Olhe ao seu redor. Você percebe imediatamente onde está e se orienta no espaço. Um estudo revolucionário descobriu como o cérebro humano cria um mapa do ambiente, possibilitando a nossa navegação por cenários complexos. A decifração do sistema de posicionamento do cérebro — uma espécie de GPS interno — fez com que o Comitê Nobel do Instituto Karolinska agraciasse com o Prêmio Nobel de Medicina o americano-britânico John O’Keefe, 75 anos; e o casal de noruegueses Edvard I. Moser, 52, e May-Britt Moser, 51.
“Eles nos ensinaram como o cérebro opera em níveis superiores, com implicações para a memória, por exemplo”, afirmou ao Correio, por telefone, Göran K. Hansonn, secretário do Comitê Nobel para Fisiologia ou Medicina, após anunciar os ganhadores. “Pela primeira vez, compreendemos como o cérebro opera no nível da consciência. É algo realmente revolucionário.” O’Keefe, cientista da University College London, vai receber metade do prêmio de 8 milhões de coroas suecas (cerca de US$ 1,1 milhão). Edvard, pesquisador do Instituto Kavli para Sistemas de Neurociência (em Trondheim), e a mulher, May-Britt, do Centro para Computação Neural de Trondheim, vão dividir a outra metade.
Em entrevista, Eric Kandel — laureado com o Nobel de Medicina em 2000 por descobrir como a eficiência das sinapses pode ser modificada — classificou de “maravilhosa” a escolha do comitê. “O’Keefe e o casal Moser nos deram o primeiro insight sobre como uma função complexa e cognitiva é representada no cérebro”, explicou o professor da Universidade de Columbia. Segundo ele, tanto o mal de Alzheimer quanto a doença relacionada à perda de memória por envelhecimento envolvem o córtex entorrinal e o hipocampo. “É um passo importante rumo ao tratamento desses distúrbios”, acredita.
Em 1971, John O’Keefe detectou o primeiro componente do sistema de posicionamento, um tipo de célula nervosa no hipocampo que sempre era ativada quando um rato estava em determinado local de um ambiente. Outras estruturas do tipo foram “ligadas” quando o roedor mudava de local. O’Keefe concluiu que essas células de localização formavam um mapa do ambiente. Em 2005, May-Britt e Edvard rastreavam conexões para o hipocampo em roedores que se moviam por um ambiente quando encontraram uma padrão de atividade celular no córtex entorrinal. Na prática, detectaram outro componente do sistema de posicionamento cerebral. Tratava-se das chamadas células de grade, ou grid cells, que geravam um sistema de coordenadas e permitiam a localização e o deslocamento precisos.
Membro do Departamento Científico de Neurologia Comportamental e Cognitiva da Academia Brasileira de Neurologia, o neurologista e neurocientista Nasser Allam explica que o córtex entorrinal aciona cerca de 50 grid cells, que são ativadas quando o animal ou o ser humano está em um lugar importante para a sua localização. “Havendo o deslocamento, um grupo diferente de células entra em ação. Nesse quadrangular, por uma questão de referência e contrarreferência, o indivíduo se localiza.”
Allam sugere que o leitor se imagine em um ponto de um retângulo. “As grid cells codificam a memória do local onde você está. Ao se deslocar, outras células marcam o novo espaço. Existe uma comunicação entre a posição anterior e a atual. As grid cells entram em contato com as células de localização”, exemplifica.
Para o brasileiro, a colaboração das células de localização e das grid cells com o córtex entorrinal permite a fixação da memória de trabalho ou operacional. Allam afirmou que o estudo do trio pode ajudar a entender o que ocorre em algumas formas de demência.“Nos casos do Alzheimer, uma das coisas que o indivíduo perde é o senso de orientação. É possível que haja o envolvimento precoce das células de grade e de localização no hipocampo e no córtex entorrinal”, avalia. A compreensão dessas células possibilitaria o desenvolvimento de terapias e de medicamentos capazes de abordar a perda desses neurônios.
ENTREVISTA John O’Keefe
'Ainda tenho várias dúvidas'
“Aqui é John O’Keefe, da Universidade College London.” O telefone tocou às 14h56 de ontem (19h46 em Brasília), quase oito horas e meia depois do anúncio do prêmio. Do outro lado da linha, um dos vencedores do Nobel de Medicina exibia o entusiasmo e a alegria típicos de quem experimentava o triunfo máximo. Mas também havia uma boa dose de simplicidade. Em entrevista exclusiva ao Correio, O’Keefe considerou “uma tremenda honra” ter sido um dos laureados, mas lembrou que o prêmio pertence a toda a comunidade científica. Também disse esperar que a vida volte ao curso normal em breve e prometeu não abandonar o laboratório. “Vou seguir fazendo ciência. Ainda tenho várias dúvidas”, declarou.
Qual foi sua reação ao tomar conhecimento de que tinha sido um dos escolhidos pelo comitê?
O Comitê Nobel me telefonou nesta manhã (ontem), meia hora antes do anúncio. Todo cientista sonha com isso (risos). Minha reação foi de surpresa, mas também fiquei maravilhosamente feliz. Eu não esperava ganhar o prêmio neste ano. Acho que todo cientista, para ser honesto, fica ciente (dessa possibilidade) (risos). Mas eu estou realmente entusiasmado por ter ganhado. Você sabe… É uma tremenda honra e estou muito encantado e agradecido por meus colegas. O prêmio é dado a um indivíduo pelo comitê, mas, de fato, é de toda uma comunidade que trabalha nessa parte do cérebro. E estou muito satisfeito por todos eles.
Como o senhor conseguiu detectar o sistema de mapeamento espacial no cérebro?
Quando começamos, muitos anos atrás, soubemos que o hipocampo estava envolvido na memória. Alguns pacientes com danos naquela parte do cérebro sofrem mudanças na memória. Nós conhecíamos o hipocampo, mas não exatamente que avaliação era possível fazer ali. Eu comecei a observar células em ratos e percebi que elas ficavam ativas quando eles estavam em determinado lugar ou quando acessavam a porta. E eu vi que essas células particulares eram um exemplo claro de que elas não se ativavam porque o animal fez alguma coisa ou porque estava interessado em acessar algum local, mas porque o rato tinha se localizado naquele ambiente.
Ao concluir que o hipocampo produz vários mapas espaciais, o senhor percebeu o potencial da descoberta em explicar o sistema de posicionamento interno?
Sim, nós percebemos que estávamos diante de algo importante. Primeiro, porque você pode usar isso para explicar como o cérebro funciona. Algumas pessoas eram céticas em relação a isso.
Como sua pesquisa pode ajudar mais a entender o cérebro e quais os seus efeitos terapêuticos?
Nós tivemos a oportunidade de começar a estudar em pacientes com danos cerebrais. Pedimos a essas pessoas que se movessem pelo ambiente e estudamos o cérebro delas e o tamanho das lesões. Vimos que o hipocampo pode nos revelar mais coisas. Em relação a terapias, criamos modelos de cobaias (ratos) e vimos que as células espaciais se tornam mais desgastadas, um sinal precoce de doenças. Tivemos algum progresso, mas prefiro ser cauteloso.
O senhor atingiu o topo da ciência. Quais seus projetos a partir de agora?
Vou seguir fazendo ciência. Ainda tenho várias dúvidas. Tenho pessoas muito talentosas no meu grupo que vêm de várias partes do mundo, inclusive do Brasil.
Espera que sua vida mude muito?
Eu realmente gosto da minha vida. Está maravilhosa agora. Eu espero que haja mais atenção da mídia por meu trabalho. Mas eu espero poder voltar à vida normal em alguns dias.
ENTREVISTA - May-Britt Moser
Da incredulidade ao choro de orgulho
Foi com um sorriso que a norueguesa May-Britt Moser atendeu ao telefonema do Correio enquanto se deslocava em Trondheim a bordo de um táxi. Durante quatro minutos, ela contou que chorou ao saber da notícia e chegou a pedir a Göran Hansonn, secretário do Comitê Nobel para Fisiologia ou Medicina, que lhe enviasse um e-mail com os detalhes da premiação. “Fiquei chocada”, admitiu à reportagem. May-Britt explicou como ela e o marido (foto), Edvard, detectaram o chamado mapa espacial.
A senhora esperava receber o Nobel de Medicina neste ano? Qual é o simbolismo do prêmio?
Em primeiro lugar, não esperava receber o prêmio. Estava em meu escritório quando falei por telefone com Göran Hansonn e pedi a ele que enviasse um e-mail com os detalhes porque eu não estava acreditando. Eu repetia: “Eu não acredito, eu não acredito”. Tive que ir até o meu reitor e mostrar-lhe o e-mail. E ele disse: “Sim, é verdade” (risos). Foi uma coisa louca.
Qual foi a sua reação ao perceber a notícia?
Eu estava chorando. Fiquei chocada. Fiquei tão feliz e tão orgulhosa de meu grupo, da minha universidade e do meu país.
Como a senhora analisa a importância de seu estudo para a compreensão sobre o cérebro?
O processo do GPS interno é mediado por células do cérebro. Elas reconhecem os padrões do ambiente. Procuramos entender como esses padrões são gerados para compreender o modo com que o cérebro lida com essas informações.
A senhora mapeava conexões no hipocampo em ratos que se moviam por uma sala quando descobriu a atividade cerebral. Por que esse momento foi tão surpreendente?
Sim, nós gravamos os sinais do córtex entorrinal. O’Keefe supervisionou o nosso trabalho. Ele gravou as atividades do hipocampo e as transcreveu. Resumindo as atividades, nós obtivemos o senso de localização. Quando vimos isso no laboratório, era como se fosse um caminho para o Nobel.
Quais seus projetos agora que conquistou o prêmio mais desejado da ciência?
Fazer mais pesquisas, isso é minha vida, minha paixão.
“Eles nos ensinaram como o cérebro opera em níveis superiores, com implicações para a memória, por exemplo”, afirmou ao Correio, por telefone, Göran K. Hansonn, secretário do Comitê Nobel para Fisiologia ou Medicina, após anunciar os ganhadores. “Pela primeira vez, compreendemos como o cérebro opera no nível da consciência. É algo realmente revolucionário.” O’Keefe, cientista da University College London, vai receber metade do prêmio de 8 milhões de coroas suecas (cerca de US$ 1,1 milhão). Edvard, pesquisador do Instituto Kavli para Sistemas de Neurociência (em Trondheim), e a mulher, May-Britt, do Centro para Computação Neural de Trondheim, vão dividir a outra metade.
Em entrevista, Eric Kandel — laureado com o Nobel de Medicina em 2000 por descobrir como a eficiência das sinapses pode ser modificada — classificou de “maravilhosa” a escolha do comitê. “O’Keefe e o casal Moser nos deram o primeiro insight sobre como uma função complexa e cognitiva é representada no cérebro”, explicou o professor da Universidade de Columbia. Segundo ele, tanto o mal de Alzheimer quanto a doença relacionada à perda de memória por envelhecimento envolvem o córtex entorrinal e o hipocampo. “É um passo importante rumo ao tratamento desses distúrbios”, acredita.
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Membro do Departamento Científico de Neurologia Comportamental e Cognitiva da Academia Brasileira de Neurologia, o neurologista e neurocientista Nasser Allam explica que o córtex entorrinal aciona cerca de 50 grid cells, que são ativadas quando o animal ou o ser humano está em um lugar importante para a sua localização. “Havendo o deslocamento, um grupo diferente de células entra em ação. Nesse quadrangular, por uma questão de referência e contrarreferência, o indivíduo se localiza.”
Allam sugere que o leitor se imagine em um ponto de um retângulo. “As grid cells codificam a memória do local onde você está. Ao se deslocar, outras células marcam o novo espaço. Existe uma comunicação entre a posição anterior e a atual. As grid cells entram em contato com as células de localização”, exemplifica.
Para o brasileiro, a colaboração das células de localização e das grid cells com o córtex entorrinal permite a fixação da memória de trabalho ou operacional. Allam afirmou que o estudo do trio pode ajudar a entender o que ocorre em algumas formas de demência.“Nos casos do Alzheimer, uma das coisas que o indivíduo perde é o senso de orientação. É possível que haja o envolvimento precoce das células de grade e de localização no hipocampo e no córtex entorrinal”, avalia. A compreensão dessas células possibilitaria o desenvolvimento de terapias e de medicamentos capazes de abordar a perda desses neurônios.
ENTREVISTA John O’Keefe
'Ainda tenho várias dúvidas'
“Aqui é John O’Keefe, da Universidade College London.” O telefone tocou às 14h56 de ontem (19h46 em Brasília), quase oito horas e meia depois do anúncio do prêmio. Do outro lado da linha, um dos vencedores do Nobel de Medicina exibia o entusiasmo e a alegria típicos de quem experimentava o triunfo máximo. Mas também havia uma boa dose de simplicidade. Em entrevista exclusiva ao Correio, O’Keefe considerou “uma tremenda honra” ter sido um dos laureados, mas lembrou que o prêmio pertence a toda a comunidade científica. Também disse esperar que a vida volte ao curso normal em breve e prometeu não abandonar o laboratório. “Vou seguir fazendo ciência. Ainda tenho várias dúvidas”, declarou.
Qual foi sua reação ao tomar conhecimento de que tinha sido um dos escolhidos pelo comitê?
O Comitê Nobel me telefonou nesta manhã (ontem), meia hora antes do anúncio. Todo cientista sonha com isso (risos). Minha reação foi de surpresa, mas também fiquei maravilhosamente feliz. Eu não esperava ganhar o prêmio neste ano. Acho que todo cientista, para ser honesto, fica ciente (dessa possibilidade) (risos). Mas eu estou realmente entusiasmado por ter ganhado. Você sabe… É uma tremenda honra e estou muito encantado e agradecido por meus colegas. O prêmio é dado a um indivíduo pelo comitê, mas, de fato, é de toda uma comunidade que trabalha nessa parte do cérebro. E estou muito satisfeito por todos eles.
Como o senhor conseguiu detectar o sistema de mapeamento espacial no cérebro?
Quando começamos, muitos anos atrás, soubemos que o hipocampo estava envolvido na memória. Alguns pacientes com danos naquela parte do cérebro sofrem mudanças na memória. Nós conhecíamos o hipocampo, mas não exatamente que avaliação era possível fazer ali. Eu comecei a observar células em ratos e percebi que elas ficavam ativas quando eles estavam em determinado lugar ou quando acessavam a porta. E eu vi que essas células particulares eram um exemplo claro de que elas não se ativavam porque o animal fez alguma coisa ou porque estava interessado em acessar algum local, mas porque o rato tinha se localizado naquele ambiente.
Ao concluir que o hipocampo produz vários mapas espaciais, o senhor percebeu o potencial da descoberta em explicar o sistema de posicionamento interno?
Sim, nós percebemos que estávamos diante de algo importante. Primeiro, porque você pode usar isso para explicar como o cérebro funciona. Algumas pessoas eram céticas em relação a isso.
Como sua pesquisa pode ajudar mais a entender o cérebro e quais os seus efeitos terapêuticos?
Nós tivemos a oportunidade de começar a estudar em pacientes com danos cerebrais. Pedimos a essas pessoas que se movessem pelo ambiente e estudamos o cérebro delas e o tamanho das lesões. Vimos que o hipocampo pode nos revelar mais coisas. Em relação a terapias, criamos modelos de cobaias (ratos) e vimos que as células espaciais se tornam mais desgastadas, um sinal precoce de doenças. Tivemos algum progresso, mas prefiro ser cauteloso.
O senhor atingiu o topo da ciência. Quais seus projetos a partir de agora?
Vou seguir fazendo ciência. Ainda tenho várias dúvidas. Tenho pessoas muito talentosas no meu grupo que vêm de várias partes do mundo, inclusive do Brasil.
Espera que sua vida mude muito?
Eu realmente gosto da minha vida. Está maravilhosa agora. Eu espero que haja mais atenção da mídia por meu trabalho. Mas eu espero poder voltar à vida normal em alguns dias.
ENTREVISTA - May-Britt Moser
Da incredulidade ao choro de orgulho
Foi com um sorriso que a norueguesa May-Britt Moser atendeu ao telefonema do Correio enquanto se deslocava em Trondheim a bordo de um táxi. Durante quatro minutos, ela contou que chorou ao saber da notícia e chegou a pedir a Göran Hansonn, secretário do Comitê Nobel para Fisiologia ou Medicina, que lhe enviasse um e-mail com os detalhes da premiação. “Fiquei chocada”, admitiu à reportagem. May-Britt explicou como ela e o marido (foto), Edvard, detectaram o chamado mapa espacial.
A senhora esperava receber o Nobel de Medicina neste ano? Qual é o simbolismo do prêmio?
Em primeiro lugar, não esperava receber o prêmio. Estava em meu escritório quando falei por telefone com Göran Hansonn e pedi a ele que enviasse um e-mail com os detalhes porque eu não estava acreditando. Eu repetia: “Eu não acredito, eu não acredito”. Tive que ir até o meu reitor e mostrar-lhe o e-mail. E ele disse: “Sim, é verdade” (risos). Foi uma coisa louca.
Qual foi a sua reação ao perceber a notícia?
Eu estava chorando. Fiquei chocada. Fiquei tão feliz e tão orgulhosa de meu grupo, da minha universidade e do meu país.
Como a senhora analisa a importância de seu estudo para a compreensão sobre o cérebro?
O processo do GPS interno é mediado por células do cérebro. Elas reconhecem os padrões do ambiente. Procuramos entender como esses padrões são gerados para compreender o modo com que o cérebro lida com essas informações.
A senhora mapeava conexões no hipocampo em ratos que se moviam por uma sala quando descobriu a atividade cerebral. Por que esse momento foi tão surpreendente?
Sim, nós gravamos os sinais do córtex entorrinal. O’Keefe supervisionou o nosso trabalho. Ele gravou as atividades do hipocampo e as transcreveu. Resumindo as atividades, nós obtivemos o senso de localização. Quando vimos isso no laboratório, era como se fosse um caminho para o Nobel.
Quais seus projetos agora que conquistou o prêmio mais desejado da ciência?
Fazer mais pesquisas, isso é minha vida, minha paixão.