Saúde

Até 20% dos adolescentes e adultos jovens já experimentaram a automutilação

Associação Americana de Psiquiatria estuda considerar o comportamento como transtorno psiquiátrico

Carolina Cotta

"...eu estava me apunhalando, realmente me atacando com a chave de fenda e aquela dor física que eu estava causando foi melhor que qualquer droga que o hospital tinha. Estava fazendo todo o resto ir embora.A dor, a dor física, estava fluindo pelas minhas veias como heroína, e eu estava entorpecida, imune a todo o resto. Eu não pude sentir nada além de dor, e eu sabia que eu tinha achado um jeito de me salvar" - Trecho do livro Willow, de Julia Hoban
“Não lembro da primeira vez que me cortei, mas eu sentia uma angústia muito grande e não sabia como lidar com aquilo. Em algum momento, comecei a me arranhar e depois a me cortar. Nunca foi algo para chamar atenção, eu escondia. Também não sentia dor, mas aliviava meu sofrimento.” As lembranças de adolescência da bióloga Carolina Costa, hoje com 25 anos, ilustram a triste realidade das pessoas que se automutilam para enfrentar sentimentos com os quais não conseguem mais lidar. Não existem estudos epidemiológicos no Brasil sobre a incidência de autolesão, mas pesquisas feitas no exterior mostram que a prática vem crescendo nos últimos anos. Dados mundiais, considerando apenas adolescentes e adultos jovens, mostram que de 17% a 20% já tiveram, em algum momento da vida, tal comportamento.


Segundo a psiquiatra da infância e da adolescência Jackeline Giusti, responsável pelo ambulatório de adolescente e automutilação do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), na quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria, o DSM-5, a automutilação é classificada como transtorno psiquiátrico com necessidade de estudos futuros. “Há uma tendência em considerar esse comportamento como um transtorno psiquiátrico por si só, e não mais como comportamento relacionado a outros problemas”, adianta a especialista. Já na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), ela é tida como transtorno do controle do impulso não específico, ou como um dos sintomas de transtornos de personalidade como o borderline.

O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), classificado pelo psicanalista Adolph Stern como uma patologia entre a neurose e a psicose que gera uma disfunção no metabolismo cerebral, desintegrando o ego e gerando um sentimento de perda desesperador, é o caso da personagem de Débora Falabella na minissérie Dupla identidade, da Globo. Na trama, a produtora de moda Ray arranha os braços até sangrar muito quando o namorado Edu, o psicopata serial killer vivido por Bruno Gagliasso, some.

Por outro lado, segundo Giusti, há a tendência de desvincular a automutilação de transtornos de personalidade, como o borderline. “Transtorno de personalidade não tem muito tratamento, seu controle não é algo direto. Tem muito paciente que se automutila e não é borderline. Primeiro, porque adolescente nao tem transtorno de personalidade, porque sua personalidade ainda não está formada. Tem, no máximo, traços”, explica.

A automutilação geralmente começa na adolescência e é mais comum nessa faixa etária, mas pode se prolongar até a vida adulta. Um estudo australiano acompanhou, por oito anos, pessoas que começaram a se automutilar ainda jovens e revelou que sintomas depressivos e suporte familiar fraco seriam fatores determinantes dessa persistência do comportamento. O auto-flagelo na adolescência é tema do recém-lançado livro Willow (Editora LeYa), da norte-americana Julia Hoban. Voltado para o público infanto-juvenil, o romance conta a história da personagem que dá nome ao livro, que começa a se cortar para se livrar do sofrimento e da culpa de ter causado a morte dos pais, que faleceram em um acidente de carro em que ela dirigia.

O PANO DE FUNDO
A pessoa que se automutila, com frequência, refere-se a uma tensão anterior. Segundo a psiquiatra Jackeline Giusti, o ato de se machucar, se morder, se bater – o mais comum é se cortar e se queimar – dá um alívio a quem o pratica. Isso porque o corte, ou qualquer outra lesão no corpo, libera endorfina, mesmo hormônio que dá sensação de bem estar após o exercício aeróbico, por exemplo. Alguns estudos sugerem que quem se automutila liberaria, em função do estresse que antecede o ato, uma quantidade maior do hormônio que outras pessoas. Outra hipótese é a de que uma pré-disposição genética poderia estar relacionada a uma maior liberação de endorfina, o que provocaria uma sensação de bem-estar e não de dor.

Carolina Costa começou a se cortar aos 12 anos. Naquela época, em função da profissão da mãe, se mudava várias vezes de cidade ou de escola, o que, para ela, foi determinante para se tornar retraída e tímida. “As mudanças trouxeram muitos problemas. Não criava raiz, não criava vínculos, não tinha muitos amigos para compartilhar questões mais pessoais”, lembra. Discussões na família ou mesmo uma cena vista na televisão que a entristeciam começaram a ser gatilhos para o ato de se arranhar e depois experimentar cortes mais elaborados, com tesoura, compasso e lapiseira, até passar para a faca. “Não tinha muito padrão. Algumas vezes, os cortes eram mais profundos; em outras, mais superficiais. Dependia da angústia que eu sentia. A maioria das vezes, fazia cortes rápidos e repetitivos no mesmo lugar. E eu não sentia dor”, lembra.

A preocupação com a ansiedade de Carolina fez a mãe levá-la a um médico ortomolecular, que pediu para ficar sozinho com a adolescente, na época com 14 anos. “Aquilo me deu confiança para contar da angústia que eu sentia e com a qual não sabia lidar.” O acolhimento do especialista foi marcante para a paciente, que se lembra de ele explicar que pessoas depressivas como ela, e com transtorno de ansiedade, seriam mais sensíveis e intolerantes a injustiças, que não conseguiam ser superficiais. Segundo Giusti, é comum que a automutilação esteja mesmo associada a depressão e ansiedade, daí a terapia ser essencial na abordagem do problema. Carolina parou de se cortar com 17 anos, mas se tratou até os 19 anos. Diminuiu a frequência da automutilação desde que começou a fazer a terapia e a se medicar.

Segundo Fátima Vasconcellos, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e diretora médica do Hospital Geral da Santa Casa do Rio de Janeiro, o tratamento é com terapia cognitivo-comportamental e medicamentos antidepressivos, como inibidores seletivos de recaptação de serotonina. “É fundamental que as pessoas reconheçam que isso é uma doença e, principalmente, que é tratável”, alerta. Para a especialista, os pais devem ficar atentos para levar os filhos a um especialista se desconfiarem de uma automutilação. Também é preciso observar as comunidades das redes sociais que dão apoio a esses adolescentes, mas também trocam experiências de como se mutilar. “Infelizmente, a internet é uma extraordinária ferramenta tanto para o bem quanto para o mal. Sempre tem pessoas estimulando comportamentos autodestrutivos, inclusive orientado como fazê-lo de forma mais eficiente”, chama a atenção Fátima.

A forma como esse problema é abordado pelos adultos é muito importante. Educadores que desconfiarem do comportamento em alguma criança ou adolescente devem procurar os responsáveis. Segundo Giusti, é a oportunidade de saber se a família está enfrentando algum problema em casa que possa estar desencadeando o comportamento. Mas o mais importante é não reforçar o estigma de que o paciente faz aquilo para chamar a atenção, porque geralmente ele faz escondido, mesmo que em um segundo momento possa usar aquilo para manipular os pais. “Se o pais descobrirem que seu filho está se cortando, a regra é básica: olhe para ele como se ele estivesse chorando e pergunte o motivo do sofrimento. O problema não é o corte. Ninguém feliz se corta. É preciso descobrir o sentimento que está por trás daquilo”, alerta a psiquiatra.