Cidadania é o exercício dos direitos e deveres civis. Saber viver em comunidade não é fácil. Pelo contrário, é um aprendizado constante. Em tempos de crise de água e de energia, como as pessoas podem se doar, ter boas ações e cobrar atitudes conscientes umas das outras sem implicar desavenças, brigas ou desrespeito? Muitas delas estão mexidas com o rumo e o momento delicado do país, o que as têm atrapalhado, seja na falta de motivação, descrédito, insegurança ou receio. Ao mesmo tempo, nessas horas, é preciso aflorar sentimentos de superação, união, contribuição, compromisso com o outro, respeito e cuidado com o mundo à sua volta.
Diante da gravidade do que se apresenta, a psicanalista Inez Lemos desenvolve um pensamento que nos convida a refletir sobre como agir “diante de nossos direitos e deveres. ‘Deus não morreu, ele se tornou dinheiro.’ Assim, o filósofo italiano Giorgio Agambem descreve o mundo atual, e afirma que o capitalismo é uma religião, a mais feroz, implacável e irracional que já existiu. A democracia (governo do povo) prevê uma sociedade em que os bens naturais devem ser distribuídos entre a população de forma equilibrada. Contudo, o que temos é um modelo de desenvolvimento predatório, controlado por grandes empresas que defendem um consumo perverso, uma vez que não se expandem em um crescimento sustentável. Nesse cenário, educamos as crianças na prática de levar vantagens, vencer a qualquer custo. Os próprios pais ensinam a desrespeitar o outro com atitudes arrogantes, cultuando posições de privilégio e banalizando os direitos que todos teriam igualmente”.
Para Inez, a crise hídrica que vivemos (para citar a mais atual) apenas deflagra o individualismo, símbolo da cultura narcísica, quando conceitos de ética, respeito ao outro e solidariedade soam risíveis. “Cidadania não se ensina mais nas escolas, que seguem a tendência do mercado. Geralmente, a criança de classe média não aprende a dividir, socializar, repartir. É educada recebendo tudo de forma fácil, não convive com a falta, sempre é atendids quando solicitada. Uma cultura que sempre responsabiliza o outro (governos) pelas ações do espaço público. Poucas famílias educam visando instituir um sujeito com consciência social, que toma para si o dever de contribuir na gestão de sociedades mais justas e humanas.”
EMBAIXADORA A discussão proposta pelo Bem Viver hoje é legítima: o que você anda fazendo para seu bem, do outro e do mundo globalizado, já que suas ações influenciam tudo e todos? Lembre-se que jogar lixo no lixo, recolher o cocô do cachorro e fechar a torneira do chuveiro para ensaboar terão impacto no seu bem-estar e no do planeta. Quem assume com categoria esse papel é a dona de casa Abgair Moura, de 58 anos.
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Abgair recolhe diariamente lixo da rua, puxa a orelha de quem não economiza água, recolhe as folhas que caem na porta da sua casa e na dos vizinhos e ensina e cobra a mesma postura da sua funcionária e dos filhos. Sempre prestativa e cuidadosa com o bem-estar dos outros, se um morador viaja, ela procura “recolher os jornais, tirar o lixo e varrer a calçada da casa dele para ninguém perceber que a residência está vazia”.
Atenta, ela não pensa em cuidar só do seu quarteirão. Se anda pelo bairro e vê um buraco na rua, trata de ligar para a prefeitura e cobrar providência. É um exemplo de cidadã que se dispõe a fazer o que está a seu alcance.
O mundo atual gosta de tudo imediato. Não se preocupa em prevenir, não planeja e o compromisso com o outro e com a comunidade, muitas vezes, é falho, e as consequências são ruins. Comportamento que afeta desde a forma de cuidar da saúde até ser obrigado a lidar com possível racionamento de água e falta de energia. Para tudo, prefere o tratamento de choque que visa apenas o resultado. Dessa combinação nada animadora, a esperança da psicanalista Inez Lemos é que, desta crise que estamos vivendo, “nasça um novo sujeito, consistente e com consciência social”. Ela enfatiza que, na lógica da privatização do prazer, a alteridade não faz parte do manual do bem educar, bem conviver. “Portanto, a questão do uso racional da água (aqui como exemplo maior, mas que pode se estender a várias searas) não recebe a devida atenção, não é vista como uma questão social, comunitária. Muitos utilizam a água como um bem individual, uma mercadoria. É o processo de mercadorização, gerando confusão entre os conceitos de público e privado. É quando muitos jovens crescem acreditando que o dinheiro compra tudo – de água a mulher.”
Conforme Inez, apenas identificamos e reconhecemos uma questão quando ela faz parte de nosso cotidiano, de nossa cultura. “A mudança de hábito exige implicação – o prefixo “im” aponta para algo que foi internalizado, absorvido. Refletir, prevenir e se implicar nos problemas que envolvem a vida em sociedade, de forma ética, nunca foi prioridade entre as famílias e tampouco nas escolas, quando o determinante é o econômico.”
Para a psicanalista, uma vez que os governantes também não trabalham na perspectiva da prevenção e do planejamento, respeitando o direito do povo acima do lucro, as crises chegam impondo sacrifício à população. “No caso da crise hídrica, o descaso com a coisa pública nos leva a obedecer à ordem determinada pelos irresponsáveis, que não priorizaram o uso dos rios para consumo doméstico, preferindo reverter o produto em mercadoria a ser vendida ao grande capital. Culpar a falta de chuva é deslocar a questão. Há muito que se fala na importância de implantar um crescimento sustentável, que respeite a natureza e não agrida o bioma, quando a vida humana estaria em primeiro lugar.” É preciso saber ouvir (não só o poder público), aceitar posicionamentos distintos, reconhecer falhas, voltar atrás e aceitar questões como “o apelo dos ambientalistas em sensibilizar a população com a preservação da natureza, adotando medidas como coleta seletiva do lixo, uso consciente da água e energia”, que, infelizmente, ainda “esbarram no preconceito aos ‘ecochatos’, que tomam para si o que deveria ser de todos. Ecologia, até então, soava como um mantra dos inoportunos que nos azucrinam com um tema que não nos pertence, algo alheio a nós – os bens nascidos que se julgam blindados contra o mal”, reforça.
BAILE Se o cenário de racionamento da água e de energia se configurar, Inez espera que sirva para encetar um outro país, cuja população se conscientize da importância de se respeitar a coisa pública. “Que o espírito de colaboração invada as almas ressecadas pela cultura patrimonialista, desumana e perversa, que cresce e se abastece na lógica do acumular por acumular. Ao implicarmos na construção de uma vida comunitária melhor e feliz, que contemple o bem viver, é necessário darmos as mãos e abandonar a dança do eu sozinho. Agora é baile de rosto colado. Seria romântico se não fosse trágico.”
Alguns vão pensar assim: “Ah, médico, ativista, ecologista” é esperado que seja uma pessoa comprometida com a cidadania. O raciocínio não é esse. Antes de qualquer título, currículo ou interesse, exercer a cidadania e atuar como cidadão é papel de todo ser humano. E nada melhor do que ter a opinião de quem é envolvido. Um alerta a mais. Apolo Heringer Lisboa, médico, escritor, ecologista, idealizador do Projeto Manuelzão, que mobiliza a sociedade para a recuperação hidroambiental do Rio das Velhas, com o objetivo da volta do peixe, mas tendo por meta final a transformação da mentalidade cultural na população dessa bacia hidrográfica, é daquelas pessoas com autoridade para falar e lembrar da importância de viver pensando no outro e no planeta. E tem know-how para se posicionar de acordo com a fala de uma amiga “a culpa não é do meu banho”, diante da crise da água que o Brasil enfrenta e que recai sobre a população, a ordem não só para economizar (o que faz a vida inteira e deveria ser comportamento de todos), mas que afeta também o bolso. O que dá a ele direito de também protestar. “Reduzir consumo em 30%, sobretaxa, multa... Não aceito que a sociedade pague mais caro. O governo tem de cobrar dos grandes usuários, mineradoras e agroindústria, que pagam preço simbólico pela água. Não coloco o pequeno no mesmo pé de igualdade. Para resolver a situação, precisamos de ações macro, de envergadura. É delicado e entendo que pessoas se revoltem e não aceitem. Há casos em que um morador corta uma árvore na porta de casa e é punido imediatamente, já a mineradora desmata áreas enormes e a punição é só num primeiro momento.” E aí? O que pensar?
Apolo puxa a orelha de quem sequer se compromete com atitudes banais, simples, mas que ajudariam muito. “É total falta de respeito e me irrita muito quem joga toco de cigarro na rua, que vai parar no Rio das Velhas, ou não recolhe o cocô do seu cachorro.” Ele conta que, no caso do rio, um pescador de Corinto desabafou com ele dizendo que tem muito papel celofane de bala e picolé no fundo do rio, que não dissolve e impede o peixe de se alimentar, assim como palitos de picolé e fósforo e guimbas de cigarro. “As pessoas jogam lá e não imaginam o dano. Não veem que o papel de bala dele é parte de um universo de milhões. É preciso ter consciência.”
CIDADÃO E CIDADANIA
- Levar em conta o impacto que um ação causa à coletividade, o que vale para a hora de consumir um produto, jogar lixo fora e votar...
- Noção de que qualquer atitude, a mais simples, reflete no bem-estar do mundo em que vivemos
- Atenção com a reciclagem
- Escolher produtos com menos impacto ambiental. Consumo responsável
- Uso adequado, sem desperdício de água e energia
- Evitar desperdício de alimento
- Dentro do possível, investir em aquecimento solar
- Respeito ao outro
- Participação consciente e responsável do indivíduo na sociedade, zelando para que seus direitos não sejam violados
- Expressão concreta do exercício da democracia, com direitos e deveres
- Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais
É UM APRENDIZADO
Aprende-se a praticar cidadania e a agir como cidadão. Esse é o compromisso da socióloga Eliana Maia. Coordenadora do projeto técnico do trabalho social do programa na Drenurbs Bacia do Córrego Bonsucesso, que nasce no Olhos d’Água e vai até o Tereza Cristina, no Arruda, ela ensina às famílias, por meio da recuperação do córrego, noções da cidadania, de civilidade, direitos e deveres do cidadão e quais as obrigações da sociedade e do Estado. “O fundamental é a participação e inclusão do cidadão no espaço coletivo. Independentemente da origem das pessoas, dos acessos, todos precisam trabalhar a mudança de atitude. Ações para o bem comum têm de vir de todos, cada um precisa fazer a sua parte.”
Para Eliana, já passou da hora de jogar fora o pensamento equivocado, retrógrado, infelizmente de muitos, de que “a culpa é sempre do outro, do vizinho, de quem não tem educação, do governo. Quem não conseguir mudar essa ideia e de atitude penalizará a todos, porque a culpa recai sobre cada um de nós. A história começa de mim. A postura de que o problema não é meu, é do Estado, é público porque pago imposto não pode permanecer. O pior é que esse é um pensamento que permeia todas as classes. É um comportamento da sociedade. Por isso, no fim, só podemos apelar para a educação”.
Otimista e com provas no seu dia a dia, a socióloga acredita na transformação. “Quando querem e recebem informação, a mudança é real. No caso do nosso projeto, a relação com os moradores é gratificante e prazerosa, porque a troca é mútua. E se há problema de participação do coletivo, criamos formas de aproximá-los. Discutir leis, obrigações pode esvaziar, mas, ao trabalhar os mesmos assuntos com outras ferramentas, como oficinas de cinema e de grafite, conseguimos falar da valorização do patrimônio, da importância do meio ambiente, do resultado da reciclagem, do quanto é fundamental a água e muito mais. Ações simples que são fundamentais para montar uma rede solidária que vai impactar não só o espaço do projeto e região, mas toda a cidade.”
SELVAGENS Eliana é o exemplo perfeito de que atitudes conjuntas e pessoais fazem a diferença. E ela enfatiza que, para não perder tempo e evitar consequências piores, é preciso ensinar desde a infância, num movimento de crianças cidadãs. “A educação de qualidade, desde o básico, é a salvação, já que muitos perderam a dimensão da vida social. Educação não só da escola, mas da família. Um bom filme que nos faz refletir a respeito de toda essa discussão e do que falei, do mundo atual, de como agimos, do compromossio com o outro é Relatos selvagens, concorrente ao Oscar, que nos propõe refletir sobre nossa relação com o Estado e com o próximo. Tenho para mim que o filme retrata muito bem a incompletude própria do ser humano. E, pelo fato de o homem achar sempre que a culpa é do outro, pois não admite que o erro é seu, a intolerância se apresenta em várias situações do cotidiano.”