A história de Brittany comoveu milhões de pessoas ao redor do planeta. Psicóloga, educadora e cheia de energia, ela recebeu a notícia de que tinha pouco tempo de vida um ano depois de seu casamento. Em janeiro, após sofrer enxaquecas muito fortes, a americana fez exames que constataram a presença de um tumor grande e difuso no cérebro. O primeiro prognóstico foi de 10 anos, mas após duas cirurgias, o câncer voltou ainda mais agressivo.
A rotina da jovem era marcada por fortes dores de cabeça e convulsões cada vez mais constantes. Recusando-se a tratamentos desnecessários – os próprios médicos deram a ela um prognóstico de seis meses –, Brittany resolveu aproveitar ao máximo o tempo que lhe restava e viveu cada segundo sabendo que poderia ser o último. Com o apoio da mãe e do marido, resolveu planejar a própria morte. A ex-moradora da Califórnia mudou-se para o Oregon, um dos quatro estados americanos onde o suicídio assistido é legal, e conseguiu uma receita médica de um coquetel letal. Os potinhos de remédio estavam sempre com ela.
A data marcada para morrer foi 1º de novembro. Antes disso, a jovem realizou seu último desejo e viajou com a família para o Grand Canyon. Na quinta-feira passada, Brittany surpreendeu novamente ao divulgar um outro vídeo, dizendo que poderia adiar o dia do suicídio assistido. Ela afirmou que ainda era capaz de sorrir e se divertir, mas também não descartou manter os planos originais, o que acabou ocorrendo. “Meu estado de saúde está se deteriorando rapidamente”, contou.
A morte de Brittany ocorreu no quarto que dividia com o marido, Dan. A mãe, Debbie, também estava presente, além de um médico, amigo da família. Na cama, a psicóloga escreveu um recado momentos antes de morrer, enviado para os amigos de Facebook. “O mundo é um lugar bonito, viajar foi meu melhor professor, meus amigos próximos e meus pais são os que mais se doaram para mim. Tenho, inclusive, um círculo de apoio ao redor da minha cama enquanto escrevo… Adeus, mundo. Espalhem boa energia. Vale a pena!”, concluiu.
O objetivo da jovem foi cumprido: ela conseguiu dar novo tom à polêmica discussão sobre o direito de pôr fim a uma doença intratável. Nos vídeos e nas mensagens que postou na internet, Brittany afastou a imagem normalmente associada a pacientes que, como ela, decidem quando e como morrer. Ainda que triste, conferiu serenidade a um assunto que costuma levantar opiniões acaloradas, baseadas em questões morais, éticas e religiosas.
“Minha família e eu chegamos a uma conclusão devastadora: não há tratamento que possa salvar minha vida e os remédios recomendados destruiriam o tempo que me sobra”, contou a jovem, em um artigo publicado no site da CNN. “Eu não queria esse cenário de pesadelo para minha família”, disse Brittany, referindo-se a uma internação hospitalar. “Então, comecei a pesquisar a morte digna. Essa é uma opção de fim de vida para pessoas mentalmente sadias, pacientes terminais com prognóstico de seis meses ou menos para viver. Isso me permitiria usar ajuda médica na hora da morte: posso pedir e receber a receita de uma medicação que eu possa ingerir por conta própria para acabar com meu processo de morte se isso se tornar impossível de lidar”, justificou.
Em um vídeo de seis minutos e meio divulgado pela organização Compassion & Choices, Brittany contou sua história e disse que, em vez de tratamentos invasivos, optou por aproveitar os dias que ainda tinha pela frente fazendo o que mais gosta: ficando na companhia do marido, da mãe, do padrasto e do cachorro e viajando.
“Mudança positiva”
Para a antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, desde o início, a postura de Brittany contou pontos a favor daqueles que defendem o direito ao suicídio assistido. “Foi um caso bastante sensível e delicado, mas importante para o debate. Os oponentes do suicídio assistido alegam que as pessoas tomam essa decisão em um ato intempestivo. Brittany transformou isso num processo feliz”, diz a pesquisadora.
Nos Estados Unidos, cada estado tem sua legislação e apenas quatro – Oregon, Montana, Vermont e Washington – permitem o suicídio assistido. Na Europa, a prática é legal na Suíça, na Holanda, em Luxemburgo e na Bélgica. Um estudo recente publicado no Journal of Medical Ethics mostrou que o número de estrangeiros que viajam para a Suíça para morrer dobrou em quatro anos. Existe até um termo para isso: turista suicida.
Os autores do artigo analisaram os 611 casos de suicídio assistido de estrangeiros ocorridos no país europeu entre 2008 e 2012. Desses, 268 eram alemães, 122 britânicos, 66 franceses, 44 italianos e 21 americanos. No período, um cidadão brasileiro também recorreu à prática na Suíça, mostra a pesquisa.
Em média, a idade dos pacientes é de 69 anos, variando de 23 a 97; 58,5% são mulheres e os principais motivos são doenças neurológicas (47%) e câncer (37%), seguidas por doenças reumáticas, cardiovasculares, respiratórias e crônicas, entre outras.
Falta debate no Brasil
A antropóloga Débora Diniz ressalta que, no Brasil, as discussões legais sobre suicídio assistido são quase nulas e precisam ser reforçadas. Não há sequer menção à eutanásia – morte provocada por outra pessoa, como o médico, e não pelo paciente – no Código Penal. No máximo, o artigo 122 criminaliza os atos de “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”, com pena de dois a seis anos, duplicada quando praticados em menores.
A especialista acredita que a falta de uma legislação e de debate qualificado sobre o tema no país acaba resultando em casos dramáticos, como o acompanhado por ela há cerca de 10 anos, em Brasília. Débora foi chamada pelo Ministério Público para prestar assessoria a respeito de uma família que foi à Justiça pedir para os médicos não entubarem um bebê de 8 meses que tinha amiotrofia espinhal progressiva tipo 1, doença incurável, degenerativa e com curto prognóstico. Fisioterapia, punção da veia, aspiração pulmonar de duas a três vezes ao dia, procedimentos invasivos e dolorosos. Nada disso, contudo, modificava o quadro clínico da criança, apenas a mantinha viva.
Como a doença faz perder a capacidade muscular, o bebê perderia a habilidade de respirar, tendo que ser submetido à ventilação mecânica. Foi por isso que os pais recorreram à Justiça. “Do nosso ponto de vista, aquilo não é mais vida. Aquilo é condenar uma pessoa a não poder morrer (...) Uma criança no respiradouro não tem a possibilidade de morrer...”, disseram os pais da criança. As declarações constam do relatório elaborado por Débora. Uma semana depois da decisão favorável, o bebê morreu.
(Com agências)