No caso da última pergunta, todas as pessoas bem intencionadas que não tamparam o rosto da criança antes de compartilhar a imagem erraram e no caso dos portais de notícias que também não tiveram esse cuidado, a responsabilidade é ainda maior. “Esta criança está sendo continuamente exposta pelos indignados, pelo ativismo dos direitos da infância e dos adolescentes e pela mídia. Não se pode cobrir um erro com outro. Vemos, neste caso, um paradoxo de cuidar da criança sem o devido cuidado. Dar a notícia antes dos outros não deve ser prioridade, mas sim, a criança. A imagem dessa menina corre o risco de virar meme em chans misóginos espalhados pela internet”, afirma a publicitária, mestre em políticas públicas, co-fundadora do Movimento Infância Livre Sem Consumismo (Milc) e membro da Rede Brasileira de Infância e Consumo (Rebrinc), Mariana Sá.
Para a psicóloga e autora do blog ‘Ninguém Cresce Sozinho’, Patrícia Grinfeld, ainda existe uma falta de informação e reflexão do quão desgastante é esse compartilhamento para a imagem dessa menina e da família dela. “As pessoas não se dão conta que estão reforçando esse lugar de superexposição da infância. De um lado temos os que pensam que a infância é uma fase da vida e só, mas já notamos na sociedade famílias que percebem a infância sendo atropelada por tanta informação e aparatos tecnológicos. O apelo erótico, inclusive, vem muito pelas redes sociais”, afirma.
A especialista observa ainda que a coleção de carnaval da marca UseHuck reforça a ideia de que seja uma festa do ‘tudo pode’ do ponto de vista sexual e inclui as crianças nessa permissividade. As camisetas estavam sendo comercializadas para a faixa etária de 2 até 12 anos. “Comportamentos sexuais dos adultos estão sendo vividos pelas crianças desde muito cedo. Percebemos isso desde situações como essa até aquelas em que crianças têm acesso a conteúdos eróticos”, diz.
Reações diferentes
Sobre o fato de a menina ter sido muito mais exposta que o menino, Patrícia atribuiu o comportamento ao reflexo da cultura. “O homem é visto muito mais como abusador, mas no caso das crianças, o abuso de meninos acontece e muito. A menina é sempre vista como passiva e o menino, ativo. E isso reforça o modelo cultural que a gente vive: a mulher é a fácil e o garoto faz, mas não precisa se responsabilizar por nada. Está aí uma oportunidade para a sociedade pensar sobre responsabilização”, pontua.
Mariana Sá diz que o fato de a imagem da menina ter sido ‘escolhida’ para representar a revolta com a mensagem que foi passada pela UseHuck pode ser também reflexo do maior cuidado e atenção que temos em relação às meninas e casos de abuso sexual. Para ela, no entanto, a coleção das imagens é que deveria estar motivando a discussão em torno do episódio. “O homem pode fazer e esquecer é igualmente inaceitável”, diz.
O ‘erro’
A publicitária Mariana Sá acredita que essas peças foram produzidas porque as empresas materializam, através de produtos, a caixa de comentários dos grandes portais e baseiam suas criações nesse tipo de conteúdo que, antes não tinham espaço, mas que com a garantia do anonimato na web ganham força. “A pessoa geralmente não fala o que escreve, mas as empresas têm baseado seus processos criativos em pensamentos reacionários de uma minoria que tem coragem de se posicionar como tal”. Para a co-fundadora do Movimento Infância Livre Sem Consumismo (Milc), as camisetas são inadequadas até para adultos e não apenas para crianças e adolescentes.
Para ela, o comunicado divulgado pela UseHuck mostra que o processo que levou ao erro deixa claro que mesmo as empresas que se propõe a fazer produtos infantis não vêem a infância como prioridade absoluta, mas apenas como nicho de mercado. “Se a empresa do Huck tivesse apenas um funcionário treinado com o olhar para os direitos humanos isso não teria acontecido”, reforça.
Veja trecho do comunicado: “É comum em e-commerce que as artes das estampas sejam aplicadas posteriormente sobre fotos dos modelos com camiseta branca, conforme o exemplo abaixo. Por erro nosso, todas as artes de Carnaval (inclusive e infelizmente, esta arte) foram aplicadas sobre a coleção infantil e disponibilizadas no site sem a devida revisão”. O que a UseHuck não explicou é como as imagens foram parar na página do marca no Facebook também sem ninguém ver.
Compra quem quer?
Mariana Sá lembra ainda que a tutela da criança é responsabilidade da sociedade. “Tanto que existem os Conselhos Tutelares que impedem que a família faça da criança um objeto. Temos aparatos legais que permitem que a sociedade possa ‘entrar’ no seio familiar. Não temos como impedir que um produto legalizado exista, não podemos tolher a liberdade de expressão, mas a sociedade tem o poder de tutelar essas crianças e também os adolescentes”, afirma.
Para ela, a internet oferece duas estradas: a que visualiza um mercado promissor entre os menos politicamente corretos e a que aciona os advogados das causas das minorias. “Antes das redes sociais, essa reação não seria possível. Hoje, as pessoas têm, em suas redes de contatos, militantes de diversas áreas que são acionados com rapidez e são capazes de promover uma reação em cascata que atinge em cheio a imagem da empresa. A UseHuck pediu desculpa porque percebeu que aquilo era inadmissível”, observa.
Mariana Sá lembra que no caso das acusações de racismo em que essa mesma empresa se envolveu, a reação das pessoas não conseguiu impedir a comercialização da camiseta. “Pela primeira vez vimos a criança como prioridade na resposta, tiraram o produto do ar. No entanto, não vimos essa mesma prioridade no processo de criação do produto”, salienta.
Cuidados
Por ser impossível a inexistência de modelos mirins, a psicóloga Patrícia Grinfeld faz um alerta: “Os pais devem se atentar aos contratos que são feitos e vincular a veiculação da imagem a uma autorização prévia após a peça ser concluída”. Para ela, se a própria UseHuck admitiu no comunicado que não sabia que as estampas da linha adulta seriam usadas na infantil, a chance de os pais das crianças saberem é pequena e dá para supor que tenha havido um uso indevido da imagem.