Os indicadores funcionam de maneira simples. Melhor será a utilização de fármacos quão menor for a prescrição de antibióticos e injeções, especialmente para o tratamento de infecções do trato respiratório superior, como sinusites, rinites, amigdalites, faringites e laringites. Em busca dessa excelência, deve ser maior a prescrição de genéricos e de drogas inclusas na lista de remédios essenciais, além de o tratamento contra pneumonias ser feito com o antibiótico apropriado. Um problema específico é monitorado como referência para esses indicadores: a diarreia. A recomendação é de que o tratamento tenha um percentual baixo de drogas, optando preferencialmente pela solução oral de reidratação.
Na análise, o Brasil foi listado com outras nações de baixa e média renda per capita e, apesar de apresentar taxas de certo modo satisfatórias desses indicadores, a comparação com realidades muito contrastantes à brasileira acende um alerta para o cenário atual da saúde pública nacional. Quanto ao uso correto do antibiótico contra a pneumonia, o Brasil, com o índice de 49,3%, tem a sétima pior performance, atrás de países como Moçambique (97%), Ruanda (90%), Tanzânia (86,5%), Chile (83,1%) e Camarões (80%). As diretrizes padrão da OMS para tratamento também são mais bem seguidas no Senegal (78,5%), Peru (76%), Egito (74%) e República Democrática Popular Lao (74%).
A prescrição de medicamentos é outra situação que traz índices expressivos e de contrastes que chamam a atenção. Quase 80% das drogas prescritas no país pertencem à lista de medicamentos essenciais, ao mesmo tempo em que locais como Gâmbia, Camboja, Indonésia, Irã, Malásia e Zâmbia atingiram 100%. Medicamentos essenciais são aqueles que satisfazem as necessidades prioritárias da população e que devem estar sempre disponíveis para as comunidades em quantidades adequadas, com qualidade assegurada, nas formas farmacêuticas apropriadas e a um preço acessível.
Políticas destinadas a promover o uso qualitativo de drogas terapêuticas incluem as recomendações de que os medicamentos precisam estar livres nos postos e que todos os profissionais de saúde devem ser educados sobre a lista de medicamentos essenciais — feita pela OMS e revisada a cada dois anos. Essa condição se mantém quanto à prescrição de genéricos em 83,7% das receitas brasileiras emitidas em unidades do serviço público de saúde, em 100% das do Camboja e em 93% nos africanos Mali e Burkina Faso.
Realidades distintas
Pesquisador e farmacêutico do Centro Brasileiro de Informações sobre Medicamentos, ligado ao Conselho Federal de Farmácia (CEBRIM-CFF), Rogério Hoefler explica que é preciso considerar alguns critérios ao analisar dados como esses. Muitos países de baixa renda dependem de ajuda humanitária para os tratamentos de saúde e, por esse motivo, tendem a receber fundamentalmente os medicamentos da lista essencial e, em grande parte, genéricos.
O especialista indica também a pressão exacerbada da indústria farmacêutica sobre os médicos e os encarregados da escolha de remédios no serviço público, além da influência da propaganda farmacêutica. “Nessas etapas, desde a escolha do medicamento, a prescrição, a administração adequada até a dispensa, existem várias nuances e problemas, como a propaganda exacerbada de medicamentos e o interesse mercadológico por trás da utilização do remédio.”
Hoefler reforça que o uso racional de um remédio acontece quando ele é realmente necessário e da forma necessária. “Existem, para determinadas doenças, tratamentos padrão que cientificamente são de primeira escolha, de modo que não há distorções. Mas o médico usa a terceira escolha antes da primeira. É preciso treinamento nesse sentido para que saibam a importância de seguir essas etapas. É compreender o protocolo”, defende. As diretrizes correspondem ao melhor tratamento, independentemente de quem o vende ou se a droga é genérica. Uma filosofia que, segundo ele, deve ser passada ainda na formação dos profissionais de saúde.
O treinamento ainda durante a graduação conforme as diretrizes de tratamento padrão é, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma das medidas mais eficazes para aperfeiçoar o uso de medicamentos nos países. O impacto positivo entre os países que implementaram a medida é de 12,4% no caso da capacitação dos médicos e de 11,2% quando houve treinamento de enfermeiros.
Intoxicações
Em artigo publicado na mesma época de avaliação feita pela OMS, 2008, a farmacêutica Daniela Aquino, atualmente doutoranda em medicina tropical na Universidade Federal de Pernambuco, descreveu dados que refletem um sistema deficiente de atendimento no Brasil. Segundo a autora, os medicamentos respondiam por 27% das intoxicações, sendo que 16% dos casos de morte por esse motivo foram causados por remédios. “Além disso, 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente, e os hospitais gastam de 15% a 20% do orçamento para lidar com as complicações causadas pelo mau uso deles”, relata.
Aquino acredita que os requisitos para o uso racional de medicamentos são muito complexos e envolvem uma série de variáveis em um encadeamento lógico. “Para que sejam cumpridos, devem contar com a participação de diversos atores sociais: pacientes, profissionais de saúde, legisladores, formuladores de políticas públicas, indústria, comércio, governo”, lista. Procurada pelo Correio, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não prestou esclarecimentos sobre a utilização racional de medicamentos no país.