Estudos científicos mostram que a prevalência de enfermidades cardiovasculares varia conforme as etnias, especialmente quando a questão é a pressão arterial. Segundo o diretor da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro e editor científico da Revista Brasileira de Cardiologia (RBC), Cláudio Tinoco, pessoas com ascendência afro-americana têm maior prevalência de hipertensão. “Quando estão no mesmo nível de indivíduos de outra etnia, apresentam mais lesões de órgãos alvo, ou seja, maior taxa de efeitos adversos.”
A Pesquisa Nacional de Saúde, divulgada no ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, confirma que o fardo da incidência de doenças coronárias é mais pesado entre os negros. Cerca de 17% deles declararam o diagnóstico médico de doença do coração e têm grau intenso ou muito intenso de limitações nas atividades habituais devido à doença. Entre a população autodeclarada branca, a taxa é pouco maior que 11%; e, entre os pardos, 16,5%.
As disparidades também são percebidas nas diferentes respostas a anti-hipertensivos. Tinoco ressalta que medicamentos com essa finalidade e ação diurética têm uma ação mais acentuada em negros, assim como os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECAs) em brancos. O primeiro tipo de remédio provoca a eliminação de líquidos e sódio pela urina. O segundo é um vasodilatador. “Esses estudos mostram que, na verdade, o que está por trás disso é um patrimônio genético diferente na excreção de proteínas sintetizadas pelo DNA”, diz o cardiologista.
Indivíduos com ascendência africana têm mais de um tipo de gene que favorece a retenção de sódio e água e faz com que a hipertensão arterial seja mais responsiva aos medicamentos diuréticos. No entanto, Tinoco alerta que o tema, ainda que comprovado por seguidos ensaios clínicos populacionais, é controverso no meio clínico e acadêmico. Até porque a análise fica cada vez mais complicada devido ao alto nível de miscigenação da população. “No Brasil, é mais difícil dizer que, pela cor da pele, uma pessoa tem um patrimônio genético ou outro.”
O especialista cita uma grande pesquisa feita nos Estados Unidos em que as pessoas se autodeclararam pertencentes a um grupo étnico e participaram de testes com dois tipos de medicação para uma determinada condição cardíaca. “Esse estudo mostrou respostas bastante interessantes para esses remédios. Foi de grande discussão e passou a ser utilizado para indicar um uso preferencial em pessoas afro-americanas.” Porém, dois trabalhos de análise genética feitos pela Universidade Federal Fluminense e pela Universidade Federal de Minas Gerais mostraram que, na população brasileira, a cor da pele não consegue prever a mesma resposta com tanta precisão.
Atenção falha
Enquanto esse conhecimento começa a se diluir com a mistura dos povos, outro se mantém comum a países desenvolvidos e em desenvolvimento: as disparidades na atenção básica conforme a raça do paciente. De acordo com a mesma Pesquisa Nacional de Saúde, o percentual de brasileiros que nunca mediram a pressão arterial é de 3%. Somente entre as pessoas autodeclaradas brancas, o percentual é menor que a média: de 1,8%. Se comparados a pardos (4,1%) e negros (3,5%), os números, no mínimo, dobram.
Diferentemente do que as pesquisas indicam, a taxa de diagnósticos entre brancos (22,1%), pardos (20%) e negros (24,2%) é próxima, mas não significa acesso ao tratamento. De acordo com os dados, apenas 78,2% da população que se declara negra têm o diagnóstico de hipertensão e havia tomado medicamento para a doença nas últimas duas semanas anteriores à data da pesquisa. A mesma informação contabiliza 84,5% da população branca hipertensa e medicada.
Tratamentos devem ser diferenciados
Um atendimento diferenciado cultural e etnicamente é apontado como solução para o problema, de acordo com especialistas. Durante o Congresso Canadense Cardiovascular de 2014, em Vancouver, trabalho apresentado por um grupo de cientistas liderado por Asim Cheema, do Hospital St. Michael's, em Toronto, apontou que grupos étnicos distintos têm diferenças amplas tanto para a prevalência quanto para a conscientização dos fatores de risco cardiovascular. Segundo Cheema, a descoberta destaca a necessidade de programas de educação e intervenção especialmente concebidos para cada grupo.
Eles analisaram 3 mil pacientes em uma clínica de cuidados urgentes que funciona em uma área etnicamente diversificada de Toronto. Os participantes foram convidados a identificar a sua etnia e, a partir de uma lista de 20 atividades ou condições, identificar quais acreditavam contribuir para a doença cardiovascular. “Como visto em pesquisas anteriores, os de ascendência africana ou do Sul da Ásia são mais propensos a ter pressão alta e diabetes, e, portanto, estão em maior risco de doença cardíaca e acidente vascular cerebral do que a população em geral.”
O trabalho confirmou mais um fator: essa população não tem acesso às informações mais básicas sobre esses problemas. Por exemplo, apesar de negros e sul-asiáticos relatarem prevalência muito maior de diabetes do que os brancos, eles eram muito menos propensos a saber que a doença metabólica é um fator de risco para complicações cardíacas e acidente vascular cerebral. “Mas o fato é que uma proporção significativa desses problemas pode ser evitada. É importante que todas as etnias estejam cientes dos comportamentos de saúde necessários para preveni-las”, ressalta Cheema.
Ele acrescenta que a melhoria da consciência é importante, mas há também a necessidade de criar estratégias de intervenção que forneçam informações sobre a saúde do coração culturalmente apropriadas.
Planos privados
A opinião é totalmente compartilhada por Alan Zaslavsky, professor de política de atenção à saúde, da Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos. Ele conta que disparidades significativas nos atendimentos intermediários de saúde persistiram para os negros em comparação aos brancos na maior parte dos Estados Unidos, de acordo com pesquisa divulgada por ele em dezembro de 2014, no New England Journal of Medicine. Porém, o melhor resultado para diminuição dessas lacunas foi percebido em análises de planos de saúde que buscaram melhorar a qualidade do serviço prestado em geral.
Essas iniciativas também foram associadas com taxas reduzidas de atendimentos de urgência e internações por clientes que tinham diabetes e com incidência reduzida de infarto agudo do miocárdio. “No entanto, pela primeira vez, um trabalho confirma que as iniciativas de melhoria da qualidade reduziu disparidades raciais e étnicas em resultados intermediários para condições crônicas comuns.”
Brancas perdem peso mais fácil
Uma possível explicação para a observação de que as afro-americanas geralmente perdem menos peso do que as caucasianas quando praticam os mesmos exercícios e seguem a mesma dieta foi relatada em estudo publicado no International Journal of Obesity. O trabalho sugere que as baixas exigências energéticas em afro-americanas pode ser um fator importante para o fato. A equipe do cientista James DeLany, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, comparou alterações no peso corporal e no gasto energético total diário de afro-americanas e caucasianas durante um processo de perda de peso que durou seis meses, incluindo restrição calórica e aumento da atividade física.
Durante todo o julgamento, a adesão à atividade física e a ingestão de energia prescritas foram quase idênticos entre os dois grupos étnicos. A perda de peso foi maior em participantes que realizaram atividade física se comparadas às que só seguiram a dieta; mas, em ambas as condições, as afro-americanas mostraram um nível bastante inferior de perda de peso. A equipe calculou que elas têm significativamente necessidades diárias de energia mais baixas do que as caucasianas, o que resulta, em última análise, na menor perda de peso. A obesidade é fator de risco para uma série de doenças cardiovasculares, como o acidente vascular cerebral e o infarto.