A transmissão interespécies de SIV para humanos antecede o ancestral comum do HIV pandêmico e, provavelmente, ocorreu no sudeste de Camarões, onde foram identificados os chimpanzés com cepas de SIV mais semelhantes ao grupo Mhave — linhagem viral responsável pela pandemia da Aids. “Sabíamos muito pouco sobre as vias de disseminação precoce do HIV e como se estabeleceu uma epidemia continental nas décadas posteriores ao espalhamento para os chimpanzés”, esclarece Faria. Após a transmissão localizada, resultante possivelmente da caça de primatas e do consequente contato com o sangue dos animais, o vírus teria viajado pelas balsas ao longo do Rio Sangha para Kinshasa, capital da República do Congo (na época, Zaire). Durante o período de colonização alemã de Camarões, de 1884 a 1916, as ligações fluviais entre o sul do país e Kinshasa eram frequentes devido à exploração da borracha e do marfim.
De acordo com o grupo de cientistas liderado pelo pesquisador Nuno Faria, do Departamento do Zoologia da Universidade de Oxford, no Reino Unido, até o fim da década de 1980, a diversidade genética da linhagem de HIV que provocou o caos na saúde mundial foi maior e mais complexa dentro do país do que no resto do mundo. Além disso, dois sequenciamentos de HIV substanciais para prever a descoberta da doença foram recuperados em amostras de sangue e de tecidos coletadas em Kinshasa, capital do Congo entre 1959 e 1960. “Nossa localização estimada de origem da pandemia explica a observação de que Kinshasa apresenta mais diversidade genética contemporânea do HIV do que em qualquer outro lugar. Esclarece, por exemplo, por que as sequências de HIV mais antigas conhecidas foram adquiridas a partir dessa cidade e por que vários casos precoces sugestivos de Aids estão ligados a Kinshasa.”
Evolução rápida
A avaliação das informações contidas em amostras de sequências virais e as análises evolutivas foram as ferramentas usadas pelos cientistas do Reino Unido para revelar a rápida evolução da pandemia. Os relógios moleculares examinados pelos cientistas concordam que um ancestral comum do HIV pandêmico existiu na primeira metade do século 20. “Usando métodos alternativos de análise evolutiva aplicada a uma compilação de sequências genéticas de HIV da África Central, descobrimos a dinâmica da criação do vírus em humanos, o que explica como apenas um dos muitos eventos de transmissão entre espécies deu origem à pandemia global que vemos hoje”, diz Faria.
O HIV pandêmico chegou inicialmente a dois grandes centros populacionais da África: Lubumbashi e Mbuji-Mayi, que eram mais bem conectados a Kinshasa. Dentro do Congo, a maioria das viagens e da correntes migratórias ocorreu ao longo da rede ferroviária, que foi usada por cerca de 300 mil passageiros por ano, atingindo mais de 1 milhão em 1948. O vírus atingiu Lubumbashi e Mbuji-Mayi em 1937 e em 1939, respectivamente. Esses dois locais receberam cerca de 41% de exportação da linhagem viral de Kinshasa.
Por volta de 1960, houve uma transição para uma segunda fase, mais rápida, da propagação do vírus. Nesse período, a taxa de crescimento do HIV foi maior que o dobro verificado anteriormente. Entre os fatores que colaboraram para a rápida expansão, os cientistas britânicos destacam a maior presença de homens para operar portos e redes ferroviárias que serviam de canal para o crescimento das potências coloniais europeias. Consequentemente, teria aumentado a prostituição na região. Injeções não esterilizadas aplicadas nos profissionais do sexo teriam tornado a transmissão do vírus ainda maior e mais perigosa.
“Sugerimos que uma combinação distinta de circunstâncias durante uma janela espacial e sócio-histórica particular permitiu a criação, a difusão espacial e o crescimento da epidemia de HIV do tipo pandêmico. Argumentos semelhantes podem estar por trás do surgimento de outros patógenos sanguíneos, em especial o de hepatite C”, conclui Faria.
Para o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Esper Kallás, os pesquisadores conseguiram localizar com maior precisão a dinâmica de crescimento do vírus, o que pode ajudar a entender melhor o potencial de disseminação do HIV. “Com esse mapeamento, conseguimos entender como um retrovírus pode ser transmissível de maneiras distintas. Conhecer essas formas e saber as diferenças que uma tem da outra é muito importante.”
Origem mais clara
“Não é surpresa, mas uma determinação mais clara da origem da Aids. Sempre foi afirmado que ela surgiu na África, mas não se sabia exatamente quando e onde isso teria acontecido. Até porque a doença foi descrita pela primeira vez nos Estados Unidos. Dados de biologia molecular, porém, começaram a indicar a origem na África Central. Hoje, temos uma trajetória de tempo e local. Alguns componentes genéticos do vírus naquela região eram mais capacitados a se adequar à infecção humana e, a partir dali, se disseminar entre humanos que receberam injeções infectadas, além da transmissão sexual. Isso seguiu caminho pelas redes de transporte.”
Heloisa Ramos Lacerda de Melo, presidente do Comitê de Retroviroses da Sociedade Brasileira de Infectologia
Vírus volta a ser detectado em bebê de Milão
O segundo caso de criança curada funcionalmente da infecção pelo HIV segue o mesmo resultado decepcionante do chamado bebê de Mississippi. Submetido a uma administração precoce de alta dose de antirretrovirais, o bebê de Milão apresentou três anos de remissão do micro-organismo causador da Aids, mas cargas virais foram detectadas em exames recentes. A cura funcional não é a erradicação da doença, já que o patógeno permanece no sangue do paciente em quantidades mínimas, quase indetectáveis. Nessa condição, o sistema imunológico controla sozinho a multiplicação do vírus, impedindo que qualquer sintoma se manifeste. Nova falha nesse processo é detalhada na edição de hoje da revista Lancet por um grupo de especialistas liderado por Mario Clerici, da Universidade de Milão.
O bebê de Milão nasceu de mãe soropositiva em dezembro de 2009. A cura funcional foi percebida quando ele tinha 3 anos. Testes para medir a quantidade viral no sangue da criança indicaram que o HIV havia sido erradicado, sendo que até os anticorpos produzidos contra o vírus desapareceram da corrente sanguínea. Esses dados garantiram aos pesquisadores que o bebê não era mais soropositivo e, com a aprovação da mãe, o tratamento foi interrompido. Em outros pacientes soropositivos, o coquetel de antirretrovirais é normalmente necessário pelo resto da vida para controlar o vírus. Por não ter mais carga viral, o bebê não precisaria da medicação.
Duas semanas depois da interrupção, porém, os testes para a presença de HIV foram positivos, levando os pesquisadores a concluir que os reservatórios virais não tinham sido eliminados pelo tratamento precoce. A situação é similar ao caso do bebê de Mississippi, criança nascida prematuramente há quatro anos em uma clínica nos Estados Unidos ficou e conhecida por ter sido a primeira presumidamente curada da infecção. O tratamento precoce foi retirado pela mãe arbitrariamente e as taxas se mantiveram indetectáveis. O grande feito foi noticiado globalmente. Neste ano, porém, verificou-se a carga viral da criança
Segundo os pesquisadores, existem diferenças entre o caso de Milão e o de Mississipi, assim como o do paciente de Berlim, Timothy Ray Brown, considerado o único adulto a ser curado do HIV. O sistema imune da primeira criança continuou a mostrar vários sinais de resposta à infecção pelo HIV, mesmo após a carga viral se tornar indetectável, o que não ocorreu com os outros dois pacientes. Os autores sugerem ainda que a alta carga viral detectada no bebê de Milão assim que ele nasceu, uma infecção intrauterina e o baixo peso após o parto também podem ter impedido a remissão viral duradoura. Segundo eles, a disponibilidade de muitas classes de antirretrovirais potentes diminuiu substancialmente a morbidade e a mortalidade por HIV, mas esses medicamentos não podem erradicar o micro-organismo causador da Aids porque eles não eliminam os reservatórios virais. “A busca por uma cura funcional do vírus da Aids continua”, finaliza Clerici.