Em uma temporada pela Europa, o ainda jovem Nando foi ao Sul da Itália conhecer Stromboli, um vulcão ativo em cuja base teimosos e destemidos pescadores e pequenos comerciantes decidiram se instalar. A subida até o topo da montanha era íngreme e, apesar de não estar passando por um surto de esclerose múltipla, doença crônica do sistema nervoso que há pouco tinha descoberto, ficou claro que seu desempenho atlético estava abaixo do habitual. Lá do alto, Nando sentiu uma impotente, mas serena, pequenez. “A desproporção de força e poder entre mim e aquilo que presenciei era tal que assumir minha inferioridade era óbvio e inevitável. Senti-me pequeno ante a realidade. Muito pequeno, e minhas dores e mazelas me pareceram insignificantes e absolutamente desprezíveis”, conta o ator, palhaço e escritor Nando Bolognesi, hoje com 46 anos. A história dá nome ao livro que lançou recentemente, Um palhaço na boca do vulcão (Editora Grua), um relato autobiográfico onde conta sua vida a partir do diagnóstico da esclerose múltipla, cujos trechos você confere nesta página.
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Passados alguns meses, já decidido a se tornar ator, fazia um estágio na Fiat, em Turim, quando percebeu ter perdido a força em uma das mãos. Voltou ao Brasil para fazer uma série de exames e foi diagnosticado com esclerose múltipla. O impacto disso em sua vida só foi percebendo aos poucos. Ele lembra de retornar à Europa tendo em mente que se tratava de uma doença que se manifestaria em surtos, quando tomaria uma medicação específica. Só os anos deram a Nando a real gravidade da sua doença, que com o passar dos anos lhe tirou a força das pernas e o deixou dependente de duas muletas. De volta ao Brasil, de forma definitiva, Bolognesi cursou a Escola de Arte Dramática da USP, atuou em teatro e cinema e transformou-se no palhaço Comendador Nelson, fazendo parte dos grupos Doutores da Alegria, Jogando no Quintal e criando o Fantásticos Frenéticos.
Barreiras superadas
O avanço da doença foi lento, mas persistente. Desde o diagnóstico em 1990, eram de dois a três surtos por ano, quase sempre roubando a força, a sensibilidade e a coordenação das pernas. “Sofri algumas crises que afetaram minhas mãos e uma, a visão. Essa média de dois a três ocorrências por ano, ao longo desses mais de 20 anos, sofreu variações. Tenho passado por anos mais difíceis e outros em clima de recreio”, lembra. Logo que voltou ao Brasil em 1991, Nando teve um período de dois anos de trégua. Depois disso, em apenas um ano, entre 1993 e 1994, passou por quatro ou cinco episódios. “Era penoso caminhar, as pernas ficavam bobas e praticamente não as sentia do joelho para baixo. Os surtos foram se tornando cada vez mais severos e, num certo fim de semana, durante um espetáculo, minhas pernas debilitadas pelo surto me traíram e me levaram ao chão. Humilhação. Chorei escondido. A barra estava pesada demais. Por alguns dias me deprimi”, lembra o ator.
Quando já não era mais possível enfrentar os palcos ele tentou um concurso. Passou, mas foi barrado no exame físico. Foi quando teve a ideia de levar aos palcos a sua história real, com o espetáculo Se fosse fácil não teria graça, que deu origem ao livro onde as lembranças da infância se mesclam com o cotidiano do adulto. A nova realidade que se impõe, a perda acentuada da coordenação e força das pernas que o obriga a usar uma bengala, o fantasma da incontinência urinária decorrente da doença, são tratados de maneira serena e sóbria, sem perder a graça e a leveza no texto. Os tratamentos não ortodoxos (como o chá de um índio), o encontro com a companheira, o transplante de medula, um tratamento tipo como experimental pelo qual passou em 2009, e a chegada do filho são algumas das passagens da autobiografia reflexiva do artista. “A doença me fez valorizar o presente. No início eu me preocupava porque já não jogava futebol como antes. Como era bobo. Apesar de ser um livro que conta sobre a doença, a ideia é simplesmente essa: contar a história. Nunca quis que o livro e o espetáculo fossem uma espécie de autoajuda”, reflete.
UM FIO DE ESPERANÇA
O diagnóstico da esclerose múltipla é difícil, pelo fato de a doença não ter um quadro clínico típico, podendo ser confundida. Não há um exame específico, o que restringe o diagnóstico ao método de exclusão e à análise da história clínica. Mais recentemente, achados de imagem, mesmo antes do surgimento dos primeiros surtos, permitem o início do tratamento precoce. “Até há dois anos só podíamos fechar o diagnóstico depois de dois surtos confirmados”, lembra a neurologista e doutora em neurologia Cristiane Franklin Rocha Cristiane. “A tendência, para o futuro, é tratar a doença baseado nos exames de imagem, antes da manifestação clínica, permitindo uma intervenção precoce e evitando as sequelas.”
A esclerose múltipla é uma doença inflamatória e dismielizante, por atacar a bainha de mielina, uma espécie de capa que reveste os neurônios, causando incapacidade neurológica. Por algum motivo ainda não esclarecido, o sistema imune não identifica a bainha de mielina como sendo do próprio organismo e passa a agredi-la. Daí ser considerada uma doença autoimune. Em Belo Horizonte, a prevalência é de 19 pacientes para cada 100 mil pessoas – na Europa esse número é três vezes maior. Em países com menos insolação e menores índices séricos de vitamina D, a doença é mais prevalente, o que sugere uma relação dessa vitamina com o problema. Também há suposições de que em lugares de baixo nível sanitário a prevalência seja maior.
A esclerose múltipla é três vezes mais comum em mulheres. Também estão mais suceptíveis pessoas da raça branca e idades entre 20 e 40 anos. Estima-se que existam, no mundo, mais de 3 milhões de portadores da doença, que só tem tratamento em um dos seus três tipos: o surto-remissivo, ou recorrente remitente, que atinge a maioria dos pacientes. O tratamento é feito por meio de medicamentos injetáveis e, mais recentemente, remédios orais mais potentes, que revolucionaram a terapêutica. Alguns estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo a especialista, nesse tipo a doença se manifesta por meio de surtos, caracterizados por um sintoma novo que dura mais de 24 horas. Os mais comuns são dormências, alteração no equilíbrio, fraqueza nos braços e nas pernas, alteração na visão (visão dupla, embaçada ou baixa de visão). Geralmente, os surtos deixam sequelas. “A maioria dos pacientes começa a doença assim e em 40% deles ela progride, em 10 anos, para outra forma: a secundária progressiva. Nesse tipo, a que hoje acomete Nando, a doença deixa de ser aguda para se tornar crônica, sempre progressiva. O terceiro tipo é a primária progressiva, que representa 10% dos casos.