De forma despretensiosa, Cacau mostra por meio de depoimentos de personalidade e anônimos, de origens e formações distintas, a importância da brincadeira na formação do ser humano. Com reflexões tocantes e alertas essenciais, ele mostra como o brincar precisa estar presente em todas as idades.
Documentário 'Tarja branca - A revolução que faltava' defende a importância de manter vivo o espírito lúdico no mundo adulto. Você se permite um dia a dia mais leve? Confira o trailer:
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Primeiros desenhos da infância servem como indicativo do nível de inteligência na vida adultaBoas lembranças de atividades físicas feitas na infância ajudam adultos a não se tornarem sedentáriosCrianças falam o que pensam e colocam pais em cada situação... Veja históriasPais incluem crianças em seus hobbies, estendem tempo de convivência com filhos e conquistam mais afetoConheça 7 brincadeiras para curtir o fim das férias Tempo livre para brincar também educa, dizem especialistas
Depressão, crises de pânico, isolamento, solidão, medo, ansiedade, doenças dos nossos dias que também estão relacionadas com a correria, estresse, cobranças, competição desenfreada...
IMAGINÁRIO FÉRTIL
A psicanalista e psicóloga Maria Goretti Ferreira, com mais de 30 anos de experiência, reconhece que, às vezes, é tarefa árdua e penosa conciliar na vida adulta esse lado lúdico com a necessidade de sobrevivência e as demandas cada vez mais escravizantes e descabidas do mundo pós-moderno. Ela cita o escritor Fabrício Carpinejar: “Seja imprudente, porque quando se anda em linha reta não há histórias para contar”. Portanto, um imaginário fértil, dado a brincadeiras e folguedos, típico do nosso povo, herança das nossas raízes africanas e indígenas, não deve ser encarado como falta de austeridade ou de seriedade.
Sabe-se que grandes progressos científicos e tecnológicos surgiram a partir de uma curiosidade aguçada, de uma brincadeira tenaz, levada às raias da obstinação. Também não é preciso ser artista ou criar uma obra de arte para se brincar. Basta (e já não é pouco) descobrir o que faz o coração bater mais forte, com a sensação de plenitude e inteireza ainda que fugaz e transitória de que a vida vale a pena ser vivida, com fruição e deleite. Fiquemos com Manuel Bandeira: “...
O brincar está na pauta da vida do empresário João César Santos Maia, de 37 anos, que passou a infância no interior criando os próprios brinquedos: biboquê, carrinho de rolimã, pião... Adulto, sua brincadeira preferida é o aeromodelismo. “Além de voar, também fabrico os aviõezinhos. E se me canso de uma diversão, passo para outra. Jogo tênis, peteca, futebol, vôlei, futvôlei... Brincar faz bem e nos torna mais felizes.”
“Viver sem brincar não tem graça”. Assim a educadora Grazielle Santos, de 38 anos, mãe de Isabella, de 4, decidiu levar a vida. “Hoje, priorizei cuidar da minha filha e ser mãe. O brincar, então, ficou ainda mais presente. Mas sempre fui alegre, comunicativa, bem-humorada e, mesmo nos meus dias ruins, não deixo transparecer e estou com um sorriso no rosto. Tento ser assim e o brincar me ajuda a encarar os dias não tão legais.” Ela acredita que a brincadeira é importante, “não só para a formação da Isabella, como para nos manter próximas. Não é uma obrigação. Ao brincar, volto no tempo, viro criança de novo. Resgato com minha filha uma infância que não existe mais, a do pega-pega, da queimada, do rouba-bandeira e a afasto um pouco do tablet, que já usava antes mesmo de falar”.
Para Grazielle, “brincar é criar um mundo de imaginação, o que é maravilhoso para crianças e adultos”.
BOLICHE
Aos 58 anos, o joalheiro Renato Pena Santos é defensor da brincadeira de adulto. “É necessária.” Quando criança, foi apresentado ao boliche com seus seis pinos de plásticos e a bolinha que exigia mira certeira para o strike. Bem grandinho, o hobby o transformou em jogador da Seleção Mineira, disputas de taças, calendários de jogos, medalhas, mas a diversão é a mesma. “Um dia da semana é sempre dedicado ao boliche. Um grupo de amigos se reúne, com um gozando o outro, e, se não formos vistos, só ouvidos, podemos passar por um grupo de crianças. É um encontro saudável de um bando de meninos.”
O boliche, revela Renato, o ajuda na rotina profissional, já que “precisa de concentração e demanda coordenação, tudo a ver com joalheria. São exigências essenciais na feitura de uma joia, na criação de uma peça. Então, o brincar está presente o tempo todo na minha vida. O boliche é prazer, lazer, esporte, adrenalina, enfim, é muito bom”. Mas Renato avisa que seu brincar também está no nadar na cachoeira, nas pequenas viagens para Macacos e Serra do Cipó, no jantar com a família... O joalheiro reforça que a criança interior não pode morrer. “No meu dia a dia brinco o tempo inteiro, cultivo o bom humor e já acordo alegre, otimista e elétrico. O espírito de criança não pode faltar, porque é a maneira de deixar a vida mais leve , é ele quem carrega a fantasia, a imaginação e temos de tê-lo presente diante de uma realidade cada vez mais dura, às vezes de filme de terror.”
AVIÃO
O aeromodelismo é o brinquedo que o empresário João César Santos Maia, de 37, escolheu para encarar o mundo real. Um hobby tão fascinante que ele não se contentou apenas em fazer manobras com os aviõezinhos na Lagoa da Pampulha, passou a fabricá-los. “Há cinco anos comecei a brincar, aprendi sozinho, e não consigo parar. A adrenalina de manter o avião no ar e você no chão é demais. Já caí algumas vezes na Lagoa, mas construí um barco de resgate, o rebocador, e tudo certo. Desde pequeno, sempre fui da ‘pá virada’, vivia subindo em árvore, andando a cavalo, me quebrando, enfim, brincando como nunca na casa dos meus avós no interior, ao lado dos primos. Hiperativo, cresci e apenas mudei de brinquedos, que me tiram da vida real.”
Para João César, o brincar afasta o estresse. “Tenho amigos que não estavam bem, eu os levei para o aeromodelismo, o adotaram como hobby e se livraram do médico e de remédios. Todos podem brincar, basta querer. Além dos aviões e do esporte que adoro, pinto quadros abstratos, tenho mais de cinco mil peças de biscuit, faço esculturas de material reciclado, é tudo autodidata. E trabalho, sou administrador de empresa e tenho uma casa de festas. Mas é preciso querer pôr diversão na vida. Você pode ser feliz e brincar de jogar pedra no rio. Tente, é legal e faz bem.”
O brincar tem vários ângulos e o adulto que preserva a criança que há dentro de todos nós não é só mais feliz, mas seguramente tem mais saúde. A psicanalista e psicóloga Maria Bernadette Biaggi, fundadora do Istituto Biaggi Psicoterapia Psicoanalisi Cultura e Arte Brasil-Italia, instituição especializada no desenvolvimento humano, diz que o brincar é fundamental para o funcionamento psíquico e mental. “Essa função está ligada à capacidade de imaginar. É tão importante para o equilíbrio psíquico que a própria natureza nos presenteou com funções biológicas como o sonhar e o imaginar, para treinarmos uma ação e para nos prepararmos para o momento seguinte. Essas são situações em que brincamos livremente e sem censura, como no sonho noturno. O próprio lobo frontal, responsável pela discriminação, pela crítica, fica hipoativado no sonho para que possamos relaxadamente brincar com as nossas emoções e organizá-las para serem usadas ao acordar.”
Bernadette enfatiza que brincar nos prepara para a vida. “Não se resume de modo algum ao dançar, jogar, sorrir, andar de bicicleta ou montanha-russa, mas desenvolver a capacidade de relaxar enquanto nosso corpo se interage com o mundo e se prepara para, não somente estar vivo, mas existir como pessoa na sua essência e subjetividade.”
A psicanalista explica que o brincar é necessário para que possamos entrar em contato com a realidade da vida, com a cultura e nos tornar um ser social. “Trata-se de um espaço entre o eu e o outro e, portanto, um espaço de criatividade. O brincar convida o senso de humor para se expressar e nos levar a ter a mais saúde física e mental.”
Bernadette cita Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, que tem o brincar como verdadeira construção estética do nosso mundo interno. Ele dizia não se preocupar tanto ao encontrar uma criança, por exemplo, com dificuldades de aprendizagem ou que faz xixi na cama, mas sim com uma criança que não brinca. “Brincar é criar hipóteses, é desenvolver a capacidade de estar só na presença do mundo, é conhecer o próprio corpo no espaço e tempo. Brincar é importante para a saúde mental. Podemos observar as pessoas que adoecem mentalmente como entrando numa concha, uma cápsula, e se afastando da capacidade criativa do brincar. O mundo assim fica muito concreto, uma realidade sem cor, na vida como ela é, tão poeticamente retratada na obra de Nelson Rodrigues. Ele brinca com a falta de cor da concretude da realidade. Precisamos da área da ilusão para atravessarmos o rio da vida. O brincar é coisa séria para a saúde.”
Por meio do brincar, Bernadette lembra que é possível organizar “nosso mundo externo e interno”. Ela explica que, em estados de sofrimento e dor mental, a tendência do indivíduo é criar apenas uma hipótese e não encontrar assim saída para os desafios do viver. “Isso contribui para a ideação suicida, uma vez que as hipóteses abrem a mente para novas possibilidades e desenvolvem a capacidade de adiar e ter esperança em ver novamente as cores do arco-íris. O espirito lúdico é um organizador psíquico.”
RECHEIO E os excessos? Bernadette lembra que o brincar excessivamente pode ser um modo de defesa e, normalmente, contém muita agressividade disfarçada. “Há até quem use a brincadeira para agredir e assassinar a identidade de alguém. Sem dúvida, é uma das formas de se defender das relações mais íntimas e profundas. É paradoxal, porque é aquela velha história de brincar e alfinetar e, se o outro reclama, é tido como mal-humorado, como aquele que não sabe nem relaxar. Acaba por imobilizar a vítima com excessos de brincadeiras. Assim, excessos no brincar ou não brincar são sinais de alerta.”
A capacidade imaginativa, que é a área do brincar, pode ser danificada (função pré-consciente) em situações de grande sofrimento psíquico e/ou traumático, em especial na primeira infância. “O pré-consciente tem a função de ligar as impressões sensoriais, as sensações e as emoções à representação em palavras. É como se fosse uma ponte entre o mundo do inconsciente e a consciência e é, justamente nesse espaço entre os dois mundos, que a imaginação e o brincar podem ter a sua função plena na saúde mental. Vamos imaginar um hambúrguer daqueles benfeitinhos. Se tirarmos o recheio, fica pão com pão. O pré-consciente é o recheio da vida. Se estiver ausente, perde o sabor gostoso do hambúrguer. Veja que podemos variar os recheios e é justamente essa capacidade de brincar, imaginar, sonhar acordado que traz o prazer e relaxamento para sair da vida robótica e cheia de armaduras, da concreteza da realidade.”
Nesses casos, Bernardette aconselha buscar ajuda psicoterapêutica “para restaurar as funções do pré-consciente, para restabelecer novamente a capacidade imaginativa que a criança que habita em nós usava para preparar os hambúrgueres nas brincadeiras infantis”. Para concluir, ela lembra que graças à natureza não escapamos do brincar. “À noite, sonhamos e brincamos livremente. Nossos poetas, Toquinho e Vinícius, cantam a imaginação na música Aquarela: Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo/E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo...”
Liberdade para criar
“Estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar cantando coisas de amor.....”, canta Chico Buarque. Quando se fala em brincar, pensamos logo em diversão, lazer, passatempo, ócio. Mas a psicanalista e psicóloga Maria Goretti Ferreira afirma que o brincar não é meramente uma forma de distração e muito menos um afazer qualquer, mas um fator primordial na constituição do ser humano, como função mediadora entre o mundo interno e a realidade externa. Portanto, “o brincar é uma questão vital, da ordem da saúde psíquica, em que vários aspectos da subjetividade são construídos, desenvolvidos, postos à prova e confrontados com as inevitáveis exigências e ameaças do que vem de fora”. Ele recomenda repararmos como uma criança lida com suas angústias, temores e conflitos ao enfrentar seus monstros, heróis, ídolos, obstáculos e desfechos que surgem ao longo de uma brincadeira... Como nos diz Mário Quintana: “As crianças não brincam de brincar. Brincam de verdade”.
De fato, Goretti lembra que não existe nada que uma criança leve mais a sério do que o brincar. Quando está envolvida, mostra-se motivada, concentrada, comprometida e o faz com enorme prazer. “Não seria esse o modelo a ser levado para a vida adulta? Ou seja, envolver-se prazerosamente e com seriedade com o que se faz, premido por uma força pulsional que busca tornar a vida mais interessante, mais criativa, menos repetitiva e com menos monotonia?”
CONCRETO
Como preservar ou mesmo instaurar o brincar na vida adulta? Goretti afirma que as respostas não são tão simples, objetivas e concretas. “Não é continuar a ser criança ou agir infantilmente para o resto da vida, mas manter-se conectado com o próprio ser, com a sua marca pessoal, com aquele traço que o torna peculiar, espontâneo, conferindo leveza e serenidade ao seu cotidiano, a despeito das asperezas do mundo. “As pessoas ditas bem-humoradas e espirituosas o sabem muito bem.”
Goretti enfatiza que brincar ou brincadeira também pode ser sinônimo de algo que se faz inconsequentemente, coisa de pouca importância, leviandade, preguiça, indolência. “Isto é, num tempo em que ficar parado parece pecado e dedicar-se ao que gosta pode ser execrado, caso não seja fonte de ganhos e lucros. Há que se ter coragem e audácia em não se submeter à automação, à robotização, ao apagamento da singularidade, lutando com galhardia para preservar o sonho, o espaço psíquico e a liberdade de criar.”