“Mulher de má pinta é a que mais cara pinta”, dizia um antigo ditado. A maquiagem já foi associada a moral duvidosa, um artifício para esconder falhas de caráter. Em 1860, Eugène Rimmel lançou uma máscara para pintar os cílios, mas o produto teve que esperar algumas décadas para vencer as barreiras sociais brasileiras. Pintar o rosto era associado à falsidade e nada tinha a ver com o ideal de pureza feminina. As moças raramente eram autorizadas a usar o carmim e o batom, também pouco recomendados às viuvas. As cariocas, no entanto, estavam mais ligadas às tendências internacionais e tinham menos desconfiança com a maquiagem.
Ao longo dos séculos, o Brasil vivenciou diferentes padrões de beleza e de estilo. Passou pelo glamour e pela sensualidade da vedete, a formosura do “brotinho”, a valorização do corpo de cintura fina e quadris largos e o advento das top models, mais altas e magras. O país viu a passagem do bicho grilo, o hippie à brasileira, a descontração da Jovem Guarda e a cuidadosa rebeldia dos bad boys. Essas são algumas das características analisadas pela historiadora Denise Sant’Anna. Ela é especialista em história do corpo e autora do livro História da beleza no Brasil.
Na passagem do século 19 para o 20, as atenções estavam voltadas para as tendências burguesas e parisienses. Para estar na moda, era preciso sofrer com o clima tropical e aderir às roupas fabricadas em pesados tecidos e que cobriam a maior parte do corpo. Muitos homens eram adeptos do dandismo, movimento que buscava se diferenciar da antiga aristocracia e que foi marcado pelo uso de modernos e elegantes ternos. Os chapéus eram itens quase essencias e de boa ajuda para esconder a calvície. Já os cabelos femininos só poderiam ser soltos na intimidade do lar, e o foco dos cuidados com a aparência estava na vestimenta e na postura, auxiliada por espartilhos que endireitavam o tronco. Os gestos deveriam ser discretos e o flerte era disfarçado no balanço dos leques. Tempos em que “belleza” era grafado com dois “eles” e o eufemismo para feiura era “carência de elegância”.
Corpos femininos malhados e definidos, tão valorizados atualmente, seriam impensáveis quando o ideal era a delicadeza. Os exercícios físicos eram considerados inadequados. “Não foi fácil nem rápido aceitar a imagem de mulheres praticando esportes”, observa Sant’Anna. Foi apenas na década de 1980 que a atividade física entrou em alta. As roupas adotaram estilo mais esportivo e as academias ganharam um ar mais feminino. Nos anos 1990 e 2000, começa a se consolidar uma “beleza bombástica”, impulsionadas pelo funk e pelas musas do carnaval. Entram em destaque as dietas, os corpos sarados e as cirurgias plásticas. É o auge do direito a interferir no próprio corpo, seja por meio de exercícios, seja pelas intervenções médicas. Coexistindo com esse movimento, mas em direção oposta, também ocorre a valorização da beleza plus size.
Algumas décadas antes, o famoso rebolado de Elvis Presley anunciava inovações na estética. “O homem que dormia de terno acordou com vestes de cores berrantes”, analisa a historiadora. É que a contestação hippie aboliu o laquê nos cabelos e a rigidez no comportamento. A vaidade masculina avançou muito com a Jovem Guarda, sobretudo no uso de acessórios, como anéis, colares e brincos. Na década de 1970, seria a vez da androginia de ídolos como David Bowie e, entre nós, Ney Matogrosso, dar as cartas, com consequências que ainda perduram no nosso jeito de ser.
Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a historiadora Denise Sant’Anna vem se dedicando a esmiuçar a relação das brasileiras com a vaidade e o corpo em livros como o recém-lançado História da beleza no Brasil. Ela considera que a beleza sempre foi considerada um dom divino e, ao mesmo tempo, algo que pode ser fabricado pelas mãos humanas. Mas essa relação mudou, principalmente em relação aos limites da “fabricação humana da beleza”. “Hoje, a ‘beleza dada’ não basta, não assegura, embora ainda ajude bastante”, opina.
O contexto histórico pode influenciar os padrões de beleza?
A história da beleza revela os sonhos e os temores mais marcantes de cada época. Por exemplo, a modernidade proposta na era JK pode ser lida nos elogios às silhuetas lépidas, leves, arrojadas e extremamente juvenis daqueles anos. De fato, os cuidados com a aparência expressam mudanças sociais que não se restringem ao plano estético. Outro exemplo: nos anos 1980, a necessidade de as mulheres concorrerem com os homens no mundo empresarial, assumindo cargos executivos até então reservados a eles, favoreceu um padrão de “beleza executiva” ligado à imagem da “mulher fera”, forte, competitiva e voraz. Daí, em parte, a valorização, desde então, das mulheres com corpos musculosos, ombros largos, boca grande e pernas longas.
O Brasil chegou a valorizar uma beleza genuinamente brasileira?
Até os anos 1960, era mais comum aparecer na imprensa o elogio das “belezas regionais”. Apreciava-se um rol de morenas de vários tipos e tamanhos (por exemplo, morena jambo, morena clara ou escura, assim como moça brejeira, mignon, cheinha de corpo, miudinha, redondinha etc.). Havia, também, a mistura entre padrões estrangeiros e gostos nacionais, assim como diferenças entre as classes sociais: no começo do século 20, por exemplo, eram principalmente as elites letradas que seguiam as modas europeias e, mais tarde, as referências vindas dos EUA. Com o cinema e, sobretudo, com o advento da televisão e de uma megaindústria de cosméticos, os padrões foram generalizados e, a seguir, ficou difícil dizer de onde vêm as referências da beleza, se elas são inventadas por elites ou pelas classes populares.
Como o preconceito, principalmente o racial, afetou a avaliação dos brasileiros sobre o que é belo?
Até meados do século passado, vários artigos na imprensa assumiam sem constrangimento a suposição de que a pele “alva” e os cabelos que em nada lembravam a carapinha eram sinônimos de beleza e civilidade. Depois da Segunda Guerra Mundial, a tendência foi a de não mais explicitar na imprensa o preconceito, mesmo quando ele ainda existia. A partir da contracultura nos anos 1970 e, sobretudo, com a emergência dos movimentos sociais em prol da igualdade de direitos entre raças e etnias, houve um interesse novo por uma “beleza multicultural”, expresso, várias vezes, nas artes e na moda. Mas a suposição de que os cabelos e a pele devem ser lisos ainda resiste à passagem do tempo, limitando, portanto, a possibilidade de apreciar uma gama mais variada de tipos e cores.
Os ideais de beleza se relacionam com o papel de homens e mulheres na sociedade?
A relação é constante. Por exemplo, nos anos 1950, a jovem devia ser, em geral, encantadora e possuir “um dono” (pai, namorado, noivo ou marido). Lembrava as flores, tendo, portanto, hora certa para desabrochar e murchar. Tinha pouca autonomia, devia ser estável, cheirosa, delicada, feito uma rosa. Isso combinava com o papel social das mulheres, mais limitado do que hoje, restrito ao espaço doméstico. Já os homens deviam exibir o garbo de quem era responsável por uma família e o progresso da nação. Mais tarde, com a liberação sexual e feminina, junto da voga unissex, o universo floral foi esmaecido com a emergência da mulher-gata, expressa numa beleza felina e flexível, detentora de uma sexualidade que se queria liberada. Era o padrão de beleza em moda nos anos 1960 e 1970, sugerindo uma aproximação inusitada entre os dois sexos, tanto no corpo como nos direitos e deveres.
Os homens conseguiram se libertar dos estereótipos de masculinidade?
A força e a robustez sofreram mudanças ao longo do tempo: o tórax do primeiro Tarzan de Hollywood é bem mais modesto do que o de qualquer herói dos atuais filmes de aventura. Falava-se em ter muque, mais do que em cultivar músculos em todo o corpo. Os pelos nos corpos masculinos não eram objeto de muitos cuidados, tudo muito diferente de hoje, quando a virilidade passou a combinar, também, com peitos, pernas e costas depilados. Mas os homens dificilmente se libertam da associação entre força física e poder.
Como ocorreu a transição de um ideal de beleza recatada e discreta para uma beleza sensual e independente?
Essa passagem só foi possível graças a mudanças amplas na sociedade, que vão desde a necessidade de integrar mais mulheres no trabalho fora de casa até o advento da pílula anticoncepcional. Houve, ainda, uma ascensão do “poder jovem”, posterior aos anos 1950, quando a juventude formou um mercado a parte, com seu modo de vestir, falar, comer e consumir. Foi quando “a birutice” e a descontração se tornaram signos não mais de doença, pobreza ou esquisitice, mas sim de modernidade, criatividade e sensualidade.
Beleza e envelhecimento sempre estiveram em lados opostos?
Na imprensa, falava-se mais em velhice do que em envelhecimento. As pessoas eram velhas ou moças. Nos anos 1940 e 1950, também existia a expressão “mulheres e homens maduros”. O amadurecimento era uma fase importante na vida. Mas envelhecer ainda não era um tema muito importante, pois os produtos de beleza destinavam-se principalmente aos jovens. Aparentar a idade que se tinha — quando esta era sabida com exatidão — já era uma qualidade invejada! Foi a partir dos anos 1960 que o envelhecimento se tornou um problema recorrente nas revistas e nos jornais do país. Desde então, os termos velhice e feiúra ganharam uma conotação muito forte. É quando, segundo a publicidade, qualquer um poderia rejuvenescer e, portanto, escapar daquilo que nem mesmo é mais aceito na linguagem corrente: ser velho.
As cirurgias plásticas deixaram de ser “uma vergonha a ser ocultada”?
Após a década de 1980, a ideia de que todos têm o direito de “corrigir” cirurgicamente o que é considerado sinal de velhice, feiúra ou mesmo de cansaço, conquistou sucesso em todas as classes sociais. Mudança que se deve aos progressos científicos e tecnológicos, à ampla publicidade que se faz eles, ao aumento da expectativa de vida no país e desse país ser eminentemente um lugar de gente jovem; mas deve-se também ao aumento do receio de ser considerado velho e inútil, de viver, portanto, o risco de ser “descartado” do mercado de trabalho e das relações amorosas.
Quando o peso se tornou uma preocupação?
Desde os anos 1960, o hábito de se pesar e de saber o próprio peso foi banalizado no Brasil. As balanças foram exibidas em drogarias, a seguir, ganharam os clubes de lazer, os banheiros das residências, enquanto que a preocupação com os regimes aumentou como nunca. Mais do que uma epidemia de obesidade, vive-se, desde então, uma pandemia de regimes. É quando o peso de cada pessoa passou a compor a sua identidade, coisa inédita até então! Antes, sabia-se que alguém era gordo ou magro pelo volume do corpo, pelo cinto que não fechava na cintura, pela fita métrica dos alfaiates e costureiras. Com o universo das balanças e das roupas compradas prontas, nós ganhamos um novo saber, um saber que é só nosso, uma nova parte de nossa identidade: somos tamanho 42, 44, 48… pesamos, 60kg, 70kg… Esses dados não constituíam as identidades de nossos bisavós.
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Na passagem do século 19 para o 20, as atenções estavam voltadas para as tendências burguesas e parisienses. Para estar na moda, era preciso sofrer com o clima tropical e aderir às roupas fabricadas em pesados tecidos e que cobriam a maior parte do corpo. Muitos homens eram adeptos do dandismo, movimento que buscava se diferenciar da antiga aristocracia e que foi marcado pelo uso de modernos e elegantes ternos. Os chapéus eram itens quase essencias e de boa ajuda para esconder a calvície. Já os cabelos femininos só poderiam ser soltos na intimidade do lar, e o foco dos cuidados com a aparência estava na vestimenta e na postura, auxiliada por espartilhos que endireitavam o tronco. Os gestos deveriam ser discretos e o flerte era disfarçado no balanço dos leques. Tempos em que “belleza” era grafado com dois “eles” e o eufemismo para feiura era “carência de elegância”.
Corpos femininos malhados e definidos, tão valorizados atualmente, seriam impensáveis quando o ideal era a delicadeza. Os exercícios físicos eram considerados inadequados. “Não foi fácil nem rápido aceitar a imagem de mulheres praticando esportes”, observa Sant’Anna. Foi apenas na década de 1980 que a atividade física entrou em alta. As roupas adotaram estilo mais esportivo e as academias ganharam um ar mais feminino. Nos anos 1990 e 2000, começa a se consolidar uma “beleza bombástica”, impulsionadas pelo funk e pelas musas do carnaval. Entram em destaque as dietas, os corpos sarados e as cirurgias plásticas. É o auge do direito a interferir no próprio corpo, seja por meio de exercícios, seja pelas intervenções médicas. Coexistindo com esse movimento, mas em direção oposta, também ocorre a valorização da beleza plus size.
Algumas décadas antes, o famoso rebolado de Elvis Presley anunciava inovações na estética. “O homem que dormia de terno acordou com vestes de cores berrantes”, analisa a historiadora. É que a contestação hippie aboliu o laquê nos cabelos e a rigidez no comportamento. A vaidade masculina avançou muito com a Jovem Guarda, sobretudo no uso de acessórios, como anéis, colares e brincos. Na década de 1970, seria a vez da androginia de ídolos como David Bowie e, entre nós, Ney Matogrosso, dar as cartas, com consequências que ainda perduram no nosso jeito de ser.
ENTREVISTA
Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a historiadora Denise Sant’Anna vem se dedicando a esmiuçar a relação das brasileiras com a vaidade e o corpo em livros como o recém-lançado História da beleza no Brasil. Ela considera que a beleza sempre foi considerada um dom divino e, ao mesmo tempo, algo que pode ser fabricado pelas mãos humanas. Mas essa relação mudou, principalmente em relação aos limites da “fabricação humana da beleza”. “Hoje, a ‘beleza dada’ não basta, não assegura, embora ainda ajude bastante”, opina.
O contexto histórico pode influenciar os padrões de beleza?
A história da beleza revela os sonhos e os temores mais marcantes de cada época. Por exemplo, a modernidade proposta na era JK pode ser lida nos elogios às silhuetas lépidas, leves, arrojadas e extremamente juvenis daqueles anos. De fato, os cuidados com a aparência expressam mudanças sociais que não se restringem ao plano estético. Outro exemplo: nos anos 1980, a necessidade de as mulheres concorrerem com os homens no mundo empresarial, assumindo cargos executivos até então reservados a eles, favoreceu um padrão de “beleza executiva” ligado à imagem da “mulher fera”, forte, competitiva e voraz. Daí, em parte, a valorização, desde então, das mulheres com corpos musculosos, ombros largos, boca grande e pernas longas.
O Brasil chegou a valorizar uma beleza genuinamente brasileira?
Até os anos 1960, era mais comum aparecer na imprensa o elogio das “belezas regionais”. Apreciava-se um rol de morenas de vários tipos e tamanhos (por exemplo, morena jambo, morena clara ou escura, assim como moça brejeira, mignon, cheinha de corpo, miudinha, redondinha etc.). Havia, também, a mistura entre padrões estrangeiros e gostos nacionais, assim como diferenças entre as classes sociais: no começo do século 20, por exemplo, eram principalmente as elites letradas que seguiam as modas europeias e, mais tarde, as referências vindas dos EUA. Com o cinema e, sobretudo, com o advento da televisão e de uma megaindústria de cosméticos, os padrões foram generalizados e, a seguir, ficou difícil dizer de onde vêm as referências da beleza, se elas são inventadas por elites ou pelas classes populares.
Como o preconceito, principalmente o racial, afetou a avaliação dos brasileiros sobre o que é belo?
Até meados do século passado, vários artigos na imprensa assumiam sem constrangimento a suposição de que a pele “alva” e os cabelos que em nada lembravam a carapinha eram sinônimos de beleza e civilidade. Depois da Segunda Guerra Mundial, a tendência foi a de não mais explicitar na imprensa o preconceito, mesmo quando ele ainda existia. A partir da contracultura nos anos 1970 e, sobretudo, com a emergência dos movimentos sociais em prol da igualdade de direitos entre raças e etnias, houve um interesse novo por uma “beleza multicultural”, expresso, várias vezes, nas artes e na moda. Mas a suposição de que os cabelos e a pele devem ser lisos ainda resiste à passagem do tempo, limitando, portanto, a possibilidade de apreciar uma gama mais variada de tipos e cores.
Os ideais de beleza se relacionam com o papel de homens e mulheres na sociedade?
A relação é constante. Por exemplo, nos anos 1950, a jovem devia ser, em geral, encantadora e possuir “um dono” (pai, namorado, noivo ou marido). Lembrava as flores, tendo, portanto, hora certa para desabrochar e murchar. Tinha pouca autonomia, devia ser estável, cheirosa, delicada, feito uma rosa. Isso combinava com o papel social das mulheres, mais limitado do que hoje, restrito ao espaço doméstico. Já os homens deviam exibir o garbo de quem era responsável por uma família e o progresso da nação. Mais tarde, com a liberação sexual e feminina, junto da voga unissex, o universo floral foi esmaecido com a emergência da mulher-gata, expressa numa beleza felina e flexível, detentora de uma sexualidade que se queria liberada. Era o padrão de beleza em moda nos anos 1960 e 1970, sugerindo uma aproximação inusitada entre os dois sexos, tanto no corpo como nos direitos e deveres.
Os homens conseguiram se libertar dos estereótipos de masculinidade?
A força e a robustez sofreram mudanças ao longo do tempo: o tórax do primeiro Tarzan de Hollywood é bem mais modesto do que o de qualquer herói dos atuais filmes de aventura. Falava-se em ter muque, mais do que em cultivar músculos em todo o corpo. Os pelos nos corpos masculinos não eram objeto de muitos cuidados, tudo muito diferente de hoje, quando a virilidade passou a combinar, também, com peitos, pernas e costas depilados. Mas os homens dificilmente se libertam da associação entre força física e poder.
Como ocorreu a transição de um ideal de beleza recatada e discreta para uma beleza sensual e independente?
Essa passagem só foi possível graças a mudanças amplas na sociedade, que vão desde a necessidade de integrar mais mulheres no trabalho fora de casa até o advento da pílula anticoncepcional. Houve, ainda, uma ascensão do “poder jovem”, posterior aos anos 1950, quando a juventude formou um mercado a parte, com seu modo de vestir, falar, comer e consumir. Foi quando “a birutice” e a descontração se tornaram signos não mais de doença, pobreza ou esquisitice, mas sim de modernidade, criatividade e sensualidade.
Beleza e envelhecimento sempre estiveram em lados opostos?
Na imprensa, falava-se mais em velhice do que em envelhecimento. As pessoas eram velhas ou moças. Nos anos 1940 e 1950, também existia a expressão “mulheres e homens maduros”. O amadurecimento era uma fase importante na vida. Mas envelhecer ainda não era um tema muito importante, pois os produtos de beleza destinavam-se principalmente aos jovens. Aparentar a idade que se tinha — quando esta era sabida com exatidão — já era uma qualidade invejada! Foi a partir dos anos 1960 que o envelhecimento se tornou um problema recorrente nas revistas e nos jornais do país. Desde então, os termos velhice e feiúra ganharam uma conotação muito forte. É quando, segundo a publicidade, qualquer um poderia rejuvenescer e, portanto, escapar daquilo que nem mesmo é mais aceito na linguagem corrente: ser velho.
As cirurgias plásticas deixaram de ser “uma vergonha a ser ocultada”?
Após a década de 1980, a ideia de que todos têm o direito de “corrigir” cirurgicamente o que é considerado sinal de velhice, feiúra ou mesmo de cansaço, conquistou sucesso em todas as classes sociais. Mudança que se deve aos progressos científicos e tecnológicos, à ampla publicidade que se faz eles, ao aumento da expectativa de vida no país e desse país ser eminentemente um lugar de gente jovem; mas deve-se também ao aumento do receio de ser considerado velho e inútil, de viver, portanto, o risco de ser “descartado” do mercado de trabalho e das relações amorosas.
Quando o peso se tornou uma preocupação?
Desde os anos 1960, o hábito de se pesar e de saber o próprio peso foi banalizado no Brasil. As balanças foram exibidas em drogarias, a seguir, ganharam os clubes de lazer, os banheiros das residências, enquanto que a preocupação com os regimes aumentou como nunca. Mais do que uma epidemia de obesidade, vive-se, desde então, uma pandemia de regimes. É quando o peso de cada pessoa passou a compor a sua identidade, coisa inédita até então! Antes, sabia-se que alguém era gordo ou magro pelo volume do corpo, pelo cinto que não fechava na cintura, pela fita métrica dos alfaiates e costureiras. Com o universo das balanças e das roupas compradas prontas, nós ganhamos um novo saber, um saber que é só nosso, uma nova parte de nossa identidade: somos tamanho 42, 44, 48… pesamos, 60kg, 70kg… Esses dados não constituíam as identidades de nossos bisavós.