Saúde

Cientistas dos EUA desvendam a exótica replicação dos vírus de RNA

Estudo pode ajudar no desenvolvimento de novas terapias

Bruna Sensêve

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Em uma única família viral, estão patógenos que até hoje intrigam a ciência. As infecções que provocam podem ser letais, e não há qualquer intervenção comprovadamente eficaz contra eles. Os micro-organismos que causam o sarampo, a raiva, a estomatite vesicular e o ebola — hoje a única das enfermidades com uma opção experimental de terapia por meio de anticorpos monoclonais — pertencem a uma classe diferenciada, a dos vírus de RNA mononegavirais (RNA NNS). A forma como se replicam dentro do hospedeiro pode ser um diferencial do grupo e um caminho em busca de tratamentos eficazes para as doenças causadas por eles.


Essa foi a hipótese que norteou o trabalho do professor Saveez Saffarian e de Xiaolin Tang, aluna de doutorado dele. A dupla de pesquisadores da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, optou por uma investigação inusitada. Em vez de médicos ou biólogos, lideraram uma equipe de físicos que realizaram uma análise matemática das replicações virais. Eles acreditam que a descoberta desse mecanismo, detalhado na edição de hoje da revista científica PLOS Computational Biology, pode ser um possível alvo para novas terapias nos próximos 10 anos.

O vírus escolhido para a pesquisa causa a estomatite vesicular, doença que não chega a acometer humanos, mas animais de grande porte, como bois, cavalos e porcos. A partir daí, foram realizadas 20 mil simulações computadorizadas de diferentes formas de replicação desse patógeno. Após a longa experimentação, os pesquisadores chegaram ao mecanismo “fundamental” usado pelo vírus para fazer cópias de si mesmo.

Segundo Saffarian, o mapa genético desse micro-organismo é um filamento de RNA coberto por proteínas, como contas em um colar (Veja infográfico). Enzimas polimerases da célula deslizam nesse cordão até que achem uma proteína correspondente. Elas são capazes de ler e transcrever o material genético viral (RNA) e, a partir do encontro, podem sintetizar o RNA mensageiro (mRNA) e proporcionar as cópias de que o vírus tanto precisa.

Infectologista do Hospital Sírio-Libanês, Esper Kallas explica que os vírus, de uma forma geral, aumentam de quantidade utilizando um mecanismo da célula hospedeira. “Todos são parasitas celulares, sozinhos não conseguem se multiplicar, precisam de uma célula. Daí vem até a discussão se são um organismo vivo ou não, por exemplo.” No caso do patógeno que provoca a estomatite vesicular, os modelos matemáticos produzidos pela equipe de Saffarian indicaram que há diferenças nesse processo de multiplicação da célula. “Ele depende dos ingredientes que estão dentro da célula para fazer mais partículas virais. Os pesquisadores perceberam que esse vírus usa os ingredientes de uma maneira que não tinham visto em outros”, explica Kallas.

Alvo de drogas
O processo foi intitulado por Saffarian como modelo de transcrição exótico. “O deslizamento proposto é um novo mecanismo fundamental e específico para os vírus de RNA NNS e pode ser um alvo para drogas antivirais no futuro”, acredita. Ele espera que, para chegar a esse estágio, cientistas farmacêuticos se interessem pela descoberta e prossigam com o trabalho, ainda que seja necessária uma dedicação de mais 10 anos, estima, para o desenvolvimento de medicamentos.

O autor sênior do artigo compara sua descoberta com a compreensão do funcionamento da protease para o HIV — no caso, essencial na replicação do vírus e, consequentemente, alvo para medicações inibidoras de protease que compõem o coquetel terapêutico usado hoje contra a Aids. Nessa direção, Saffarian, quando o assunto são vírus de RNA, defende o maior investimento no desenvolvimento de antivirais do que de vacinas.

Essencialmente, os vírus de RNA mutam rapidamente para diferentes proteínas expostas na superfície viral, alvo dos anticorpos usados nas vacinas para atacar e bloquear a infecção. Com isso, os imunizantes são menos eficazes que o ideal. “A única maneira de criar terapias antivirais estáveis contra vírus de RNA é alvo de várias regiões dentro da maquinaria de replicação”, acrescenta Saffarian.

Eficaz em macacos
Fruto de parceria entre o governo dos EUA e instituições de pesquisa, o “coquetel” de anticorpos monoclonais conseguiu evitar a contaminação de macacos pelo vírus ebola. A equipe de pesquisadores utilizou células clonadas do sistema imunológico do animal, consideradas mais eficientes por serem sempre iguais entre si. Esses anticorpos foram administrados em macacos rhesus uma hora após a infecção pelo vírus. Todos os animais sobreviveram. Os anticorpos usados são desenvolvidos por meio de um sistema que utiliza as plantas do tabaco como base. Esse processo permite a redução de custos e aumenta a produção.