por esse lugar. Eu pintei o pombo da mesma cor da casa, porque quando eu via aquela obra não conseguia distinguir nada, parecia tudo a mesma coisa, só o barulho se destacava”, explica.

Altidel acredita que um dos destaques dessa atividade é a liberdade para criar e produzir algo único. De corujas rosas a flores azuis, tudo é permitido e feito no ritmo de cada um, levando horas ou dias. “Todo mundo pinta a mesma ilustração, mas de um jeito diferente. É um universo muito particular. O grande lance é descobrir que o segredo do jardim é você mesmo.. O conhecimento de si ganha novas compreensões com as diferentes linguagens artísticas. O psicólogoWaldemar Magaldi, especialista em arteterapia e psicologia junguiana, indica que essas atividades ajudam a tirar a terapia exclusivamente das conversas e permite revelar aspectos que não conseguiriam ser expressos racionalmente. “Muitas vezes, os mecanismos de defesa do ego acabam impedindo que os conflitos venham à tona.”

Magaldi explica que, quando a pessoa está expressando algo não verbal, é realizado um esforço para promover uma harmonia externa, que estabelece uma conexão com a harmonia interna. “Essa experiência criativa e lúdica é muito importante”, enfatiza. O psicólogo aponta que um dos principais estudiosos da área foi Carl Gustav Jung. Para o psiquiatra e psicoterapeuta suíço, os padrões de defesa poderiam ser contornados com o uso de meios alternativos, como o registro dos sonhos e as produções espontâneas feitas nas terapias artísticas. Nessa última categoria, o destaque vai para a elaboração de mandalas.

"As pessoas se sentem mais leves, mais calmas. A atenção plena na atividade leva a uma prática meditativa” - Adriana Dornellas, psicóloga


O poder dos círculos

Além do fenômeno editorial dos novos livros de colorir, as opções mais conhecidas para os adultos são os volumes dedicados às mandalas. A atividade propõe reestabelecer o equilíbrio espiritual e emocional. A palavra mandala vem da língua indiana sânscrito e significa círculo. “No âmbito dos costumes religiosos e na psicologia, designa imagens circulares que são desenhadas, pintadas, configuradas plasticamente ou dançadas”, define Jung no livro Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Essas formas são universais e estão presentes em diversas culturas e espaços. “Desde o microcosmo — nas células, no DNA, nos átomos — até as grandes formações planetárias”, destaca Waldemar Magaldi. Elas também apareceriam espontaneamente em sonhos e em certos estados de desorientação, pânico ou caos psíquico.

Mandalas de bolso, de Françoise Rougeau %u2014 R$ 24,90
No Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira observou que as mandalas apareciam de forma recorrente nas pinturas feitas por esquizofrênicos. “Nise convidou artistas plásticos para pintar em meio aos pacientes. Sem impor nada, ela também deixou materiais de pintura. Eles começaram a se expressar nas telas e, em muitas delas, surgiram formas circulares”, descreve Magaldi. Os trabalhos chegaram a ser vistos e reconhecidos pelo próprio Jung. Ele considerava que essas elaborações naturais de mandalas eram uma tentativa de autocura da natureza, provenientes de um impulso instintivo. “Sua meta, pois, é a de transformar a confusão numa ordem, sem que tal intenção seja sempre consciente. Em todo o caso, as mandalas expressam ordem, equilíbrio e totalidade. Frequentemente, os pacientes ressaltam o efeito benéfico ou tranquilizador de uma imagem,” explica em Os arquétipos.

Ao mesmo tempo, as mandalas também são consideradas uma representação do divino, o que não necessariamente se refere a algo religioso. “É mais um estado expandido de consciência, de fazer uma religação com a própria essência, o si-mesmo”, detalha a psicóloga Adriana Dornellas, especialista em psicologia junguiana e transpessoal. Ela recomenda a prática de fazer mandalas para todos, sem contraindicação. Os benefícios são identificados de forma subjetiva. “As pessoas se sentem mais leves, mais calmas. A atenção plena na atividade leva a uma prática meditativa.”

Mas o exercício de apenas colorir a mandala, sem produzir o formato, levanta dúvidas sobre o potencial curativo. “Não dá para invalidar, mas, quando a forma já está pronta, diminui a espontaneidade”, pondera o psicólogo Waldemar Magaldi. Ele considera melhor que a expressão comece de forma assimétrica, aleatória, até chegar na formação mandálica, com o interno se expressando de forma mais organizada.

A estudante Beatriz Franco, 19 anos, deu um livro de colorir mandalas para uma amiga e comprou outro para si. No começo, elas mostravam as imagens uma para outra e compartilhavam alguns materiais, até cada uma seguir o próprio ritmo. Beatriz também experimentou desenhar as representações, mas achou um pouco difícil e preferiu se dedicar apenas às cores. Ela tenta pintar pelo menos uma por semana e criou um pequeno ritual. Nos momentos que está ansiosa, acende um incenso e se concentra nas ilustrações. “É um hobbie para relaxar, quase uma fuga. Você esquece da correria do dia a dia para pintar pequenas bolas. Achei que seria algo bobo, mas me surpreendi”, conta. Ela também destaca a redescoberta do exercício típico do universo infantil.


Johanna Basford, autora do livro 'Jardim secreto'

Jardim Secreto, de Johanna Basford %u2014 R$ 29,90
Como surgiu a ideia de produzir um livro de colorir para adultos?
Inicialmente, os editores me fizeram uma proposta de criar um livro de colorir tradicional, para crianças, mas estava interessada em elaborar uma publicação mais detalhada. Sempre fiz os meus desenhos em preto e branco e muitas pessoas me diziam que tinham vontade de colori-los. Naquele tempo, esse não era um mercado em expansão como hoje. Fico feliz que tenhamos arriscado e feito algo novo.

Você esperava tamanha repercussão?
Ninguém ficou mais surpreso do que eu sobre a boa recepção dos livros. Quando comecei o projeto, o meu único objetivo era criar algo que eu mesma tivesse interesse em ter e colorir. Pensava que se fizesse algo que amasse, outras pessoas poderiam sentir a mesma coisa e o comprassem. Em janeiro, batemos 1 milhão de cópias do Jardim secreto em todo mundo. É uma loucura. O meu segundo livro Enchanted Forest (ainda sem nome em português) será lançado em breve e é muito bacana ver as pessoas compartilhando as primeiras imagens nas redes sociais.

Você acredita que o ato de colorir tem alguma função terapêutica?

Acho que pode ser uma oportunidade para se perder por algumas horas em uma atividade criativa. Eu me sinto em paz quando desenho e acho que, para algumas pessoas, sentar-se diante de uma folha em branco pode ser algo assustador, mas pintar um livro pode ser reconfortante. Eu penso nos livros de colorir como uma colaboração entre mim e os leitores. Eu crio contornos pretos e as pessoas trazem vida a eles com as cores.