O risco de transmissão de leishmaniose em cavernas de Minas Gerais, algumas delas situadas em áreas de intensa atividade turística, foi confirmado pela tese de doutorado do biólogo mineiro Gustavo Mayr de Lima Carvalho, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Biologia Parasitária do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Intitulada “Estudos taxonômicos e bioecológiocos de flebotomíneos (Diptera: Psychodidae) coletados em províncias espeleológicas brasileiras”, a pesquisa foi vencedora do Prêmio Anual IOC de Teses Alexandre Peixoto 2014.
Gustavo Mayr descobriu a incidência de flebotomíneo – inseto causador da doença, conhecido nacionalmente como mosquito-palha –, infectado com o parasita do gênero Leishmania, em cinco cavernas do Parque Estadual do Ibitipoca, na Zona da Mata, e uma em Lassence, Região Norte de Minas. Foram analisados cerca de 5 mil modelos nas duas localidades, sendo que 1% estava contaminado. O biólogo foi indicado para concorrer, ainda, ao prêmio de nível nacional da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O estudo foi desenvolvido para descobrir se há a presença de mosquitos-palha infectados nas cavernas, já que a leishmaniose era considerada uma possibilidade, por conta de os ambientes serem o refúgio para animais silvestres, como raposas e lobos, que são reservatórios naturais do parasita Leishmania, causador da doença. Assim, os flebotomíneos que vivem nesses espaços podem ser infectados ao sugar o sangue desses animais e depois transmitir o parasita para as pessoas, por meio da picada.
A hipótese foi confirmada pela pesquisa, que encontrou insetos portadores de Leishmania braziliensis, causadora da leishmaniose tegumentar, e de Leishmania infantum chagasi, que provoca a forma visceral da doença. “Estas são duas espécies importantes no ciclo de transmissão das leishmanioses no Brasil, o que mostra que é preciso cautela na visita e exploração das cavernas”, afirma Gustavo, que foi orientado por Reginaldo Peçanha Brazil, pesquisador do Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC, e co-orientado por José Dilermando Andrade Filho, pesquisador e curador da Coleção de Flebotomíneos do Centro de Pesquisa René Rachou (Fiocruz-Minas). Segundo os pesquisadores, para prevenir a infecção, é importante utilizar itens de proteção individual, como repelente, calça e blusa de manga comprida.
A pesquisa durou cerca de quatro anos e contou com um ano de trabalho de campo em Ibitipoca, com visitações durante uma semana por mês, e dois anos em Lassance, feitas também no decorrer de sete dias mensais. De acordo com o biólogo, os flebotomíneos têm o costume de picar ao entardecer e durante a noite. Como o ambiente espeleológico é pouco, ou nada, iluminado, foi necessário analisar se os parasitas picam também durante o dia. “Colocamos armadilhas nas cavernas para que os insetos fossem capturados. A maior quantidade foi encontrada nas partes mais rasas dos locais. Quanto mais profundo as armadilhas foram instaladas, menos flebotomíneos foram encontrados.” O cientista afirma que as espécies achadas no interior dos estabelecimentos permaneceram lá por terem seguido algum animal vertebrado que pudesse ser um hospedeiro para o parasita.
Foram capturadas cerca de 5 mil espécies, que, para serem analisadas, tiveram que ser divididas em grupos de 10 insetos. Do total, foram constatados apenas cinco grupos com a infecção natural. “Apesar de parecer pouco, esse é um número muito grande, visto que é muito difícil encontrar um flebotomíneo infectado”, explica o biólogo. O especialista afirma que um dos requisitos para desenvolver o estudo foi verificar se havia algum ser vertebrado diagnosticado com leishmaniose nas regiões em que o trabalho foi realizado. “Descobrimos que, na região do Parque do Ibitipoca, não havia ninguém infectado. Porém, em Lassance, descobrimos alguns casos registrados”, afirma.
Como cavernas são excelentes para gerar um mercado de turismo ecológico, um grande número de pessoas entra em contato com esses insetos. Mas o especialista explica que essa descoberta não deve ser um alarde. Na região de Ibitipoca, por ser um local com altitude elevada, não há tantos insetos presentes na caverna. “Para se prevenir, é necessário ir a essas visitas ecológicas com calças e blusas de manga comprida e passar um repelente para distanciar, não somente o flebotomíneo, mas insetos em geral.” Segundo a assessoria de imprensa do Parque Estadual do Ibitipoca, o “Instituto Estadual de Florestas (IEF) não recebeu o relatório final do estudo e, por isso, ainda não desenvolve nenhum tipo de trabalho de conscientização. Nunca houve nenhum caso de incidência da doença nas dependências do parque, mas, de posse do relatório e de acordo com suas recomendações, ações de conscientização poderão ser realizadas”.
Para o orientador Reginaldo Peçanha, os estudos nas cavernas com esse viés de entomologia médica, que analisa os insetos relacionados ao homem, às plantas, aos animais e ao meio ambiente, são muito raros. “Essa tese mostra que o ecótopo cavernas, aqui no Brasil, ainda é muito pouco estudado em relação aos aspectos biológicos. Os conhecimentos adquiridos são de grande importância para a ciência, não só na descrição de novas espécies, mas também como um sistema ecológico bastante complexo, que precisa de análises consistentes”, destaca.
Novas espécies
Reginaldo Peçanha afirma que os três novos exemplares encontrados no momento em que Gustavo Mayr estava desenvolvendo o trabalho vão ampliar o reconhecimento do biólogo para nível internacional. “O encontro de novas espécies é uma consequência da dedicação de quem trabalha na área e é sempre um prestígio poder dar nome a um organismo. De certa forma, a pessoa entra para a história. No passado, grandes números de espécies brasileiras eram descritas por pesquisadores estrangeiros, mas, hoje, os pesquisadores brasileiros são capazes fazer as descobertas, o que é de grande importância para qualquer instituição nacional.”
Um dos exemplares descobertos já estava no acervo da IOC, porém, ainda não tinha sido estudado morfologicamente. A espécie foi encontrada em uma caverna na cidade de Arraias, no Tocantins, em 1956. Além disso, outras duas espécies tiveram seu primeiro registro em cavernas de diferentes localidades de Minas Gerais. Em Lassance, os pesquisadores descreveram a espécie denominada Evandromyia spelunca. Já no município de Diamantina, um inseto capturado pelo pesquisador Ricardo Andrade Barata e enviado para análise deu origem à espécie Lutzomyia diamantinensis. Todas foram adicionadas à Coleção de Flebotomíneos da Fiocruz–Minas.
Ao contrário do que muitos pensam, a leishmaniose não é contagiosa. A doença é causada por parasitas que vivem e se mutiplicam nas células do sistema de defesa das pessoas. Existem os tipos tegumentar, que causa feridas na pele, e visceral, que se insere em vários órgãos internos, principalmente no fígado, no baço e na medula óssea. O diagnóstico é feito por meio de exames clínicos e laboratoriais e a doença pode ser tratada com medicamentos adequados.
Gustavo foi aluno de iniciação científica e de mestrado na Fiocruz-Minas. Segundo ele, o doutorado no IOC/Fiocruz foi uma oportunidade de enriquecer ainda mais sua formação. “Tive a oportunidade de desenvolver minha tese em uma instituição altamente qualificada para formar pesquisadores. As cavernas são um ambiente difícil para trabalhar e nunca se sabe o que será descoberto durante a pesquisa. Para fazer ciência, é preciso arriscar, mas também é necessário ter experiência e orientação. Além disso, é muito importante gostar do que se faz. Quando se tem tudo isso junto, o esforço é recompensado”, afirma.
CICLO DA LEISHMANIOSE
O flebotomíneo causador da doença é a fêmea, que precisa de sangue para complementar a dieta e pica, principalmente, os animais silvestres, como roedores, cachorros e raposas, que podem atuar como reservatórios do parasita. Ao picar o animal que tem o parasita, a fêmea retira sangue contaminado por Leishmanias, que se desenvolvem e se multiplicam no inseto, sendo transmitidas no momento em que o mosquito-palha pica outro hospedeiro.