“Esse problema não aparece fisicamente. Seria melhor não ter um braço porque aí notariam que somos diferentes.” A frase resume uma infância e uma adolescência de sofrimentos e julgamentos. Com uma sinceridade totalmente despida de medos, apropriada só mesmo por quem enfrenta um drama invisível e — por muito tempo inexplicável —, o psicólogo Otávio Giacomo, 50 anos, encontra uma dura definição de como é conviver com a dislexia. Ele é apenas um no universo de pelo menos 1,8 milhão de pessoas, segundo a Associação Brasileira de Dislexia (ABD), a ser diagnosticado com o distúrbio de aprendizagem que torna incompreensível, no primeiro momento, a ligação entre letras e sons.
O problema não pode ser considerado uma doença. O cérebro do disléxico é fisicamente intacto, sem qualquer lesão que possa diferi-los dos demais. O órgão só funciona de maneira diferente, o que dificulta o processo de leitura e escrita. Cognitivamente, quem tem o distúrbio é igualmente apto a desempenhar qualquer atividade, sem qualquer prejuízo. Mas, se o processo envolver letras e números, certamente o tempo demandado para a conclusão do desafio será diferente. Eles são mais lentos, já que o caminho que percorrem para chegar até o fim da tarefa de ler e escrever é mais tortuoso e com obstáculos adicionais.
Imagens do cérebro de crianças com dislexia sugerem que, quando estão aprendendo a ler e escrever, elas ativam áreas cerebrais diferentes daquelas ativadas por meninos e meninas sem a mesma dificuldade. “Na verdade, nosso cérebro não está programado para ler. Essa é uma habilidade artificial que treinamos. A escrita é feita de códigos criados pelo homem e entre 5% e 10% das pessoas têm dificuldades de aprendê-los”, explica Augusto Buchweitz, pesquisador do projeto ACERTA, do Instituto do Cérebro da PUC-RS, que têm como objetivo estudar o que ocorre no cérebro das crianças em fase de alfabetização e que apresentam problemas de aprendizagem.
“Eles não têm questões médicas relevantes; têm QI normal, muitas vezes, inclusive, acima da média. O que existe é uma dificuldade em decodificar as palavras com fluência e velocidade”, esclarece Augusto. Dá para ter uma ideia desse tempo particular. Enquanto um leitor sem qualquer traço de dislexia lê, em média, de quatro a cinco palavras por segundo e atinge cerca de 200 por minuto, o cérebro do disléxico apresenta outro ritmo. Ele busca conexões similares para fazer a mesma tarefa e, por tal razão, precisa de mais prazo. Assim, uma criança disléxica lerá, em média, de 10 a 30 palavras a cada minuto.
Uns serão mais ou menos velozes. Quanto antes for feito o diagnóstico, mais rapidamente esse cérebro encontrará suas próprias artimanhas para superar uma dificuldade da qual não se livra nunca. Não há cura para a dislexia, que é antes de tudo uma herança genética. Disléxicos têm um dos pais com as mesmas características.
Há diferentes graus do quadro, mas alguns sintomas definem o distúrbio. Um dos pontos determinantes do diagnóstico está relacionado à incapacidade de a pessoa “relacionar o código escrito com o falado; fazer uma relação entre o som e a letra que ele representa”, explica a pedagoga Margot Marinho. Na prática, é como se no primeiro contato com o alfabeto, as letras, tampouco a combinação delas, não fizessem o menor sentido. É como ser um estrangeiro no seu próprio idioma.
O desafio de quem tem essa disfunção cerebral é encontrar mecanismos de se apropriar desses códigos e compreendê-los. Só assim vai ser capaz de ler e escrever correta e fluentemente. “O processo de decodificação deles é um pouco diferente. Qualquer ordem é difícil para eles: o alfabeto, os meses do ano, os dias das semanas. Tudo para eles é aleatório. Não têm lógica”, define a fonoaudióloga Alice Sumihara, especialista em transtorno de deficit de atenção (TDAH) e dislexia pela Associação Brasileira de Dislexia.
Analisando o conceito, parece simples e superável. Identifica-se o problema ainda na infância, especialmente na fase de alfabetização, busca-se ajuda profissional — de fonoaudiólogos, psicopedagogos, psicólogos, neurologistas — e, aos poucos, cada um encontra as estratégias para associar as letras aos sons que escutam. “Inclusive, campanha mundiais reforçam que quanto mais cedo começar a intervenção melhor será o quadro. Isso porque o cérebro é plástico”, afirma a fonoaudióloga e psicopedagoga Maria Angela Nico, presidente da Associação Brasileira de Dislexia (ABD).
Mas o caminho até lá é árduo. Especialmente quando o diagnóstico demora a chegar. Antes de entender o porquê de a criança não acompanhar o processo de leitura dentro da sala de aula, são muitos os julgamentos feitos. Muitas são acusadas de preguiçosas, consideradas menos capazes. A autoestima é destruída nesse processo. Tudo resultado de desconhecimento.
A criança, em geral, não consegue escrever corretamente as palavras. Ela ouve e compreende, mas colocá-las no papel de forma gráfica não tem lógica. Elas podem escrever palavras sem o menor sentido para um leitor normal e estarem certas de que leem o que querem dizer. Podem alterar a ordem das letras e “azedo” virar “adezo”, por exemplo. Podem pensar em colocar no papel “infância”, mas acabar saindo “infâmia”, que visualmente parece tanto com a primeira. Ainda estão mais propensas a juntar palavras e separar outras que deveriam se manter unidas. Podem trocar fonemas que, de tão semelhantes, provocam confusão em um cérebro que tem um funcionamento muito particular, como é o caso de “vaca” e “faca”.
"É muito difícil não ser burro e ser tratado como idiota" - Otávio Giacomo, psicanalista
Sem falar nas comorbidades associadas ao transtorno de aprendizado. Os dislexos, em maior ou menor grau, podem ser igualmente confusos ao se localizarem espacialmente e se perderem na tentativa de identificar a lateralidade, esquerda e direita. Podem ser dispersos por causa do diagnóstico de transtorno de deficit de atenção (TDAH). Às vezes, ainda apresentam alterações auditivas (Processamento Auditivo Central) e têm dificuldades de interpretar os sons. Tarefas simples, como decorar músicas e entender piadas, podem resultar em um fiasco. Crianças disléxicas podem não interagir em brincadeiras em grupo porque não compreendem os comandos rapidamente. Anotar recados é um martírio. Rimas soam incompreensíveis e fazer contas pode ser um suplício. Olhar as horas em relógio de ponteiro? Nem pensar.
Esta reportagem está dividida em quatro partes; leia também:
Um passeio pela mente dos disléxicos
Dislexia: veja quando suspeitar e como ajudar
Idealizadora do Centro Especializado em Dislexia relata a própria experiência
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O problema não pode ser considerado uma doença. O cérebro do disléxico é fisicamente intacto, sem qualquer lesão que possa diferi-los dos demais. O órgão só funciona de maneira diferente, o que dificulta o processo de leitura e escrita. Cognitivamente, quem tem o distúrbio é igualmente apto a desempenhar qualquer atividade, sem qualquer prejuízo. Mas, se o processo envolver letras e números, certamente o tempo demandado para a conclusão do desafio será diferente. Eles são mais lentos, já que o caminho que percorrem para chegar até o fim da tarefa de ler e escrever é mais tortuoso e com obstáculos adicionais.
Imagens do cérebro de crianças com dislexia sugerem que, quando estão aprendendo a ler e escrever, elas ativam áreas cerebrais diferentes daquelas ativadas por meninos e meninas sem a mesma dificuldade. “Na verdade, nosso cérebro não está programado para ler. Essa é uma habilidade artificial que treinamos. A escrita é feita de códigos criados pelo homem e entre 5% e 10% das pessoas têm dificuldades de aprendê-los”, explica Augusto Buchweitz, pesquisador do projeto ACERTA, do Instituto do Cérebro da PUC-RS, que têm como objetivo estudar o que ocorre no cérebro das crianças em fase de alfabetização e que apresentam problemas de aprendizagem.
“Eles não têm questões médicas relevantes; têm QI normal, muitas vezes, inclusive, acima da média. O que existe é uma dificuldade em decodificar as palavras com fluência e velocidade”, esclarece Augusto. Dá para ter uma ideia desse tempo particular. Enquanto um leitor sem qualquer traço de dislexia lê, em média, de quatro a cinco palavras por segundo e atinge cerca de 200 por minuto, o cérebro do disléxico apresenta outro ritmo. Ele busca conexões similares para fazer a mesma tarefa e, por tal razão, precisa de mais prazo. Assim, uma criança disléxica lerá, em média, de 10 a 30 palavras a cada minuto.
Uns serão mais ou menos velozes. Quanto antes for feito o diagnóstico, mais rapidamente esse cérebro encontrará suas próprias artimanhas para superar uma dificuldade da qual não se livra nunca. Não há cura para a dislexia, que é antes de tudo uma herança genética. Disléxicos têm um dos pais com as mesmas características.
Há diferentes graus do quadro, mas alguns sintomas definem o distúrbio. Um dos pontos determinantes do diagnóstico está relacionado à incapacidade de a pessoa “relacionar o código escrito com o falado; fazer uma relação entre o som e a letra que ele representa”, explica a pedagoga Margot Marinho. Na prática, é como se no primeiro contato com o alfabeto, as letras, tampouco a combinação delas, não fizessem o menor sentido. É como ser um estrangeiro no seu próprio idioma.
O desafio de quem tem essa disfunção cerebral é encontrar mecanismos de se apropriar desses códigos e compreendê-los. Só assim vai ser capaz de ler e escrever correta e fluentemente. “O processo de decodificação deles é um pouco diferente. Qualquer ordem é difícil para eles: o alfabeto, os meses do ano, os dias das semanas. Tudo para eles é aleatório. Não têm lógica”, define a fonoaudióloga Alice Sumihara, especialista em transtorno de deficit de atenção (TDAH) e dislexia pela Associação Brasileira de Dislexia.
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Mas o caminho até lá é árduo. Especialmente quando o diagnóstico demora a chegar. Antes de entender o porquê de a criança não acompanhar o processo de leitura dentro da sala de aula, são muitos os julgamentos feitos. Muitas são acusadas de preguiçosas, consideradas menos capazes. A autoestima é destruída nesse processo. Tudo resultado de desconhecimento.
A criança, em geral, não consegue escrever corretamente as palavras. Ela ouve e compreende, mas colocá-las no papel de forma gráfica não tem lógica. Elas podem escrever palavras sem o menor sentido para um leitor normal e estarem certas de que leem o que querem dizer. Podem alterar a ordem das letras e “azedo” virar “adezo”, por exemplo. Podem pensar em colocar no papel “infância”, mas acabar saindo “infâmia”, que visualmente parece tanto com a primeira. Ainda estão mais propensas a juntar palavras e separar outras que deveriam se manter unidas. Podem trocar fonemas que, de tão semelhantes, provocam confusão em um cérebro que tem um funcionamento muito particular, como é o caso de “vaca” e “faca”.
"É muito difícil não ser burro e ser tratado como idiota" - Otávio Giacomo, psicanalista
Sem falar nas comorbidades associadas ao transtorno de aprendizado. Os dislexos, em maior ou menor grau, podem ser igualmente confusos ao se localizarem espacialmente e se perderem na tentativa de identificar a lateralidade, esquerda e direita. Podem ser dispersos por causa do diagnóstico de transtorno de deficit de atenção (TDAH). Às vezes, ainda apresentam alterações auditivas (Processamento Auditivo Central) e têm dificuldades de interpretar os sons. Tarefas simples, como decorar músicas e entender piadas, podem resultar em um fiasco. Crianças disléxicas podem não interagir em brincadeiras em grupo porque não compreendem os comandos rapidamente. Anotar recados é um martírio. Rimas soam incompreensíveis e fazer contas pode ser um suplício. Olhar as horas em relógio de ponteiro? Nem pensar.
Outros disléxicos famosos
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- Franklin D. Roosevelt
- Vincent Van Gogh
- Tom Cruise
- Whoopi Goldberg
- Robin Williams