Autora de mais de 30 livros sobre relacionamento familiar e desenvolvimento pessoal, Maria Tereza Maldonado aborda o tema em seu título mais recente – Os primeiros anos de vida: pais e educadores no século 21 (Editora WMF Martins Fontes). Segundo a mestre em psicologia e ex-professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, é preciso desenvolver, ainda na infância, algumas habilidades que serão requeridas no mercado de trabalho: inovação, olhar sistêmico, gestão de crises e de mudança, aceitação da diversidade.
É importante manter a curiosidade natural das crianças. Segundo a especialista, muitas vezes, no decorrer da vida escolar, os erros são criticados e a criatividade acaba desencorajada. Mas o mercado exige, cada vez mais, pessoas criativas e inovadoras e para isso as crianças não podem ter esse medo de errar. “O erro deve ser visto como aprendizagem, parte de um processo de tentativas que vai conduzir ao acerto. Também é preciso desenvolver, desde cedo, a tolerância à frustração, porque muitas coisas não vão dar certo e não podemos desistir”, explica.
As crianças precisam ainda saber olhar para um todo maior para se dar bem em um cenário em que tudo está conectado. Isso pode ser desenvolvido a partir dos primeiros anos, em diferentes situações, mas vai demandar flexibilidade e capacidade de adaptar-se a mudanças. Segundo a especialista, a educação começa dentro do útero. “Estudos de neurociência e neurobiologia dos relacionamentos mostram que a relação da família com o feto é uma verdadeira tecelagem da pessoa. O cérebro é um órgão social e já nascemos com capacidade de nos vincular.”
Um exemplo desse “novo jeito” de educar é a tentativa de alguns pais de desenvolver nos filhos a habilidade para andar em bicicletas sem rodinhas. “Quando não dá certo eles tendem a querer desistir. Nessa hora, é preciso dizer que sabemos que ele sente raiva, mas que aprender é assim mesmo. O mesmo vale no aprendizado de um instrumento ou esporte. Na primeira dificuldade, algumas famílias aceitam a desistência do filho. Mas eles precisam aprender o valor de insistir um pouco, mesmo que exista frustração.”
Do contrário, essas crianças se manterão na lei do desejo, aquela em que se quer tudo agora, embora precisem conhecer a lei da realidade. Afinal, nem sempre as coisas são do jeito que desejamos. “Se ela ficar no prazer vai querer apenas brincar. Mas as crianças precisam conhecer limites, disciplina e regulação. Tem hora para o prazer e hora para dever. O importante é que os pais reconheçam o desejo, mas colocando a lei da realidade. O problema é que é algo difícil para os próprios adultos.
LÚDICO
A maior preocupação da cenógrafa Bruna Christófaro, de 36 anos, e do arquiteto Ulisses Morato, de 46, na criação de Bernardo, de 3, é que ele viva plenamente a infância. Para isso, buscam ajuda na escola, que prioriza o aprendizado por meio do estímulo lúdico e criativo. “Parece ‘solto’, ‘alternativo’, mas a brincadeira não elimina o conhecimento nem a disciplina. Ele tem rotina e aprendeu o que deve ser feito a cada momento. É brincando também que ele aprende a dividir com os amigos o brinquedo, esperar sua vez e tratar bem as pessoas”, diz Bruna.
Para Maria Tereza Maldonado, essa clássica situação é um bom exemplo de como o que será exigido no futuro pode ser aprendido cedo. “Se duas crianças de 2 ou 3 anos disputam um brinquedo, o pai deve chegar e perguntar quem vai brincar primeiro, como podem combinar para ambos participarem. Isso é gestão de conflitos. A criança vai aprender, logo, que combinados evitam brigas.” No final, tudo pode ser resumido em resiliência. Até mesmo as crianças mais pequenas precisam saber superar obstáculos e enfrentar as dificuldades, mantendo a esperança e o otimismo.
Disciplina positiva
Especialistas defendem a imposição de limites nas crianças com afeto, mostrando que toda ação tem uma consequência
Não é raro ouvir que a geração atual é mais difícil. Mas é uma percepção que vem da geração anterior, a mesma que hoje educa, e que, por sua vez, foi criada em uma realidade ainda mais distinta. As crianças de hoje estão muito conectadas com o mundo e com os benefícios e malefícios que isso traz. Para a psicóloga Maria Tereza Maldonado, há ainda uma dificuldade de colocar limites, necessários para fazer uma educação de valores. A punição perdeu espaço e especialistas em comportamento infantil defendem uma disciplina positiva. “Essa abordagem coloca limites com afeto. As crianças precisam aprender que quando os combinados não são cumpridos há uma consequência. Se ela está com raiva e derruba o suco no chão, o pai pode falar: ‘Você ficou com raiva e derrubou o suco, então agora pegue o paninho para limpar’”, sugere a especialista.
Andreia Mortensen, neurocientista e professora no Departamento de Farmacologia e Fisiologia na Universidade Drexel, na Filadélfia (EUA), aborda o tema da educação positiva no recém-lançado livro Educar sem violência: criando filhos sem palmadas (Editora Papirus), em coautoria com Lígia Sena. Para as autoras, educar é transmitir valores, estimular o comportamento ético, empático, solidário, reflexivo, coisas que a criança vai levar para a vida inteira. É ensinar a tomar boas decisões em situações de conflito; é ensinar empatia; é exercer o diálogo; é reconhecer e elogiar os bons comportamentos; é conhecer as fases de crescimento para entender e lidar melhor com as diversas situações na jornada da educação. É, sobretudo, dar bons exemplos.
Leia a entrevista com Andreia Mortensen e entenda os benefícios da disciplina positiva
Se a situação está incontrolável, os pais o tiram do ambiente até ele se acalmar. Mas não o deixam sozinho, ficam com ele. “Dizemos que vamos conversar quando ele parar de chorar e ele se esforça para isso. Quando para, explicamos rapidamente o que está acontecendo e a atitude que esperamos dele. Funciona bem. Não o obrigamos a parar de chorar. Não o ameaçamos e não o agredimos, nem verbalmente, porque a criação com afeto passa pelo respeito. Tanto dele por nós quanto nosso por ele. Tem coisa mais contraditória do que gritar para uma criança parar de gritar? Como eu vou querer que nosso filho trate as demais pessoas bem, senão tratando-o bem? Não quero que ele simplesmente obedeça, quero que ele entenda. Ele pode até questionar. Afinal, é assim que o mundo se transforma”, diz.
Já a administradora Sílvia Torres, de 40, mãe de Tomaz, de 7, e de Gabriel, de 4, recorre ao castigo e não conseguiu não dar palmada. “Não os deixo ir a um determinado programa se não se comportarem bem. Se não seguirem as regras existe punição sim, se tiver reclamação da escola por mau comportamento, tem punição sim. Não conheço outro caminho para ensinar e educar. Claro que com muito diálogo, senão também não resolve e a punição perde seu valor”, conta. Mas também para Sílvia tudo deve ser explicado: “Você fez isso, é errado, não pode, não quero que isso se repita e por isso você não irá à festa de aniversário do colega, ou não vai viajar com a vovó, ou não vai levar brinquedo para a escola no dia permitido ou não vai ao jogo de futebol com seu pai”, explica como age com as crianças.
Sílvia tenta ser um exemplo, mas acha o processo complicado. Para ela, estabelecer rotina, obrigações, ter combinados por escrito facilitam o andamento da casa e organizam o tempo e as ideias dos pequenos. “Parece simples e fácil, mas o tempo todo temos que reativar a memória deles, e a nossa: que tá na hora disso, que esse objeto não se guarda aqui, escovar dente, tomar banho... Enfim, a vida.” O foco é que os filhos sejam adultos bem resolvidos e para isso ela ensina, mostra o melhor caminho e os deixa fazer, intervindo quando necessário. Para Sílvia, respeito é imprescindível. “Eles precisam respeitar as pessoas, os mais velhos, as mulheres. E a família é praticamente sagrado. Avós, tios e primos são amigos próximos e que nos amam. E nunca minto para eles, por pior que seja a verdade.”
LEI DA PALMADA
A Lei da palmada, também chamada de Menino Bernardo, entrou em vigor em 27 de junho e deu a crianças e adolescentes uma série de novos direitos. A legislação busca coibir maus-tratos e violência contra menores ao determinar que pais não podem impor castigos que resultem em sofrimento ou lesões aos filhos. A proposta define o castigo físico como a “ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em sofrimento físico ou lesão”. O tratamento cruel e degradante é colocado como “a conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize”.
Dificuldade em aceitar regras
Nem sempre a resistência à autoridade é sinal de desobediência. O transtorno desafiador opositivo leva a criança a ter um padrão persistente de comportamentos negativistas, hostis e desafiadores
Que pai não sonha com um filho saudável e tranquilo? Aquele que não faz birra e é bagunceiro na medida? A paternidade, entretanto, é marcada por um amor sem medida e uma certa dose de incerteza. Ninguém sabe como será o comportamento da criança e, muitas vezes, nem como lidar com ele. A dificuldade de lidar com a autoridade, por exemplo, muitas vezes não é “falta de educação”, como muitos podem sugerir. Algumas famílias enfrentam uma situação mais complicada nesse sentido, embora possível de ser resolvida.
Caso do transtorno desafiador opositivo. Segundo o psiquiatra da infância e adolescência Gustavo Teixeira, autor do livro Reizinho da casa: manual para pais e crianças opositivas, desafiadoras e desobedientes (Editora Best Seller) e professor visitante da Bridgewater State University, nos Estados Unidos, trata-se de um padrão persistente de comportamentos negativistas, hostis, desafiadores e desobedientes observados nas interações sociais da criança com adultos e figuras de autoridade, como pais, tios, avós e professores.
As principais características do transtorno são perda frequente da paciência, discussões com adultos, desafio, recusa a obedecer solicitações ou regras, comportamento opositivo, indisciplina, perturbação e implicância com as pessoas, podendo responsabilizá-las por seus erros. “A criança se aborrece com facilidade e comumente se apresenta enraivecida, irritada, ressentida, mostrando-se com rancor e com ideias de vingança.” Os sintomas aparecem em vários ambientes. Entretanto, é na sala de aula e em casa onde eles podem ser melhor observados.
Foi só quando Gabriel, de 8 anos, mudou de escola, no ano passado, que seus pais perceberam os primeiros sinais de que algo não ia bem. Gabriel foi diagnosticado com um grau muito leve do transtorno e a implantação de uma rotina e acompanhamento com especialistas está permitindo à família enfrentar a questão com tranquilidade. Segundo a mãe, a profissional de marketing Michelle Lapouble, de 42, ele tem dificuldade de aceitar regras e ordens que não tenham muita lógica para ele.
“Gabriel fica ansioso para terminar o exercício porque quer desenhar. Questiona por que não pode fazer isso, já que terminou a tarefa. Diz que isso não faz mal a ninguém e vai tentando nos convencer”, conta a mãe. A introdução de uma rotina na vida do garoto tem ajudado a conduzir essas questões. “Ele tem hora para dormir, para comer, para ficar com o pai e a mãe. Isso dá confiança. Saber o que vai acontecer o deixa seguro. Eles nunca querem, por exemplo, largar o jogo para ir para o banho, mas se faz parte da rotina fica mais fácil”, comenta.
O transtorno teria origem multifatorial, envolvendo componentes biológicos – uma possível herança genética, características herdadas pela criança que podem predispor a essa condição comportamental, como temperamento impulsivo, baixo limiar de frustração, irritabilidade e disfunções em neurotransmissores serotoninérgicos e dopaminérgicos – e ambientais, relacionados aos métodos de criação parental e alterações e complicações no desenvolvimento da criança, como prematuridade, complicações da gravidez e de parto.
Uma vez que a origem do problema é multifatorial, uma série de estratégias pode ser utilizada para obter o sucesso terapêutico e a redução dos sintomas comportamentais, como medicamentos e técnicas cognitivo-comportamentais que ajudam na criação de estratégias para a solução de problemas e diminuem o negativismo. Métodos de reforço positivo, aconselhamento e treinamento de pais e professores, terapia familiar e prática esportiva também ajudam.
“O transtorno desafiador opositivo pode ter uma evolução favorável com o tratamento. Entretanto, depende da participação, engajamento e motivação dos pais na mudança de seus hábitos e comportamentos, estabelecimento de regras, limites e conduta assertiva. Muitas vezes, a dificuldade dos pais na aceitação das intervenções e das estratégias comportamentais ensinadas inviabiliza o sucesso terapêutico”, destaca Gustavo Teixeira.
Michelle já percebeu muita melhora em Gabriel e tem se dedicado, com o marido, a ajudá-lo a passar por esse processo, que melhora com o amadurecimento comportamental da criança. “Ele é um garoto muito doce. Quando nosso filho ainda estava na barriga, o idealizamos e sonhamos para ele as coisas mais lindas. Quando ele vai crescendo, nos damos conta de que aquele sonho é nosso, e não deles. Aprendi a olhar as coisas com o olhar do meu filho. Ele me ensina e mostra os caminhos. É um aprendizado muito grande.”